segunda-feira, 15 de abril de 2024

D. ISABEL, DUQUESA DA BORGONHA

 

"Mas, pera defensão dos Lusitanos,
Deixou, quem o levou, quem governasse
E aumentasse a terra mais que dantes:
Ínclita geração, altos Infantes."

Assim se referiu Camões à descendência de D. João I e D. Filipa de Lencastre e não há razões para crer que a Infanta D. Isabel não estivesse incluída na mente do autor na estância 50 do Canto IV dos Lusíadas.


Contudo, é altamente provável que, mesmo que o leitor faça um esforço de memória não se recorde de qualquer menção à Infanta D. Isabel, quer na História que aprendeu nos bancos da Escola, quer na literatura comum. Tal obliteração histórica será devida essencialmente aos cronistas da época, mas também a uma ideia muito generalizada de pouca importância da Mulher na sociedade da Idade Média. Esse esquecimento só há pouco tempo começou a ser ultrapassado com estudos dirigidos ao estudo da vida da Mulher superior e importantíssima no seu tempo que foi a Infanta D. Isabel, posteriormente Duquesa da Borgonha que no seu tempo era mesmo conhecida nas cortes europeias como “A Grande Dama”.

Muito por influência de sua Mãe, a Rainha D. Filipa de Lencastre que, de Inglaterra trouxe costumes, mas também cultura e exigência no comportamento dos membros da Realeza, todos os Infantes de D. João I receberam uma educação esmerada, invulgar para o seu tempo, não tendo D. Isabel sido excepção. Até aos trinta e dois anos, Isabel foi Infanta, dado que só nessa altura ficou livre para casar, depois de o irmão e futuro Rei D. Duarte ter casado pelo seu lado. Com a morte de sua Mãe D. Filipa, Isabel herdou a “Casa da Rainha” por inteiro, algo que por si só constituiu uma novidade, por vontade de sua Mãe ao morrer, mas também por influência de seu irmão Pedro, que seria Duque de Coimbra após a conquista de Ceuta. E a educação que teve, bem como a experiência do governo dos domínios e do pessoal dessa importante Casa haveriam de a habilitar para a sua acção na fase seguinte da sua vida.

Com o seu casamento, em 1430, com Filipe III (o Bom), Duque da Borgonha, teve início a segunda fase da sua vida, que iria durar quarenta e dois anos. Durante a negociação do casamento o Duque enviou uma embaixada a Portugal, incluindo o pintor Jan van Eyck encarregado de pintar o retrato mais fiel possível de D. Isabel. As informações sobre a Infanta de Portugal e o retrato deixaram o Duque completamente satisfeito, pelo que se tratou logo do enlace. Era o terceiro casamento do Duque e deste casamento nasceram três filhos de que apenas o terceiro, Carlos o Temerário, chegou à fase adulta. Data dessa altura a criação da célebre ordem de cavalaria “Tosão de Ouro” criada por Filipe III em homenagem a Isabel.

A corte do Duque da Borgonha não ficava atrás das cortes régias do seu tempo, quer em poderio, quer em riqueza. De facto, o Duque da Borgonha era também conde da Flandres (que o transformava no homem provavelmente mais rico do seu tempo), Artois, paladino de Namur, senhor de Salines e de Malines.

Com a sua educação refinada, Isabel integrou-se perfeitamente na Corte, sendo uma mecenas das artes e rodeando-se de artistas. Mas Isabel não se ficou por aí, muito antes pelo contrário. As suas capacidades de governante foram reconhecidas em pleno pelo seu marido, que tomou mesmo, nalgumas alturas, a decisão inédita de lhe entregar por completo a governação do ducado, na sua ausência em campanhas militares. Foram as célebres “delegações de poder” outorgadas por Filipe a Isabel que lhe colocaram nas mãos responsabilidades de governar o ducado nos aspectos financeiros, judiciais e sociais, mas também de organização militar e respectivo financiamento. O papel de Isabel foi ainda importantíssimo em diversas Conferências de Paz em que cumpriu brilhantemente o papel de Embaixadora do Ducado.

Após a guerra civil verificada em Portugal da qual resultou a morte do seu irmão D. Pedro duque de Coimbra em Alfarrobeira, Isabel interveio com o envio de uma delegação a fim de conseguir um túmulo digno para D. Pedro, para além de acolher os três filhos deste na sua corte e de lhes proporcionar carreiras condicentes com o seu nascimento.


D. Isabel, quer no papel de Infanta de Portugal, quer no de Duquesa da Borgonha não deixou certamente de ser uma mulher do seu tempo, mas provou que mesmo nessa altura às mulheres não estava destinado apenas um papel secundário na sociedade medieval. Claro que o ambiente em que nasceu, a educação recebida e a personalidade própria ditaram aquilo que veio a ser na vida. E D. Isabel conseguiu ser não apenas uma das mulheres mais importantes do seu tempo, mas uma das personalidades mais notórias e fascinantes do seu tempo, independentemente do seu sexo. Fez parte da Ínclita Geração e bem merece ser assim conhecida por todos nós.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Abril de 2024

Imagens recolhidas na internet

terça-feira, 9 de abril de 2024

MULHERES NA IDADE MÉDIA

 


Se há um mito persistente é sobre o que foi na realidade a Idade Média. Apesar das evidências e de muitos intelectuais como Umberto Eco na grande obra que coordenou sobre a Idade Média demonstrarem o contrário, é ainda generalizado o termo “idade das trevas” como definindo aquele período da História da Europa. É um facto adquirido que, quando aparece algo de novo, os seus agentes tentam, para se auto-promoverem, desfazer no que se passou anteriormente, construindo, como hoje se diz, a sua própria narrativa. Tentam, assim, construir a imagem favorável com que desejam ficar para o futuro contrapondo com um passado apresentado como muito pior, mesmo negro perante a luz que pretendem ter trazido. Assim aconteceu com o Renascimento e, fundamentalmente, o Iluminismo. Um dos aspectos que mais impressiona negativamente em relação à dita “idade das trevas” é o papel da mulher, descrito como sendo de inteira subjugação ao homem com a quase única função de assegurar descendência. E, no entanto…basta apreciar o papel de algumas mulheres desse período para se perceber que isso não pode, de maneira nenhuma, corresponder à realidade do que se passava. Mesmo em Portugal temos exemplos que provam isso, a começar pela Mãe do nosso primeiro Rei, continuando com a Rainha Santa Isabel Padroeira da nossa Cidade e ainda com a representante feminina da Ínclita Geração Isabel, Duquesa da Borgonha, tão injustamente esquecida pela História que nos têm contado e que tentarei apresentar na próxima semana.

Mas esta semana abordarei a vida intensa e de tal forma relevante de uma Mulher na Idade Média, que seria impossível que tivesse acontecido se aqueles tempos tivessem sido como nos tentam vender.

Leonor da Aquitânia, assim se chama a nossa heroína de hoje, passou para a História com uma má fama que, ainda hoje perdura, ou não se tivesse afirmado vigorosamente não apenas numa, mas em duas das coroas mais importantes da época, a francesa e a inglesa. Leonor nasceu em 1122, filha de Guilherme X, duque de Aquitânia, e de Leonor, viscondessa de Châtellerault. Os domínios do ducado, um dos mais importantes de França abrangiam, para além da Aquitânia, ainda Poitou, Gasconha, Limousin e Auvergne. Com a morte de seu avô e do seu pai, Leonor herdou os territórios do ducado aos 13 anos. Numa época em que os casamentos eram as mais das vezes contratos entre famílias e algumas vezes entre Estados em que os afectos não eram para ali chamados, tornou-se uma noiva apetecível e casou em 1137 com o futuro Rei Luís VII, tornando-se ela própria rainha consorte da França. Rainha consorte mas, eventualmente, sem sorte, já que a corte dos Capetos onde entrara estava muito longe dos hábitos culturais e sociais da sua própria corte da Aquitânia e a habituação da nova rainha não terá sido um grande sucesso.

Aquando da Segunda Cruzada, Luís VII decidiu participar, tendo partido com a sua mulher Leonor para a Terra Santa, como resposta aos levantamentos muçulmanos. A expedição veio a revelar-se um desastre militar, tendo também consequências na vida do casal a que se seguiu o divórcio real em Março de 1152, tendo as duas filhas do casal permanecido com o pai.

Leonor tinha 28 anos e recuperava o ducado da Aquitânia. Dois meses depois casou-se com Henrique de Anjou (Plantageneta) que, em 1153, atravessou o Canal da Mancha para se apoderar da coroa da Inglaterra, o que conseguiu dado que o rei de Inglaterra Estêvão de Blois era seu primo. Henrique e Leonor foram coroados na Catedral de Westminster em Dezembro de 1154. Leonor da Aquitânia era rainha pela segunda vez, agora em Inglaterra. Aqui teve oportunidade para exercer o seu amado mecenato cultural decisivo para o surgimento de nova literatura, através do apoio a artistas. Mas de novo surgiriam desavenças entre Leonor e o seu marido com consequências graves no seu relacionamento, só ultrapassadas pela morte de Henrique II em 1189, tendo Leonor sido mesmo presa. Para a sorte de Leonor foi crucial o apoio do seu filho, o célebre Ricardo Coração de Leão. Depois da morte de Ricardo, Leonor voltou ainda à acção para apoiar o seu filho João Sem Terra.


Leonor viria a morrer em 1204, com mais de oitenta anos, depois de uma vida cheia em que participou por inteiro na vida cultural, política e militar da Europa do seu tempo, tendo influenciado, para o bem e para o mal, as relações entre ingleses e franceses. Perante as maiores adversidades nunca deixou de querer influenciar o seu tempo através da sua vontade. Algo que, sendo mulher, de acordo com cronistas e muitos historiadores da Idade Média seria impossível de acontecer. Mas aconteceu mesmo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Abril de 2024

Imagens recolhidas na internet 

segunda-feira, 1 de abril de 2024

PALAVRAS

 


Estou convencido de que a invenção mais significativa da Humanidade foi a palavra. A palavra é a base da linguagem que, de forma apenas oral, ou escrita, nos permite comunicar ideias, conhecimento ou apenas factos acontecidos.

É através da palavra escrita, de que estas crónicas são um exemplo muito humilde, que se tornou possível a passagem de testemunho cultural entre gerações diferentes à medida que passam os anos.

Sendo a palavra o processo utilizado pelos políticos para convencerem os outros da justeza das suas propostas, a palavra é também a arma mais eficaz contra as ditaduras e a mentira institucionalizada. E é uma arma poderosa que se torna frequentemente temida pelos poderosos. Sócrates, que afirmava “saber que nada sabia” falava publicamente nas praças, questionando o conhecimento tido como verdade e levando os seus concidadãos gregos a questionarem-se sobre tudo. Acabou por ser acusado de corromper os jovens e levado a beber a cicuta, tornando-se um exemplo de virtude.

Mas a palavra pode ela mesma corromper a sociedade. Joseph Goebbels, o maior propagandista nazi, inflamava centenas de milhares de alemães com os seus discursos que continham as maiores barbaridades. Terá assim ajudado a criar um sentimento que se espalhou pela sociedade alemã e que explica em boa parte a sua aceitação de Hitler, do seu comportamento perante o Holocausto e da invasão e subjugação de quase toda a Europa.

Muitas das diversas linguagens que se desenvolveram na História acabaram por desaparecer e ser esquecidas acompanhando a sorte das respectivas civilizações. Por vezes há golpes de sorte e linguagens perdidas no tempo voltam ao nosso conhecimento. É o caso extraordinário da escrita hieroglífica egípcia, que só no séc. XIX foi possível ser decifrada devido a ter sido encontrada uma pedra com o mesmo texto legal escrito em três línguas diferentes: hieroglífico antigo, tardio e grego antigo. Uma espécie de tradutor abandonado para ser encontrado milhares de anos depois e fazer luz sobre a antiga linguagem.

Existem hoje mais de sete mil línguas diferentes. Na tradição bíblica aprendemos que o Homem quis chegar ao céu para o que começou a construir uma torre. Irritado com tal ambição, Deus colocou os homens a falar línguas diferentes para que não se entendessem e assim lhes fosse impossível continuarem com tal construção. Um pouco como no nosso Parlamento, há uma semana, quando apenas se pretendia escolher um presidente da mesa e as linguagens eram tão diferentes que os grupos de deputados não se conseguiam entender.

Mas, essencialmente, as palavras servem para unir e não separar. É pela palavra escrita que passamos mensagens duradouras e construímos cultura. A palavra é ainda um traço de união entre formas culturais. Um dos maiores músicos de todos os tempos teve o atrevimento de colocar as palavras de um poema numa sinfonia pela primeira vez e assim Beethoven abriu um caminho musical seguido por outros génios como Mahler ou Shostakovich.

A forma poética da linguagem abre caminhos novos tantas vezes inesperados e mostra as profundezas da sensibilidade dos autores. Os portugueses parecem ter há muito tempo uma especial predisposição para a poesia, pelo menos desde D. Dinis, e já nos inícios do sec. XV o Duque de Coimbra, D. Pedro, sabia que “poesia é mais sabor que saber”. Impressiona o número de livros de poesia que, só aqui em Coimbra, é publicado todos os anos por poetas, homens e mulheres. Talvez seja a própria língua portuguesa que, internamente, desenvolveu características que favorecem a linguagem poética. Para o provar, sublinho a simples palavra “luar”. Desafio os leitores a ler a palavra devagar, percebendo o que se passa no interior da sua boca ao fazê-lo e notando a musicalidade inerente. E não é que só os portugueses têm uma palavra própria para designar a luz da Lua?

Por vezes o silêncio não deixa de ser de ouro, mas o normal é estarmos imersos em palavras. E, se a linguagem árida de um contrato nos traz apenas segurança, ler uma página de Camilo ou de Aquilino ou duas simples linhas de Sophia transmite-nos algo que nem todo o ouro do mundo poderia comprar.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Abril de 2024

Imagens recolhidas na internet