segunda-feira, 4 de julho de 2011

ELEIÇÕES E NARRATIVAS

Na última campanha eleitoral foi largamente utilizado um termo que não tinha aparecido nas anteriores campanhas. Muitos jornalistas e comentadores políticos referiram-se aos programas, propostas, justificações e tomadas de posição dos partidos como sendo narrativas. Sobre o que sucedeu nos últimos anos em Portugal, diziam que a narrativa do PS era esta e que a narrativa do PSD era aquela outra…

Ainda me lembro dos tempos de liceu em que tínhamos que ler muitos autores clássicos portugueses e, entre eles, Alexandre Herculano com as suas "Lendas e Narrativas". Ao ouvir agora classificar as posições políticas como narrativas, não pude deixar de me lembrar daquela obra célebre de um dos nossos maiores intelectuais do século XIX, que além de o ser, "meteu a mão na massa" isto é, assumiu em concreto os riscos das suas posições políticas liberais. E fui recordar o significado do termo "narrativa", por me parecer que a sua utilização neste contexto tem muito que se lhe diga.

De facto, "narrativa" tem um significado muito concreto, principalmente depois dos estudos que Roland Barthes lhe dedicou. Em termos simples, numa narrativa, determinados personagens participam em factos que se desenvolvem em sequência num certo espaço durante um determinado período de tempo. São narrativas os romances, os contos, os filmes, as canções, etc.

A classificação dos discursos políticos como narrativas significará, assim, que os partidos através do discurso dos seus responsáveis, constroem uma realidade ficcional que naturalmente funcionará com tão mais eficácia quanto mais agradável soar aos ouvidos dos eleitores.

Claro que os comentadores sabiam que havia muita falta de verdade nas justificações e tomadas de posição por parte de um dos principais candidatos. Em vez de o dizerem com clareza, vá-se lá saber por que razões, adoptaram o termo "narrativa"e, de caminho, passaram a classificar como narrativa as propostas e posições de todos os contendores políticos. Como quem diz, há aqui alguém que inventou uma bela história para convencer os eleitores, mas os outros também fazem o mesmo.

Convencidos da sua inteligência superior, imaginaram que as pessoas comuns não perceberiam a vigarice intelectual e a manipulação descarada que utilizavam nas suas análises e comentários, ajudados aliás por algumas sondagens bem estranhas.

De facto, nas eleições de Junho de 2011 a realidade veio impor-se à fantasia com tanta força, que levou à sua frente todos aqueles que se convenceram da possibilidade de que, através da utilização de meios sofisticados e telepontos vários, seria possível impor uma narrativa que enganasse toda a gente durante todo o tempo. Mas o que aconteceu foi que a maioria dos portugueses entendeu que tinha chegado ao limite a utilização de um discurso construído de forma a mascarar a realidade com um voluntarismo optimista e que seria melhor fazer já os inevitáveis e pesados sacrifícios antes que fosse tarde demais como se passa na Grécia.

O famoso livro de Almeida Garrett juntava lendas e narrativas. As lendas acrescentam às narrativas as alterações que lhes advêm por serem transmitidas oralmente através dos tempos, misturando factos reais com outros, produto apenas da imaginação humana. É assim difícil saber porque é que os comentadores e jornalistas adoptaram o termo narrativa e não lenda, mas como já Herculano os juntou, provavelmente a questão não terá assim tão grande importância.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra de 4 de Julho de 2011

Sem comentários: