segunda-feira, 16 de julho de 2012

Partículas de Deus


Há cerca de quinze dias uma notícia invadiu os meios de comunicação social, baralhando as pessoas pela sua linguagem algo esotérica e surpreendendo muitas outras pelo significado da descoberta que anunciava.
O que deu origem à notícia foi um simples comunicado emitido em 4 de Julho de 2012 pelos responsáveis do CERN que dizia o seguinte: “obervamos nos nossos dados sinais claros de uma nova partícula no nível 5 sigma, na região de massa 126 GeV”.
Já as notícias que nos chegavam por todos os meios informavam que tinha sido descoberta a partícula da Deus. Nem mais!
Como leigo na matéria, mas não gostando de andar por aí às cegas, cedo percebi a importância da descoberta que justifica os milhões gastos no gigantesco LHC (Grande Colisionador de Hadrões), o maior e com mais energia acelerador de partículas do mundo, construído na zona fronteiriça entre a França e a Suíça, onde trabalham mais de 3.000 pessoas.
A chamada “partícula de Deus” é tão de Deus como todas as outras partículas, até porque só por si não explica a própria criação. É o chamado bosão de Higgs, assim designado pelos cientistas porque a sua existência foi prevista pelo físico teórico Peter Higgs há mais de 50 anos. A formalização da necessidade da sua existência decorre do Modelo Padrão de partículas que estaria errado se o bosão de Higgs não existisse, já que seria precisamente essa partícula que daria coerência ao Modelo, “entregando” matéria às outras partículas. Esta era a única das 61 partículas elementares do Modelo Padrão ainda por encontrar experimentalmente.
É a teoria do Big Bang que ganha credibilidade, já que, logo após se ter verificado, algo “agarrou” parte da energia, atrasando a sua libertação e permitindo assim a sua transformação em matéria que, pela sua futura organização viria a dar origem às estrelas, aos planetas e a tudo que nos rodeia hoje, incluindo a vida. Esse “algo” é o campo de Higgs, formado pelos bosões com o mesmo nome.
Torna-se assim evidente o extremo interesse da descoberta. Claro que o comunicado do CERN, na sua estranha linguagem não confirma a descoberta em absoluto, querendo o “nível 5 sigma” dizer apenas que a probabilidade de o bosão de Higgs ter sido detectado é de cerca de 99,9999% e a “região de massa 126 GeV” que a sua massa modelo padrão é de 126 mil milhões de electrões-volt, dentro da gama de valores esperados. Na prática, foi mesmo encontrado.
Esta descoberta permite que a ciência, em particular a física, continue no caminho que tem vindo a trilhar de melhor conhecimento do universo, desde o infinitamente grande ao infinitamente pequeno, já que “as peças” se vão todas encaixando umas nas outras de forma coerente, mesmo quando a teoria tem que esperar dezenas de anos pela sua comprovação experimental. Mostra ainda como a cooperação internacional pode ser bem sucedida quando levada a sério, ainda que fora das grandes parangonas dos jornais que frequentemente, mais não fazem que desvirtuar o significado profundo da actividade humana, ao inventarem cabeçalhos espectaculares como “foi descoberta a partícula de Deus”.
Mas não se pense que a investigação da Física termina aqui. O que falta conhecer é muito mais do que aquilo que hoje se conhece, o que aliás torna a designação “partícula de Deus” apenas ridícula. Segundo alguns, a matéria que corresponde ao “modelo padrão” agora completado será apenas 4% de todo o Universo. Cerca de 75% correspondem ao que ainda hoje se designa por “energia negra” e quase 22% restantes correspondem a algo que apenas a gravidade poderá ajudar a detectar, mas que tem força suficiente para parar a rotação de galáxias inteiras.
O que foi anunciado a 4 de Julho de 2012 terá, no entanto, um lugar muito mais importante na História da Humanidade do que tudo o que aparece hoje nos nossos jornais e nas televisões do mundo inteiro, disso o leitor pode ter a certeza.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 de Julho de 2012

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