segunda-feira, 24 de março de 2014

Guardiões do Tempo


A posição da União Europeia sobre a crise da Crimeia não tem fugido à mediocridade política a que nos tem habituado desde há uns anos a esta parte, reflexo naturalmente não só de boa parte dos governantes dos países da União, mas também e, talvez sobretudo, da incapacidade dos líderes das instituições comunitárias, com a Comissão à cabeça. Durão Barroso, actual presidente da Comissão, veio afirmar que “a anexação da Crimeia é um comportamento que não tem lugar no século XXI”. Isto é, para o responsável máximo da Comissão Europeia, ainda o segundo decénio do século XXI não vai a meio e já ele decidiu qual vai ser o carácter do século. Imagino eu que o Dr. Durão Barroso queira, com aquela sua afirmação, significar que os tempos em que os conflitos entre os países se resolviam pela via militar já lá vão e que neste século que vivemos a paz será o estado normal, com a diplomacia a substituir definitivamente as armas.
Este tipo de afirmações faz parte de uma certa ideia perigosa de evolução do mundo que acompanharia igualmente uma “apressada” evolução das próprias pessoas que, no entanto, é permanentemente desmentida pela realidade. A evolução tecnológica apenas serve melhor ou facilita a vida às pessoas que, no seu interior, evoluem de uma forma muito mais lenta, ainda que a educação consiga encobrir ou mesmo limar muitas das emoções e sentimentos ancestrais que levam às mais diversas violências.
Mais uma vez a História nos ensina muito sobre a Humanidade e os avanços e recuos civilizacionais, que deveriam ser do conhecimento dos líderes políticos, mas infelizmente parecem não o ser, provavelmente porque o seu tempo de formação humanística e cultural foi gasto noutras actividades.
Ao ouvir aquela afirmação de Durão Barroso, não pude deixar de me recordar do que se passou há menos de cem anos, após a I Grande Guerra começada, no fundo, por razões fúteis que nada levaria a pensar que pudessem levar àquela desgraça.
No rescaldo do Tratado de Versalhes, a Sociedade das Nações aprovou em 1924 o “Protocolo de Genebra” visando a abolição total e definitiva da guerra, pelo que os seus membros se comprometiam a reduzir os armamentos nacionais. Os países disponibilizavam-se mesmo a confiar a sua segurança a um órgão internacional que agiria no caso de ameaça de agressão. Tratava-se, de facto, de abolir o direito das nações a fazer a guerra, pelo que esta seria substituída por pressões económicas e financeiras.
Depois de alguns anos em que um apreciável número de países foi assinando o “Protocolo de Genebra”, chegou-se ao ano de 1929, em que a Sociedade das Nações fez entrar em vigor o “Pacto Kellog-Briand”, que bania a guerra, a que se seguiu, ainda no mesmo ano, o “Acto Geral”, para resolver os litígios internacionais pela via da conciliação.
Tudo boas e excelentes intenções, como a História nos ensina. As responsabilidades financeiras decorrentes da “culpa da guerra” previstas no Tratado de Versalhes tornavam-se cada vez mais motivo de acesas discussões e discórdias entre as nações. Hitler começava já o seu caminho na Alemanha, berrando pelo não pagamento de qualquer reparação. As forças armadas alemãs iam-se discretamente reconstruindo às escondidas, violando o Tratado de Versalhes, principalmente através das instalações militares desenvolvidas em segredo na União Soviética através de um acordo secreto com Estaline que assim conseguia importantes avanços tecnologias nessa área. Passados poucos anos, a Europa e o resto mundo desembocaram na tragédia que foi a II Grande Guerra ainda hoje tão pouco conhecida, designadamente nas suas causas e ambiente internacional em que surgiu.
Tudo isto é História e deveria servir para nos alertar sobre o que se passa hoje, não permitindo aos actuais líderes que venham a cometer erros do passado.
Infelizmente, o leitor terá certamente encontrado pontos de contacto da actual situação decorrente da anexação da Crimeia por Putin e resposta europeia e americana com sanções económicas, com o que se passava há quase cem anos. Nada de novo, porque as emoções primordiais que levam aos conflitos entre as nações continuam vivas, bem como a necessidade de muitos políticos as utilizarem para os seus fins.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de março de 2014

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