segunda-feira, 25 de agosto de 2014

AINDA OS BANCOS



A lista dos bancos que, um pouco por todo o mundo, têm mostrado faltas graves na sua actividade é extensa e parece estar sempre a crescer, tendo-se-lhe juntado agora o Bank of America que aceitou pagar 16,65 mil milhões de dólares em multas e indemnizações a clientes a quem vendeu produtos financeiros tóxicos. Nomes sonantes da banca internacional como o JPMorgan Chase, o Citigroup, o HSBC ou o Barklays têm andado nas bocas do mundo e nas barras dos tribunais por passarem reiteradamente e de forma grave a fronteira da ilegalidade e, acima de tudo, da decência. E não se pense que tudo isto surge de falta de regulação ou de fiscalização, porque tem mesmo muito a ver com atitudes deliberadas dos seus responsáveis ao mais alto nível, recordando-se aqui a fuga do CEO do Anglo Irish Bank da Irlanda para os Estados Unidos onde abriu falência, para não pagar os 8,5 milhões de euros que ele próprio devia ao banco.
Na segunda metade do século XX e no actual surgiram rápidas e profundas alterações em toda a organização financeira que acompanharam as profundas mudanças económicas relacionadas com a globalização e a facilidade de deslocação de pessoas e bens. 

As transacções financeiras aproveitaram os meios tecnológicos à disposição e passaram a fazer-se a uma escala verdadeiramente planetária a uma velocidade antes impensável. A banca comercial tradicional foi invadida pela banca de investimento que inundou a economia de produtos financeiros “derivados” que a partir de certa altura ninguém sabia bem a que correspondiam na realidade. Os próprios instrumentos de segurança contra as flutuações de taxas de juro tornaram-se verdadeiro fogo nas mãos de quem os subscreveu. As autoridades que superintendem na actividade financeira ficaram manietadas e perdidas no novo contexto, perante a dificuldade política de rever adequadamente e em tempo útil todo o edifício legislativo que define as regras da finança.
Em Portugal não fugimos à regra. Quando a crise de 2008 nos bateu à porta, vivíamos num mundo fantasista que pressupunha todo um contexto que já havia desaparecido há anos. Com as melhores intenções e a maior incompetência atirámos com dinheiro para cima dos problemas, dinheiro esse de empréstimo externo, criando investimento para “puxar” pelo consumo interno, à boa maneira keynesiana. Isto, quando não tínhamos moeda própria para poder imprimir notas nem para mexer no câmbio. Secando o financiamento à economia, os bancos viram-se reduzidos ao papel de obter financiamento junto do Banco Central Europeu para o colocar em papel de dívida pública, já que o Governo estava impedido de o fazer, pelas regras comunitárias.
Com tudo isto a banca portuguesa também não passou incólume pela crise. Por diversas razões, diversos bancos nacionais expuseram as suas fraquezas aos olhos de toda a gente, com consequências diferentes. Foram os casos do BPN, BPP e mesmo do BCP.

Entretanto a União Europeia desenvolveu um novo modelo para actuar nos bancos quando algum deles vai à falência com riscos para a economia. Portugal transpôs essa norma para o direito interno e esse modelo foi aplicado agora ao BES. Através do “Fundo de Resolução” em que todos participam, o conjunto de bancos portugueses foi chamado a intervir num novo banco criado para o efeito que ficou com a parte “boa” do antigo BES e que deverá ser vendido o mais rapidamente possível. Como este Fundo é recente e ainda não dispunha de capacidade financeira suficiente, o Estado fez-lhe um empréstimo de dinheiro ainda remanescente da Troika. 

Como resultado, se o novo banco for vendido por um valor acima do dinheiro lá metido, o empréstimo é devolvido e os resultados divididos pelos bancos através do Fundo de Resolução; caso contrário, são os próprios bancos que assumem o prejuízo na devolução do empréstimo, na parte que lhes corresponder. Isto é, neste momento, são os bancos que estão interessados no sucesso da operação, evitando mesmo acções concorrenciais que possam baixar o valor do novo banco que agora é deles próprios.
Como se vê, não se trata de uma nacionalização e sim de um processo que mete todos os intervenientes numa embarcação a remar para o mesmo lado, sob o risco de todos perderem.
Como resultado final, o banco será vendido a estrangeiros, mas neste momento já é mais ou menos isso que se passa com toda a banca privada portuguesa.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Agosto de 2014

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

ESTADO ISLÂMICO: OS DOIS INIMIGOS SISTÉMICOS



Após ter tomado controlo de uma parte de território sírio e iraquiano incluindo Mossul a segunda maior cidade deste ultimo país, Abu Bakr al Bagdadi decidiu deixar cair o “Estado Islâmico do Iraque e do Levante – EIIL)”, declarando estar fundado o “Estado Islâmico” (EI), o novo califado de que ele próprio se nomeou califa. O “EI” pretende reconstituir o califado Omíada que terminou em 750, e que se estendia desde a Península Ibérica até à Ásia onde hoje se situam o Paquistão e o Afeganistão.
Califado significa forma islâmica de Governo que segue à risca a teologia islâmica, sendo portanto um puro estado teocrático. Para o EI, quem não seguir fielmente as orientações definidas pela Sharia é considerado inimigo. Como tal, membros de minorias religiosas são colocados perante três hipóteses: converter-se ao islã sunita, pagar um imposto ou ser executado. Nestas minorias contam-se os cristãos, mas também yasidis e mesmo xiitas. Nem os próprios sunitas estão livres de perseguição, se a sua moderação não os levar a colaborar completamente com o EI, como se comprova pela chacina pelos jihadistas de 13 clérigos sunitas moderados em Junho passado. Uma das formas de impressionar e atemorizar quem não apoia completamente o EI é filmar as chacinas e coloca-las na internet; outra forma é cortar as cabeças dos mortos e coloca-las aos pés dos próprios assassinos jihadistas que as mostram com orgulho. Chegou-se ao grotesco de um combatente jihadista nascido na Austrália ter colocado uma cabeça humana nas mãos do filho de 8 anos e ter publicado a foto na net com o comentário “este é o meu rapaz”.
O chamado Estado Islâmico ocupa actualmente parte da Síria e boa parte do Iraque. 

No norte deste país, na região de Ninive, perseguiu violentamente os Yasidis que seguem um culto religioso anterior ao islamismo. Depois de chacinas em que os militantes do EI mataram pelo menos 500 Yasidis, enterrando boa parte deles ainda vivos incluindo bebés e levando centenas de mulheres como escravas, dezenas de milhares de Yasidis fugiram para a montanha vizinha, ficando expostos à fome e à inclemência do tempo, cercados pelos islamitas sem ter para onde fugir mais. Foi esta a razão dos bombardeamentos aéreos americanos e ingleses da semana passada que abriram corredores de fuga, com a ajuda dos curdos, permitindo o resgate de boa parte dos fugitivos.

O EI elegeu como inimigo todo aquele que não concordar com a teologia islâmica tal como eles a vêem, o que quer dizer, basicamente todo o resto do mundo, incluindo o desenvolvimento civilizacional que nos trouxe até ao que somos hoje. É o seu primeiro inimigo sistémico, que se pode considerar exterior.
Mas, como se não fosse suficiente, o “EI” definiu ainda um segundo inimigo sistémico, desta vez interior, mesmo dentro das suas próprias casas.
Nas fotografias que se recebem diariamente do chamado Estado Islâmico há algo que ressalta à evidência. Só se vêm homens, a cavalo ou em jipes ou furgões, armados até aos dentes. Também nas reportagens de chacinas, só se vêm homens a matar, nunca mulheres. Estas aparecem de fugida, ao fundo das imagens, escondidas dos pés à cabeça. Ou então em filmes de castigos contra as mulheres “pecadoras” provavelmente apenas por saírem à rua com a cara descoberta, semi enterradas e a serem lapidadas até à morte no meio de grande algazarra feita por homens, apenas homens. O novo “Estado Islâmico transformou a mulher num ser inferior, sem qualquer papel social, para além de servir os jihadistas. E não será por acaso que assim acontece. Na realidade, nenhum de nós imaginaria uma mãe a regozijar-se por ver um filho seu como o jihadista australiano o fez, ou mulheres a fazerem-se fotografar com uma série de cabeças humanas decapitadas aos pés.
Não, estimado leitor, não estou a delirar nem a descrever situações de há mil anos ou mais. Isto está neste mesmo momento a passar-se naquele que foi o berço da civilização. Este delírio destrutivo colectivo deverá estar condenado a desaparecer sem reconstruir o velho califado, mas também sem que as consequências para milhares de pessoas possam ser reparadas. E, tal como se devem condenar actos passados há centenas de anos como as cruzadas ou a inquisição, ou mais recentemente o holocausto, por maioria de razão a nossa voz não deve calar-se perante a barbárie nos nossos dias.

 Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Agosto de 2014

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

PERPLEXIDADE


O actual ministro da Economia reagiu ao sucedido no BES e na PT, manifestando publicamente uma enorme perplexidade traduzida na exclamação: estas situações "são completamente atípicas e, acima de tudo, inexplicáveis".
De facto, para alguma quase-elite portuguesa deslumbrada, o que se tem passado nos últimos anos é inexplicável e, acima de tudo, motivo uma enorme perplexidade. Já para o português comum, infelizmente não é nada surpreendente, vindo na esteira do que se tem passado no nosso país há séculos.
Portugal teve um período histórico de grande notoriedade quando, muito por acção de uma mulher inglesa que veio casar com um rei nosso e que educou os seus filhos de uma forma diferente do habitual entre nós criando a chamada “ínclita geração”, se virou para o único lado que podia para crescer e deu origem aos descobrimentos marítimos. Após essas dezenas de anos ainda teve alguma importância internacional, mas afundou-se numa exploração miserável de escravos e das riquezas ultramarinas, sobretudo do Brasil. Até chegar ao início do século XIX em que o rei e toda a corte fugiram para o Brasil perante a invasão francesa, abandonando o povo à sua sorte, isto é, à completa destruição e roubo de tudo o que tinha algum valor e à morte de milhares de portugueses e miséria absoluta dos sobreviventes. Após o que seguiu uma guerra civil entre facções de dois irmãos, cada um pior que o outro em todos os aspectos, deixando o país ainda pior do que estava, se é que tal era possível. 
Vinda a paz, continuou a degradação do regime, até ao Ultimato Inglês e à bancarrota que só acabámos de pagar poucos anos antes do século XXI. À Monarquia em que no fim o próprio rei se queixava de ser rei de uma república, seguiu-se a Primeira República que, de tal confusão que foi, deu logo origem a uma ditadura militar que, por sua vez, vendo-se incapaz de governar, tratou de chamar um catedrático de finanças de Coimbra para o fazer. E Salazar governou como sabia e como quis: em ditadura, sem partidos políticos e portanto sem eleições, cuidando de todos os aspectos da vida do país como se fosse a sua própria casa. Desaparecido Salazar, o seu sucessor Marcelo Caetano enredou-se nas suas indecisões ficando apenas o tempo necessário para ver o regime cair sem ninguém para o defender.
Vinda a Democracia com o 25 de Abril, e após os tempos habituais de confusão que normalmente se seguem aos golpes de estado, rapidamente entrámos em falência por duas vezes com a chamada do FMI para nos valer. Após o que Mário Soares, olhando à sua volta, terá concluido que com aquela gente que via a nossa economia não tinha hipóteses de crescer a sério. E tratou de chamar os antigos que se tinham ido embora. Voltaram assim Espíritos Santo, Mellos, Champalimaud e até Jardim Gonçalves ainda bancário, mas convidado a fazer um Banco privado a sério. Cuidava Mário Soares que assim restauraria a elite económica do país e o recolocaria nos índices de crescimento dos fins dos anos sessenta, inícios de setenta. 
Depois de centenas de milhares de milhões de euros vindos da EU, acabámos novamente por ir à falência e vemos agora esfumar-se à nossa frente um dos principais grupos económicos, com um ministro da Economia a olhar espantado sem perceber nada do que vê e a dizê-lo publicamente.
O que há de comum em toda esta História?: não um povo incapaz ou calaceiro que, quando vai para fora, produz mais e melhor que muitos outros O que há de comum, em permanência secular, é a não existência de elites capazes e empreendedoras. Se, desde os descobrimentos até ao fim do século XIX, a elite nacional era constituída por uma aristocracia caduca e ridícula nas suas preocupações de manifestação de importância, quer fosse ultramontana ou liberal, no século XX viveu quase sempre à sombra do poder político e dele dependeu. Mário Soares, na sua santa ingenuidade, acreditou que com as antigas elites reconstruiria o país. Infelizmente enganou-se. Vemos hoje como boa parte dessas supostas elites não é capaz de trabalhar e produzir em regime liberal e aberto de sã concorrência, preferindo conúbios mais ou menos secretos com o Estado e negociatas com fugas às responsabilidades fiscais que todos os cidadãos partilham.
Não precisamos de elites pseudo aristocráticas com falso brilho e podres por dentro. O que Portugal precisa é de elites económicas e empresárias capazes de criar um lastro estabilizador que permita uma navegação do país rumo ao crescimento e desenvolvimento, independentemente de políticos e das navegações à vista.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Francisco Martins


Quando parte um artista é habitual dizer-se que a cultura fica mais pobre; quando esse artista é conterrâneo poderá dizer-se ainda que a cidade ficou mais pobre; quando esse artista é um Amigo, que nós ficamos mais pobres. Mas quando parte um Homem que aliou toda a sua vida de cidadão exemplar a uma intervenção artistica verdadeiramente única é toda a comunidade que perde, muito para além de nós mesmos, da cidade ou da própria cultura.
A forma musical a que se convencionou chamar fado de Coimbra ou canção de Coimbra,distinção que para o caso pouco interessa, teve em Francisco Martins um cultor verdadeiramente único. Claro que era um executante da guitarra portuguesa com rara sensibilidade, vocação artística que descobriu bem novo e que desenvolveu a um nivel elevado, muito pelo que recolheu da sabedoria do grande artista que foi António Portugal, que aliás contou com ele no seu disco notável “Flores para Coimbra”.
Mas Francisco Martins foi muito mais do que um grande intérprete, o que já não seria pouco. Foi um compositor excepcional, que publicou três discos que são autênticas jóias musicais. Curiosamente, os albuns sairam de dez em dez anos, durante trinta anos: em 1986 “Canção da Primavera”, em 1996 “Primavera 2” e em 2006 “Convívios musicais”. De notar que nos dois primeiros contou com o seu colega médico e amigo de sempre Rui Pato à viola, que não pode ser esquecido quando se fala da obra discográfica de Francisco Martins. Ao referir as composições de Francisco Martins, não falo propositadamente de música de Coimbra, porque isso seria claramente uma redução, dado que a sua qualidade a torna um património não restrito à Cidade ou mesmo ao País, merecendo ser amplamente conhecida e interpretada.
Francisco Martins não se restringiu a ser um músico, muito antes pelo contrário. Foi um médico distinto, era uma pessoa admirável na sua maneira de ser, amigo dos seus amigos e sempre pronto a receber e a partilhar dos problemas dos outros.
O contacto directo com Francisco Martins, que cultivava uma forma de ironia subtil, era sempre estimulante e agradável, tantas vezes irreverente, mas sempre simpático e amigo. A sua inteligência muito afectiva facilitava o contacto com aqueles que sentia verdadeiros e os convívios tidos com ele ficarão certamente para sempre na memória dos que tiveram o privilégio de com ele contactar ou mesmo ser seus amigos.
As estações do ano continuarão a suceder-se após a sua partida. Mas em todas elas a sua “Canção da Primavera” nos acompanhará com a sua beleza intemporal, quer seja tocada numa guitarra portuguesa, ao piano ou por uma orquestra.
Obrigado Francisco, pelo legado que nos deixaste a todos, seja a tua saudosa amizade, seja a arte que já não é tua, mas de todos nós e que não é recordação, antes está bem viva para sempre.