segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O FUTURO, PRESENTE



Confesso que não sei se o dito popular que assegura trazer a idade sabedoria é verdadeiro, ou não. O que sei é que, à medida que os anos avançam, muda muito a maneira como vemos o que se passa à nossa volta. Dizia Ortega & Gasset que o homem é ele próprio e a sua circunstância. Passe o relativismo desculpabilizante que, por vezes, possa estar associado a tal afirmação, a verdade é que a experiência associada aos anos de vida não pode deixar de influenciar a percepção do mundo e mesmo a sensibilidade perante o que acontece.
Há um período na vida em que nos sentimos fortes, em que parece que tudo o que fazemos sai bem e em que nos sentimos capazes de mudar o mundo. Quando temos vinte e trinta anos as certezas dominam os nossos pensamentos e as nossas crenças. Normalmente é por essa altura que temos os nossos filhos e até mesmo esses acontecimentos notáveis nos surgem com naturalidade, tal como o seu crescimento e desenvolvimento. Ao fim e ao cabo, o acompanhamento dos filhos até ganharem asas e voarem por eles mesmos dura algumas dezenas de anos de vida em comum, o que cria naturalmente a sensação de que são uma extensão de nós próprios. Ouvi uma vez um cientista Físico dizer que não vale a pena tentar inventar uma máquina do tempo, porque ela já existe: são os nossos filhos, que nos projectam no futuro. Isto sensibiliza-nos ainda mais para com o sofrimento dos pais que, contra o que é natural, veem os seus filhos partir.
Mas a lei da vida acompanha o tempo que vai passando e, a certa altura, eventualmente outro acontecimento notável nos surge: o nascimento de netos. E damo-nos conta de algo para que ninguém nos avisa e para que não estamos preparados pela experiência da vida.
O surgimento dos netos não depende rigorosamente nada de nós, nem a sua vida nos estará nunca ligada como aconteceu com o seu pai ou a sua mãe, nosso filho ou filha. E é assim que, quando seguramos esse pequeno ser nos nossos braços, um estranho sentimento nos invade. A sua evidente fragilidade e completa dependência impressionam e assustam mesmo. Quando os nossos filhos, pais destes agora vindos nasceram eram perfeitamente semelhantes, mas essa consciência não era tão vívida como agora surge perante os netos. A circunstância da nossa idade quando somos pais e da perspectiva perante a vida com tanto futuro à frente, parece facilitar a aceitação da fragilidade e da evolução dos filhos e até aligeirar o eventual peso que trazem às nossas próprias vidas. Perante os netos, a naturalidade que havia com os filhos desaparece, surgindo em seu lugar uma clara percepção da vida e das suas contingências. Não vamos ter a responsabilidade directa de os educar e transportar até à sua idade adulta e não devemos sequer ceder à tentação de tentar fazê-lo. Por outro lado, a consciência da nossa idade diz-nos que a maior parte da vida daquele ser humano vai ser passada quando nós próprios já cá não estivermos, o que nos faz imaginar como será o mundo nessa altura e, claro, ter algum receio por isso mesmo.
Mas isso não significa uma menor sensação de responsabilidade interior, nem uma falta de preocupação com o futuro. Na realidade, é perante os netos que surge mais evidente a noção de elo entre gerações. 
Com os netos nos braços, lembramos com enorme clareza os nossos próprios avós e, sobretudo, os nossos Pais, sobretudo se já desaparecidos. Com os nossos filhos de entremeio. Vem à recordação a vida dura dos antepassados nas faldas da Serra da Estrela, sem instrução, mas com enorme educação, como ainda tivemos oportunidade de testemunhar. Recorda-se com carinho infinito os Pais que tudo fizeram para que a minha geração tivesse educação, mas sobretudo a formação escolar que a eles por uma ou outra razão foi vedada. E olhamos para os netos, eles que são filhos de uma geração já com uma outra formação e uma cultura muito superiores a nós próprios e sonhamos para eles um futuro ainda melhor, com mais abertura ao desconhecido, com mais respeito pelo próximo e mais possibilidades de escolha do seu próprio destino. Acima de tudo, esperamos que o mundo em que vão viver seja mais justo e que nele sejam felizes, amados e construtores, eles próprios, de um futuro melhor para os seus descendentes. Na verdade, eles são o futuro, hoje.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 de Fevereiro de 2015

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