segunda-feira, 25 de maio de 2015

UM CONTINENTE EM FUGA




África é hoje um continente em fuga. Em fuga para a Europa, que é o destino que está mais próximo, para além do médio-oriente asiático, de onde também muitos fogem às centenas de milhares, como é o caso da Síria. A tragédia que se passa há anos no Mediterrâneo não é, ao contrário do que muitos julgam, apenas o resultado das chamadas primaveras árabes tão enternecidamente recebidas no ocidente e que resultaram, como se verifica na Líbia e no Egipto, em regimes piores do que os anteriores ou mesmo em regimes nenhuns.
As costas africanas do Mediterrâneo são o ponto final de viagens longas, com origens bem distantes, como sejam a Eritreia, a Somália, a Gâmbia, a Nigéria, o Senegal, o Mali e claro, a própria Líbia. Os emigrantes africanos percorrem milhares de quilómetros até chegarem às margens do Mediterrâneo, sabendo que do lado de lá está a almejada Europa. Já pagaram imenso dinheiro aos traficantes que os levaram até ali, garantindo-lhes chegar até à terra prometida. Para fazer a travessia até à ilha próxima de Lampedusa, à Sicília ou sul de Itália ou de Espanha, os negreiros dos nossos dias, que ganham fortunas com esta actividade, metem-nos em embarcações sobrelotadas, sem as mínimas condições de segurança, para não falar dos “luxos” da salubridade.
Desde o início deste ano, estima-se que mais de 26.000 migrantes tenham entrado em Itália, número semelhante ao dos primeiros quatro meses de 2014. No entanto, enquanto nesse mesmo período do ano passado morreram nesta travessia menos de 100 pessoas, este ano esse número já ultrapassou os 1.700, uma tragédia gigantesca. A Itália, que assegurava por si própria a intercepção naval das embarcações com os migrantes através da operação Mare Nostrum, conseguiu embarcar nos seus navios mais de 140.000 pessoas entre Outubro de 2013 e Outubro de 2014. Essa operação foi substituída por uma outra coordenada pela União Europeia, com os maus resultados que se veem hoje, estando preparada uma nova operação a partir de Junho que tentará destruir as embarcações dos contrabandistas onde elas se encontrarem, a fim de evitar a sua utilização com este fim.
Este mar de gente a sair de África foge a situações bem concretas e conhecidas, como a pobreza extrema, a fome, a guerra, a violência quotidiana e os mais diversos tipos de perseguição que grassam nos seus países.

Herança certamente ainda dos tempos coloniais, muitos europeus possuem uma visão romântica de África, falando frequentemente dos por-do-sol vermelhos, do cheiro da terra, do exotismo das paisagens e dos animais selvagens enfim, de uma natureza diferente e apelativa. Mas não se fala da desgraça dos povos abandonados a si próprios após o fim da guerra fria. De vez em quando mandam-se para lá jipes e carrinhas com umas coisas – migalhas para países de um continente inteiro em sofrimento - e fica-se com a consciência menos pesada. Permitimos e até apoiamos cleptocracias erigidas em governos e permitimos todo o horror que se passa permanentemente da Nigéria à Eritreia. 
Hoje em dia, até os desgraçados dos moçambicanos que trabalham pacificamente na África do Sul são chacinados à catanada por motivos rácicos. Perante isto que faz a ONU? Os países que autorizam e até promovem toda esta situação continuam a ser membros de pleno direito, sem qualquer sanção. Recordamos, e bem, os mortos de Auschwitz, Treblinka e Gulags como exemplos do que não se pode repetir, mas no fundo falamos do nosso próprio passado europeu, calando o que se passa hoje sob os nossos olhos no continente que explorámos durante centenas de anos.
Os africanos fogem em massa de um continente onde quase tudo está errado e onde, em muitos países, não estão minimamente garantidas as condições básicas de sobrevivência e segurança. A tragédia humana que se passa no Mediterrâneo é apenas o que se vê de um iceberg dantesco do tamanho de um continente. A nossa sensibilidade é agitada pelas imagens terríveis dos barcos apinhados de fugitivos e dos corpos resgatados de pessoas afogadas aos milhares, e este problema concreto tem de ser resolvido de imediato, mas que o mundo não continue a ignorar o que se passa no continente africano, isso sim, uma tragédia a nível planetário.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Maio de 2015

Sem comentários: