segunda-feira, 22 de junho de 2015

Lições da História: Waterloo




Há personagens históricas que, pela força que delas emana, exercem um forte fascínio generalizado, ainda que a sua acção concreta tenha levado aos maiores desastres. Napoleão foi definitivamente derrotado em Waterloo há duzentos anos, em 18 de Junho de 1815, numa batalha mortífera cujo desfecho teve muito a ver com o acaso, mas que definiu os caminhos europeus por quase cem anos. No entanto, quem olhar para a História, dificilmente dirá que foi derrotado. Apesar de ter ocupado militarmente quase toda a Europa, Napoleão ainda hoje goza de uma aura que dificilmente se coaduna com o que fez durante a sua vida.
Napoleão revelou-se desde jovem como um militar brioso mas, fundamentalmente, desenvolveu um talento excepcional, primeiro do ponto de vista táctico, de comando de tropas no campo de batalha, e depois também como estratega, organizando campanhas militares de grande dimensão e criando as condições para o seu sucesso através de soluções inovadoras que duram até hoje.
Os seus homens seguiam-no cegamente, resultado de um carisma pessoal e de uma coragem na batalha que lhe conferiam uma poderosa voz de timoneiro sobre todos os que o seguiam. Conta-se o exemplo do Marechal Ney, um dos seus mais brilhantes comandantes, que aliás esteve com Massena no Buçaco. Quando Napoleão foi exilado para a Ilha de Elba, Ney, conhecido como “o bravo dos bravos”, prestou juramento de fidelidade ao regime de Luis XVIII. No entanto, quando Napoleão regressou para continuar no seu sonho louco de conquistar a Europa, Ney juntou-se-lhe de novo entusiasticamente. Após a derrota de Waterloo, quando colocado perante o pelotão de fuzilamento, o Marechal recusou a venda e deu a ordem de fogo sobre ele próprio, gritando que tinha participado em muitas batalhas, mas nunca contra soldados franceses.

A personalidade muito própria de Napoleão, que se considerava um predestinado, continuou a mostrar-se, mesmo depois de exilado definitivamente para a Ilha de Sta. Helena, onde veio a morrer. Aí se dedicou obsessivamente a ditar as suas memórias, para evitar que viessem a ser escritas de forma que, a seu ver, não fosse verdadeira e lhe tirasse o lugar na História a que achava que tinha direito.
Poucos anos após a sua morte, as suas cinzas foram levadas para os Inválidos em Paris, contando-se que as exéquias foram acompanhadas por mais de um milhão de franceses. O seu mito continuava vivo, o que acontece até hoje, sendo das personagens históricas mais populares entre os franceses, que recordam apenas as glórias militares e o entusiasmo que suscitava, principalmente entre o povo, esquecendo tudo o que de negativo teve.
Ainda hoje, mesmo entre nós portugueses que fomos invadidos e onde as tropas francesas praticaram os maiores desmandos, provocando sofrimento indizível, o nome de Napoleão não provoca a repulsa que seria de esperar. Mesmo Churchill, que detestava tudo o que tinha a ver com a revolução Francesa e a sequência que Napoleão lhe deu, levando a guerra a toda a Europa e sagrando-se a si próprio Imperador, tinha uma confessada admiração pelo seu génio militar.
De facto, Napoleão exerceu sempre um fascínio sobre os que o apoiavam, mas também sobre muitos que, não o apoiando ou mesmo guerreando-o, lhe reconheciam qualidades excepcionais, fundamentalmente do ponto de vista militar.
Napoleão foi talvez um exemplo à parte, por demasiado conspícuo, mas muitas pessoas, nomeadamente políticos, se consideram predestinadas para a sua acção na sociedade. Observam todas as circunstâncias da sua vida como concorrendo para o seu destino excepcional, pelo que por vezes se acham mesmo no direito de exercer a sua acção com a maior ferocidade de que se forem capazes. E é assim que, mostrando capacidade de definir objectivos superiores e a força interior para os conseguir seja de que maneira for, conseguem impressionar e transformar em seguidores mesmo quem à partida não se imaginasse que estivesse disponível para tal. Suscitam ódios, mas também uma admiração e até uma irracional e cega submissão e mesmo crença em tudo aquilo que dizem ou que fazem. Napoleão teve um primeiro exílio mais ou menos dourado em Elba e acabou os seus dias longe de tudo em Santa Helena. Diz-se que a História se repete sempre, sendo a segunda vez apenas uma farsa e bem andaríamos todos, se tivéssemos consciência dos exemplos históricos para a nossa vida. Poupar-nos-íamos a nós e, eventualmente aos outros, a tristes experiências.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Junho de 2015

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