segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Pequena reflexão, no dia que lhe é dedicado

Sábado de manhã a escrever a crónica semanal em dia de reflexão. As eleições são amanhã e esta crónica será publicada na segunda-feira, já depois de conhecidos os resultados eleitorais e terem acontecido as consequências políticas mais importantes, para além dos festejos dos vencedores. Como habitualmente, folha branca e caneta ao lado do computador, para alinhar tópicos a desenvolver. Um assunto se impõe: eleições.
As eleições deste fim-de-semana vão ficar para a História. Eventualmente pelos resultados, mas desde logo pelo seu circunstancialismo verdadeiramente excepcional.
Imagine quem me está a ler que, na parede de fundo da sua sala de jantar, tem o quadro Guernica de Picasso. Sim, eu sei que só pelas suas dimensões tal seria difícil, eu próprio já me emocionei algumas vezes perante a pintura, pelo que a conheço bem. Mas deixe esse aspecto de lado e imagine que todos os dias almoça e janta com as crianças e restante família tendo a Guernica como fundo. Significaria isso que mesmo durante esses períodos de leve convívio e confraternização agradável e bem-disposta, não deixaria de ter como pano de fundo a guerra, a destruição, o ódio, a desgraça da barbárie, o sofrimento atroz e os gritos de socorro eternizados genialmente por Picasso. O que, deve dizer-se, não é propriamente boa companhia para os momentos de lazer e convivência, pelo que quem almoçasse numa tal sala só tinha duas hipóteses: ou nunca mais lá almoçava, ou de alguma maneira esquecia que o quadro estava ali, transformando-o mentalmente numa simples peça de decoração sem significado intrínseco.
Ora bem, o que se passou nestas eleições foi uma situação semelhante, que obrigou de alguma forma os portugueses a almoçar numa sala com a Guernica ao fundo, fazendo os possíveis e impossíveis por não dar por ela.
Portugal é o país em que o principal responsável durante dezenas de anos por um dos maiores bancos está detido com suspeitas de fraudes e sei lá que mais crimes económicos. Ricardo Salgado foi durante anos a face do banco e do grupo económico a que presidia, por escolha da restante família. Mas foi muito mais do que isso. Socialmente era o expoente de uma determinada elite que fugia às capas das revistas ditas sociais; ao contrário dos arrivistas que se pelam por lá aparecer, aquela família pagava o que fosse preciso para se manter fora das fotografias. E tinha-se a noção de que pairava acima das restantes pessoas, quer pela atitude, quer pelo poder que se adivinhava só pela sua presença. Poder real, dado que o seu banco era claramente aquele que mais claramente se relacionava com a economia e as médias e pequenas empresas mas, e sobretudo, pela participação do grupo nos maiores negócios do país, naqueles em que o Estado tinha uma palavra decisiva. Falo, como é bom de ver, nas telecomunicações e nas diversas parcerias publico privadas que transformaram as obras públicas em simples justificação para negócios financeiros. Tudo ruiu fragosamente perante o descalabro de contas que se tornaram impossíveis de esconder e o homem que era o maior responsável por aquele império está detido, aguardando pela conclusão de processos que se adivinham numerosos e pesados, não só em Portugal, mas também em pelo menos meia dúzia de países com a Suiça à cabeça.

Mas esta não é a única detenção de pessoas importantes que a Justiça manteve durante os meses que antecederam estas eleições. Vários políticos de topo se viram a braços com processos judiciais relacionados com actividades ilícitas como corrupção e troca de favores durante o exercício de elevadas funções como governantes ou agentes superiores do Estado, pelo que passaram esta campanha detidos. À cabeça está, como é evidente, o anterior primeiro-ministro de Portugal, não cabendo aqui comentar ou analisar da justeza ou não da actuação da Justiça neste caso, bastando apenas para o caso dar nota de que a situação existe e é ineludível.
Tal como podemos fazer por ignorar o quadro de Guernica na sala de jantar, a realidade de fundo destas eleições foi esta. Para além das questões evidentes da vinda e saída da troika, da austeridade e sacrifícios dos portugueses, das contas do Estado, da evolução económica, da emigração, do desemprego, das exportações etc. etc. havia algo de que não se falava, mas que estava sempre presente.
Portugal é um país com muitos séculos de História. É mesmo o pais europeu que tem as suas fronteiras estabilizadas há mais tempo. Os portugueses já passaram por muito ao longo de todos estes séculos e adquiriram um saber e um sentir colectivos que ultrapassam em muito questões pontuais, por mais relevantes que elas pareçam quando surgem.

O facto de os portugueses, embora bem conscientes do circunstancialismo excepcional destas eleições, terem mantido a serenidade, demonstrando um civismo exemplar e uma cultura democrática superior durante estas eleições e todo o longo período de campanha que as antecedeu é o mais importante que fica, muito para além da sua vontade política expressa nos votos no dia de amanhã.
Nota: foto de votantes inserida posteriormente neste texto.

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