segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A Golpada

Com diminuta frequência, pelo menos relativamente àquela que eu preferiria, tenho de vez em quando comentado nestas crónicas algumas obras de arte que me chamam mais a atenção, umas vezes livros, outras pinturas, mais vezes composições musicais. Por alguma razão que eu próprio não descortino, nunca sucedeu escrever acerca de um filme, embora o cinema esteja claramente dentro dos meus interesses e seja na actualidade uma das formas de arte mais relevantes pelo impacto que tem na sociedade e em cada um de nós.
Na passada quinta-feira, um dos canais de televisão passou um filme que me deu muito gosto rever, alguns anos depois de o ter visto pela primeira vez. Com o nome original “The Sting”, o filme recebeu em Portugal o nome de “A Golpada”.e foi um tremendo êxito de bilheteira logo após a sua estreia em 1973, tendo mesmo recebido vários Óscares. Trata-se de uma comédia dirigida pelo realizador George Roy Hill baseada na actividade de dois vigaristas que resolvem montar um esquema para enganar um banqueiro poderoso. Os papéis dos dois personagens principais são representados pelos actores Paul Newman e Robert Redford, a mesma dupla fabulosa do não menos fantástico filme “Butch Cassidy and the Sundance Kid”, sendo a vítima da burla representada por Robert Shaw, o que diz logo da qualidade da representação.
Ao longo do filme, que se passa na Chicago dos anos trinta com o que isso tem de significativo em si mesmo, vão surgindo as diversas fases da construção da “golpada” que passa por ir convencendo e dando confiança crescente á vítima, em preparação para o grande golpe final em que irá perder uma enorme quantidade de dinheiro. Desde a montagem de um cenário fictício em que todos os supostos intervenientes como empregados, jogadores, etc. são participantes da farsa, até à própria participação da polícia também ela enganada e envolvida nos esquemas montados com vista a demonstrar credibilidade junto do enganado, tudo vai acontecendo de forma programada para atingir o objectivo final. O conto do vigário, em que a vítima é levada ao convencimento de que ela é que está a levar o vigarista ao engano, é a demonstração de como a mente humana perversa é a que mais facilmente se deixa levar por quem a sabe manipular. O realizador vai-nos conduzindo pelo enredo, à medida que os factos se vão desenrolando, não se sabendo se o que vamos vendo é verdade ou apenas o engano de cada um dos personagens
O filme foi feito com base num romance de David Maurer aparentemente inspirado em factos reais pelo que, mais uma vez, a arte segue a vida real e não o contrário. Nas mais variadas áreas da vida surgem pessoas que conseguem definir objectivos difíceis e mesmo genericamente tidos como impossíveis, atingindo-os através da manipulação inteligente de adversários e acompanhantes. Nestas actividades, antes de se chegar ao fim, ninguém sabe em que lado está, podendo imaginar estar num lado quando na realidade está noutro, trocando-se de perspectiva à medida que os enredos avançam, sendo o manipulador o único que sabe onde está e o que pretende, de princípio ao fim. Por vezes, o próprio fim é percepcionado de forma errada pelos intervenientes que, eventualmente, só muito mais tarde se vêm a aperceber do que realmente se passou e a maneira como foram enganados, pensando ter ganho alguma coisa.

Por vezes ficamos com a sensação de que o manipulador tem o seu maior gosto no processo em si e não apenas ganhar o que quer. No diálogo final de a “Golpada” Henry Gondorff representado por Newman, na sequência de uma conversa anterior sobre os motivos daquelas actividades, pergunta a Johnny Hooker representado por Redford se o gozo do sucesso não é realmente suficiente. A resposta do parceiro da vigarice, certamente a pensar no que ganhou, é que não e nesse momento hesita, acrescentando que anda lá perto. Nos filmes, à acção segue-se a passagem das informações sobre o filme, que servem para nos devolver à realidade. Na vida real, o sucesso ou insucesso das manipulações vem depois, para além da acção espectacular, quando normalmente se conclui que não é possível enganar toda a gente ao mesmo tempo, durante muito tempo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Novembro de 2015

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