segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

800 anos da Magna Carta



No mês de Junho de 1215, o Rei João de Inglaterra, que se tornaria conhecido como João sem Terra, assinou um documento que, no seu art.º 39º e, numa tradução livre, estabelecia:
“"Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra."
Em plena Idade Média, o Rei reconhecia um limite aos seus poderes e uma garantia à liberdade dos súbditos.
Claro que João sem Terra não assinou o que ficou conhecido como Magna Carta com grande gosto, nem sequer com intenção de a vir a cumprir na sua totalidade. As suas sucessivas derrotas militares e o afrontamento ao papa Inocêncio III ao não aceitar a nomeação do Arcebispo de Cantuária, tinham-no levado a uma situação de fragilidade perante os nobres do reino que colocava em perigo a sua situação como rei. Depois de se humilhar ao aceitar o nomeado pelo Papa, colocando-o assim do seu lado, o Rei João aceitou igualmente os termos da Magna Carta, que limitava seriamente os seus poderes. Havia mesmo um artigo que estabelecia um conselho de 25 nobres com o direito de ficarem com todas as posses do rei, caso ele não cumprisse alguma das regras do tratado. Passado um escasso mês sobre a assinatura, João escreveu ao Papa a pedir a anulação da Magna Carta, o que conseguiu, dadas as suas novas boas relações com Roma.

O documento, mesmo com alterações e mesmo anulações de algumas partes, como a referente ao conselho dos 25 nobres, sobreviveu ao longo dos anos como inspiração para futuras constituições. Os pais fundadores da Constituição Americana vieram no final do século XVIII a tomar a Magna Carta como documento seminal para a definição das liberdades individuais e limite da acção do Estado perante o indivíduo e para a definição do princípio fundamental da “não taxação, sem representação”.
Recordo que, entre nós, a primeira Constituição data de 1822, tendo tido vida curta, já que foi substituída em 1826 pela Carta Constitucional que vigorou com diversas alterações até à implantação da República em 1910.
A originalidade e importância da Magna Carta, oitocentos anos depois da sua assinatura, mantém-se no respeito do Estado perante os cidadãos e no direito destes a julgamento justo em vez da arbitrariedade do poder.
Nestes dias em que tudo é posto de novo em causa por discussões sobre direitos individuais fundamentais como a liberdade de imprensa e de opinião perante poderes religiosos, militares, políticos e económicos, ir buscar os fundamentos da nossa liberdade e civilização ao fundo dos tempos é, não só uma comemoração mas também uma necessidade. Oitocentos anos de Magna Carta não são uma pertença apenas da História de Inglaterra, mas de toda uma sociedade liberal que tem sobrevivido aos ataques dos mais diversos radicalismos que, sistematicamente, têm tentado substituir os direitos dos indivíduos pelos interesses do Estado. 
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Janeiro de 2014

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Ele anda (ainda) por aí



Poucas vezes na História da Humanidade se poderá dizer que o “Mal Absoluto” tenha andado à solta no mundo como nos tempos que vão desde os anos em que Hitler iniciou o caminho para a tomada do poder na Alemanha para o seu “Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores” até ao fim da Segunda Guerra Mundial. As paradas gigantescas nem sequer tentavam esconder a verdadeira essência do Partido Nacional Socialista; antes pelo contrário, acentuavam-na com orgulho. O negro preponderava, apenas cortado pelas suásticas vermelhas, numa encenação teatral que elevava o fanatismo cego e acrítico aos limites do intolerável para qualquer pessoa livre e racional. Cerimónias essas que pretendiam aparecer como celebrações religiosas dirigidas por alguém com poder mais que humano sobre os participantes: o próprio Hitler. As atitudes dos nazis alemães para com os desgraçados eleitos como inimigos, fossem judeus, homossexuais, ciganos ou simples deficientes mostravam uma frieza e uma falta de princípios e de humanidade completas. Todos aqueles que pudessem constituir alguma ameaça ao “nacional socialismo” pela diferença de ideias políticas foram varridos do mapa. Durante o período de ascensão ao poder, enquanto o velho Presidente Paul von Hindenburg não o fez chanceler, Hitler constituiu uma milícia para-militar do próprio partido, as SA, que se encarregaram de andar pelas ruas a fazer o trabalho de limpeza étnica.

 Vale a pena recordar que, quando tomou o poder, Hitler de imediato colocou a polícia do Estado a trabalhar para si, tirando o poder às SA e liquidando as suas chefias, com Ernst Röhm à cabeça acusado de bolchevismo, na célebre noite das facas longas.
O fundamentalismo islâmico dos nossos dias replica (à sua maneira) todos os aspectos descritos do nazismo, não lhe faltando mesmo a negritude das indumentárias e das bandeiras. O auto intitulado estado islâmico, na sua luta para constituir um verdadeiro Estado, tem seguido todas as técnicas usadas por Hitler nos anos 20 e 30 do século XX para atingir o mesmo fim. 
Todos os que não seguem a lei (sharia) por eles imposta, baseada numa visão própria do Islão, são procurados nas suas casas e barbaramente aniquilados, homens, mulheres e crianças, em espectáculos dantescos. Aos homossexuais, atiram-nos do alto de prédios altos, enquanto multidões assistem ao acto; acusados de actos não sociais são atados a cruzes e mortos de forma indescritível; mulheres acusadas de adultério são mortas à pedrada por essa gente louca; tudo isto, enquanto os clérigos, de livro sagrado na mão, verificam se tudo é feito de acordo com o prescrito pelo profeta. A Amnistia Internacional publicou por esses dias um relatório que prova exaustivamente, com datas e locais, a limpeza étnica sistemática levada a cabo pelo ISIS no território do Iraque e é assustador. 

Na Nigéria, o grupo islâmico extremista local, o Boko Harum, tem levado a cabo morticínios incontáveis em aldeias cristãs, mas também muçulmanas, arrasando territórios e cidades inteiras para tomar conta de um dos países mais prósperos de África.
Só não vê quem não quer ver. Nada disto tem a ver com actos ou atitudes do restante mundo, por mais complexos de culpa que possamos ter no ocidente. É novamente o Mal Absoluto a levantar a cabeça, levando a guerra a todo o mundo que não aceite a sua lei. O que aconteceu agora em França é para aqui irrelevante. Vem apenas na sequência do ataque às torres gémeas em Nova Iorque, do ataque na estação de Atocha em Madrid e de muitos outros atentados a maior parte deles frustrados pelas forças de segurança. Pode no entanto ser importante, como catalisador para o acordar para o novo Nazismo que se prepara para dar cabo da nossa sociedade de tolerância e da nossa civilização. Nos anos vinte e trinta do século passado também o mundo civilizado de então olhava para os nazis com bonomia, não imaginando o que se ia seguir. E hoje todos sabemos o esforço mundial que foi necessário para travar a selvajaria negra e vermelha de então. E as muitas dezenas de milhões de mortos, as cidades destroçadas e o sofrimento indizível de milhões de homens e mulheres nos campos de concentração. Tenhamos todos consciência do que se passa perante os nossos olhos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 de Janeiro de 2014

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Hora de recordar Voltaire



Quando um cronista vai estabelecendo o seu plano de textos, o próximo vai surgindo e desenvolvendo-se na sua mente logo após a publicação do anterior que, depois de aparecer na página do jornal, lhe foge e rapidamente se torna em algo estranho ao próprio autor. No entanto, por vezes sucede que a realidade do quotidiano surge com tal força que se impõe, não deixando espaço para as ideias anteriores.
A carnificina da passada quarta-feira na redacção do jornal satírico Charlie Hebdo e desenvolvimentos posteriores que incluíram a morte de clientes num supermercado em Paris e só terminaram com a morte dos assassinos confessos, é um assunto que grita tão alto que ninguém pode ficar indiferente ou passar ao lado.
O extremismo islâmico não se contenta com as decapitações de jornalistas que fazem o seu trabalho onde as coisas acontecem, como é o caso do chamado “estado islâmico”, e vem agora trazer a morte ao interior das redacções dos próprios jornais, ainda que em locais longínquos como Paris. Falo no presente e não no passado, porque nada garante que esta acção seja isolada, antes pelo contrário, como responsáveis da al Qaeda se apressaram a avisar e ameaçar.
Terroristas lhes chamaram todas as pessoas que se referiram aos atentados. E bem, porque se trata na realidade de tentar levar o terror e infundir o medo a todos os cidadãos do mundo livre, fazendo-lhes sentir que não estão seguros em lado nenhum nem em qualquer momento. Incluindo os muçulmanos que vivem nesse mundo e que, na realidade, fugiram desse outro mundo que os extremistas pretendem levar a todo o lado. Dizem agir em nome de Alá, o seu Deus e falam de guerra santa contra os infiéis, que são todos os que não seguem Alá como eles acham que deve ser seguido. O que se passa na Síria, no Iraque, na Nigéria e no Iémen não pode ser esquecido nem escondido. A barbárie terrorista praticada pelos extremistas islâmicos exercida contra todos mas na sua maioria contra muçulmanos pacíficos e indefesos, tem que ser encarada e combatida com urgência. Assistimos a mais uma guerra religiosa levada a cabo por fanáticos que desvirtuam a sua própria crença como, infelizmente, se tem visto ao longo da História da Humanidade, com consequências sempre trágicas. Têm que ser tratados como puros terroristas e não como representantes de uma religião ou de uma civilização diferente das nossas.
O semanário “Charlie Hebdo” é um jornal satírico, praticando uma crítica social mordaz que segue uma tradição de séculos nos países ocidentais. Muitas vezes criticou situações ligadas às religiões, à sociedade e aos nossos modos de vida, frequentemente de forma ácida e corrosiva, que desagradava a muita gente. Estava no pleno direito de o fazer. Se alguém se sentisse injustamente atingido, poderia recorrer aos tribunais, como é normal em sociedades civilizadas, o que aliás sucedeu por várias vezes. O ataque de que foi vítima vem na sequência da tentativa de censura que atacou também Salman Rushdie e tantos outros autores anteriormente. No fundo, mais uma vez a luta das trevas a quererem tapar a luz da Liberdade.
Desta vez o ataque foi em Paris, o que traz uma enorme carga simbólica. No Panteão de Paris repousam os restos mortais de Voltaire, o grande iluminista e lutador pela Liberdade que introduziu em França a tolerância religiosa e a liberdade de imprensa. Dele foi dito que a melhor maneira de definir o seu espírito seria: "Posso não concordar com nenhuma palavra do que você disse, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo". Voltaire morreu há cerca de 250 anos. É verdadeiramente trágico que, ainda hoje, seja necessário lembrar o seu espírito, devido a carnificinas de homens e mulheres levadas a cabo em solo de Paris, motivadas por ataques à liberdade de expressão e de imprensa.
Pelo que todos temos observado, o resultado imediato destes actos brutais de terrorismo tem sido uma enorme onda de solidariedade francesa e internacional para reafirmação da liberdade de expressão. Espera-se que esse espírito se mantenha e se reforce, criando barreiras ao medo que, insidiosamente, tende a instalar-se perante a violência, preparando terreno para a falta de Liberdade.


Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 12 de Janeiro de 2014

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

O Pólo Norte da discussão



Quer tal seja ou não verdadeiro, a História refere Robert Peary como tendo sido o primeiro explorador a atingir o pólo Norte. Tal aconteceu em 1909 há, portanto, cerca de apenas cem anos. Tal reflecte a inacessibilidade da zona, coberta de gelo e cuja temperatura média anual é de trinta graus negativos. Durante muito tempo o interesse no Pólo Norte foi mais curioso ou académico que outra coisa e mesmo o tráfego marítimo na zona era obrigado a dar uma volta larga, só sendo possível durante os meses de degelo do Verão. Os interesses soberanos sobre aquele território eram por estas razões, diminutos, mesmo tendo em conta o conhecimento da existência de grandes recursos naturais, designadamente minerais.
Nos últimos anos, em parte por uma diminuição dos gelos da calote polar, esta situação alterou-se radicalmente. Tal deve-se igualmente à descoberta de que no Pólo Norte estará 1/8 do petróleo mundial ainda não explorado, bem como um quarto das reservas de gás.

Foi assim que a Rússia deu um primeiro passo em 2007, colocando uma bandeira russa feita de titânio no ponto exacto do Pólo Norte, tendo sido declarado que aquele pólo foi sempre russo. No passado mês de Dezembro coube à Dinamarca reclamar uma grande área junto ao Pólo Norte, fazendo uso de uma regra do Direito Marítimo segundo a qual um país pode reclamar controlo de uma área oceânica para além das duzentas milhas marítimas, se ela for considerada uma extensão da sua plataforma continental; de facto, a famosa cordilheira Lomonosov começa na Groenlândia que pertence à Dinamarca e atravessa todo o Ártico, o que sustenta a posição dinamarquesa. O Canadá é vizinho e reclama igualmente uma parte do Ártico, o mesmo sucedendo com os EUA, dado que o Alasca é um Estado americano; a Noruega tem o seu arquipélago Svalbard no Ártico, sendo mesmo o ponto da Terra permanentemente habitado mais próximo do Pólo Norte, pelo que reclama igualmente o seu quinhão no ártico.
Até agora, toda esta discussão internacional tem decorrido na observância estrita da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) tratado internacional celebrado em 1982, que regula a utilização internacional de conceitos como “mar territorial” e “plataforma continental”, entre outros, definindo regras para a exploração dos recursos naturais marítimos. Devemos ter consciência de que a CNUDM é muito importante para nós portugueses, dado que a aplicação das suas regras atribui ao nosso país um mar territorial de excepcional dimensão a nível europeu. Neste momento discute-se mesmo, no âmbito da CNUDM, a fronteira do mar territorial português, dado que a Espanha requereu uma alteração da actual situação, com o argumento de que as Desertas são rochedos e não ilhas, como sempre foi considerado por Portugal. Não é a primeira vez que a Espanha faz esta tentativa, embora anteriormente o tivesse feito de forma, digamos, mais subterrânea, e façamos votos de que mais uma vez esteja votada ao fracasso, através dos esforços e competência dos nossos diplomatas.
O Ártico tem um valor enorme para todo o mundo, mas essencialmente para os países limítrofes. Existe mesmo um fórum específico de negociações que é o “Conselho Ártico” que, até agora, tem sido um exemplo na abordagem de toda a discussão destes assuntos. O Pólo Norte tem uma grande carga simbólica, dado que serve de ponto de orientação às movimentações terrestres, tendo mesmo sido dado o nome de Estrela Polar à estrela que há alguns milhares de anos está mais próxima dele nos céus do hemisfério norte. Esperemos que o seu símbolo de orientação continue a funcionar mesmo nesta discussão actual sobre os seus valiosos recursos naturais, designadamente os energéticos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 5 de Janeiro de 2014