segunda-feira, 14 de março de 2016

Trabalho infantil e escravo, hoje.

Os Estados Unidos da América aprovaram, no fim do passado mês de Fevereiro, legislação que proíbe finalmente a importação de produtos fabricados com recurso a mão-de-obra infantil ou escrava. Esta legislação veio tapar uma brecha na lei que permitia essa importação, caso a procura dos produtos em causa não pudesse ser satisfeita de outra forma, situação que se mantinha desde 1930.
A simples leitura de uma notícia destas causa perplexidade e mesmo alguma perturbação. Na realidade, no mundo actual e no ano de 2016 da nossa era, pode não parecer evidente que estas situações sejam uma realidade e, muito menos, que tenham uma expressão significativa. Vivemos numa União Europeia que é uma das regiões mais desenvolvidas e mais civilizadas do mundo e, à excepção de algumas ocorrências como é a actual crise dos refugiados causada pela situação de guerra do Médio Oriente, não é assim tão frequente chegarem até nós ecos de situações recorrentes de tão grande miséria humana como a escravatura ou o trabalho infantil.
Mas a necessidade de proibir algo é a primeira prova de que existe. E a lista que foi conhecida com o cruzamento dos produtos que podem ser resultado de trabalho forçado em escravatura ou por crianças, com os países onde tal acontece é verdadeiramente surpreendente. Que países do extremo-oriente como a Tailândia, o Cambodja ou as Filipinas surjam na lista não nos causará assim tanta admiração. Tal como muitos países africanos, onde talvez a pobreza extrema e persistente leve a que estas situações sejam mais frequentes, como são os casos da Guiné, da Serra Leoa ou do Congo. Satisfação causa o facto de nenhum dos países africanos de língua portuguesa fazer parte da lista, o que é de saudar. Mas a existência de numerosos países centro e sul-americanos provoca alguma surpresa e altera boa parte da percepção geral desses países, para pior. À cabeça está o Brasil com uma grande quantidade de produtos em que, pelo menos em parte da sua produção, são utilizadas crianças ou mesmo pessoas escravizadas de alguma forma. Estamos a falar de uma variedade de produtos que vão da cana do açúcar, ao algodão, aos tijolos, ao tabaco, ao vestuário, aos sapatos até à madeira, o que indicia uma situação verdadeiramente surpreendente no país irmão. Mas o Brasil não está sozinho, longe disso, sendo acompanhado pela Argentina, pelo México, pelo Paraguai e quase todos os centro-americanos desde a Bolívia à Colômbia ou à Guatemala.
Do lado dos produtos, há um que merece uma chamada de atenção especial. Estima-se que haja actualmente mais de 2 milhões de crianças na África ocidental a trabalhar na colheita de cacau, numa actividade fisicamente muito pesada e perigosa. Para além da colheita directa dos frutos da árvore, as crianças transportam cestos à cabeça com quilos e quilos de frutos e ainda procedem ao corte dos mesmos para retirar o miolo, trabalho feito com catanas que deixam milhares de crianças com feridas graves, no que corresponde a cerca de 40% das crianças envolvidas. Nesta zona do continente africano é produzido mais de 70% do cacau do mundo, principalmente na Costa do Marfim e no Gana, o que provoca uma dependência enorme da indústria mundial de chocolate do que aqui se passa. Afirma-se que os grandes fabricantes de chocolate têm investido dezenas de milhões de dólares nestes países com vista à erradicação do trabalho infantil na cultura do cacau mas, como é hoje evidente, o resultado não é minimamente satisfatório. E não é agradável, para dizer o mínimo, oferecer às nossas crianças chocolates Nestlé, Mars ou Cadbury, sabendo que na sua origem está o trabalho de milhões de outras crianças em condições desumanas.
E não devemos esquecer que, mesmo entre nós, o trabalho infantil era uma realidade ainda não há muitos anos. Podemos querer esquecê-lo ou até tentar calar a verdade, mas ainda nos anos noventa do século XX havia muitas crianças a trabalhar em Portugal. No Norte do país, uma boa parte das indústrias do vestuário e do calçado usava crianças na laboração embora de forma encapotada, ao deixar operários e operárias levar parte do trabalho para ser feito em casa. E aí, às escondidas de qualquer fiscalização, as crianças participavam arduamente na confecção dos produtos durante a noite que, no dia seguinte, seguiam para as fábricas.

Quer-se acreditar que, entre nós, esta situação já esteja completamente ultrapassada. Mas não podemos deixar de tomar consciência do problema, a nível internacional, já que hoje ninguém está sozinho e o que acontece do outro lado do mundo tem implicações no nosso dia-a-dia, nem que seja na oferta de uma tablete Kit Kat ou um pacote de M&M às nossas crianças.

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