segunda-feira, 18 de julho de 2016

Praia da Tocha




 De vez em quando descobrimos um pedaço de Portugal que nos surpreende de maneira positiva. Não falo das belas condições naturais em que o país é rico, que essas não dependem nem são fruto da acção humana, mas de algo que é resultado de trabalho bem feito na recuperação urbana do que existia antes e que, como quase tudo em Portugal no que respeita ao turismo, foi durante dezenas de anos estragado e delapidado.
Na costa portuguesa existem numerosas praias, umas mais conhecidas que outras, mas quase todas elas sofreram os efeitos de uma urbanização descontrolada e sem qualidade que as transformaram em imitações de bairros periféricos das grandes cidades.
Mesmo na região centro, o modelo seguido foi o da máxima ocupação do solo com possibilidade de obter visão de mar, sem que no desenho urbano seja possível detectar qualquer diferença relativamente ao usado em qualquer cidade portuguesa isto é, entre o medíocre e o muito mau.
Quando encontramos algo que não segue este cânone, a surpresa não é pequena e a satisfação é tanto maior quanto o trabalho realizado alia eficiência à obtenção de objectivos adequados.

É o que sucede numa das praias talvez menos badaladas da região centro, a Praia da Tocha, no concelho de Cantanhede. A imagem do que era antigamente esta praia surge com grande nitidez no filme “Uma abelha na chuva” de Fernando Lopes realizado sobre o romance homónimo de Carlos de Oliveira em que os palheiros da Tocha foram usados como cenário. O filme é de 1971 e, para além dos aspectos sociais e políticos inerentes à própria obra literária em que se baseia, impressiona a pobreza profunda associada aos moradores dos palheiros, num tempo ainda não tão afastado dos dias de hoje quanto a sua visão nos poderia levar a pensar.
Claro que a Tocha não poderia ficar alheia à procura de praia que se verificou a partir dos anos 70/80 do século passado, bem como da pressão urbanística que tal provocou. Há ainda sinais disso, quer no tipo de construção feita e num certo abastardamento dos velhos palheiros, quer mesmo no desenho da ocupação do solo, melhor dizendo, na falta dele. Mas nos dias de hoje tudo isso está em vias de ser completamente ultrapassado. Tem havido uma intervenção competente, séria e essencialmente muito cuidadosa, que veio dar à Tocha uma organização urbana de grande qualidade, que bem pode servir de exemplo a muitas das estâncias balneares da nossa costa atlântica.
Quer nas antigas zonas construídas, sempre paralelamente à costa, quer nas mais recentes, foram consideradas numerosas passagens para peões e ciclistas, que facilitam o acesso à praia, a partir de qualquer lugar. Os muros entre as edificações e entre elas e os arruamentos são inexistentes nas zonas novas ou de reduzida altura nas mais antigas. As edificações surgem assim de forma quase natural no espaço urbano, não obrigando as pessoas a grandes percursos à volta delas nas suas deslocações, criando uma grande transparência no espaço público, tão raro entre nós.
Os numerosos espaços públicos assim surgidos estão ocupados com relvados e jardins à volta dos percursos pedonais e, ao contrário do que é habitual em Portugal, não foram abandonados após a sua construção, surgindo todos eles verdes e cheios de canteiros com flores. Há quem repare neste aspecto e, notando o cuidado raro no tratamento de relvados, arbustos e flores, comente que as equipas de manutenção são praticamente todas elas femininas, o que explicará tal modo de acção.
Não se pense que houve gastos excessivos nos revestimentos dos percursos pedonais, todos eles realizados com materiais económicos, mas confortáveis, daí no texto desta crónica ter utilizado o termo eficiente. Várias ciclovias completam a oferta aos amantes da bicicleta.
Para além da praia que dispõe de apoios de grande qualidade, à semelhança do que se passa hoje em todas as nossas praias devido à competente acção das autoridades ambientais nos últimos anos, a Praia da Tocha oferece ainda uma zona de pinhal com a sua frescura, dotada de todos os apoios aos utentes que aí pretendam almoçar e passar uma tarde depois da manhã de praia.
Surpreendente pela qualidade de toda a sua organização, a Tocha é hoje uma pérola da nossa costa atlântica, bem longe do cenário do filme de Fernando Lopes, de que resta a pesca artesanal-arte xávega, num contexto diferente, mas bem merecedor da nossa atenção.

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