segunda-feira, 26 de setembro de 2016

A verdade da mentira




Adicionar legenda
 O fenómeno que constitui a candidatura de Donald Trump às eleições presidenciais americanas tem sido objecto das mais diversas análises políticas, quer abordando o fenómeno populista que se lhe encontra subjacente, quer tentando compreender como o partido Republicano se deixou transportar para esta candidatura.
Mas há outro aspecto da candidatura de Donald Trump e do seu discurso que vai muito para além disso e tem a ver com a sua relação com a verdade. De facto, o candidato republicano faz constantemente afirmações bombásticas que não têm nada a ver com a realidade dos factos, mas que produzem ondas de choque sociais e que, a certa altura, parecerão evidências a muitas pessoas que, ou já o apoiam, ou acabam a apoiá-lo. O exemplo da afirmação de que Obama é responsável pela criação do “estado islâmico” é paradigmático. Questionado sobre a afirmação e confrontado com o facto de Obama ser contra o EI e até lutar contra ele Trump, longe de se retratar, manteve a afirmação e ligou-a com a saída das tropas americanas do Iraque.
O uso da mentira na política não é novo, a profissão de político mentiroso deve mesmo ser a segunda profissão mais antiga do mundo, como se costuma dizer. A própria utilização de mistificações, ou aquilo que hoje em dia chamamos mitos urbanos também é bem conhecida da História, como a utilização dos famosos falsos “protocolos de Sião” pelos nazis como justificação para os ataques aos judeus. As redes sociais da internet são um meio poderoso para o alastrar da mentira e da manipulação política, já que as pessoas raramente se dão ao trabalho de ir verificar as fontes, a veracidade ou até a data daquilo que é apresentado. Aliás, os próprios “protocolos de Sião” ainda por aí circulam nas redes sociais, havendo muita gente que acredita naquilo.

Mas há um fenómeno que está a alastrar na política a nível mundial e a que David Roberts chamou “pós-verdade”. Trata-se construir todo um edifício discursivo político sem qualquer relação com a verdade.
A utilização da técnica da “pós-verdade” traz imensos problemas. Ao abordar esta problemática, a revista “Economist” de há duas semanas sublinha que “a alteração relativamente às habituais mentiras dos políticos reside em que a verdade não é falsificada ou retorcida, mas passa a ser de importância secundária”. Como mostra a campanha de Donald Trump, os sentimentos passam a substituir os factos. Eis por que os opositores têm tanta dificuldade em combater os políticos da “pós-verdade”: ao fazê-lo, colocam-se no campo deles e a prova de que estão errados torna-se um caminho espinhoso e armadilhado, de onde fugiu qualquer racionalidade.
A campanha do chamado “brexit” é outro bom exemplo da utilização da “pós-verdade” pelos defensores da saída do Reino Unido da União Europeia. Por exemplo, garantiram aos ingleses, e ficou provado que estes acreditaram, que o seu país pagava 350 milhões de libras por semana à União Europeia, que poderiam ser gastos no Serviço Nacional de Saúde britânico que atravessa graves problemas de financiamento. O efeito sentimental conseguido pela imagem do “desvio” do dinheiro dos burocratas europeus para o serviço de saúde foi completo, ainda que não tivesse qualquer relação com a realidade. Hoje em dia muitos britânicos, que não foram votar ou que o fizeram pela saída, estão arrependidos por concluírem que foram miseravelmente enganados, mas agora é tarde. Como somos sempre muito rápidos a copiar o mau, este problema também já está entre nós. Quando há poucos anos um ex-primeiro ministro começou a acusar a oposição de usar uma “narrativa”, não estava a fazer mais do que informar toda a gente que o seu discurso constituía ele próprio uma efabulação à volta de pressupostos sem qualquer relação com a realidade. Difícil de desmontar, essa técnica política veio a ter, como bem sabemos, consequências pesadíssimas para todos nós.
Claro que, como se vê, a realidade acaba sempre por fazer o seu aparecimento com toda a força; já Abraham Lincoln dizia ser possível enganar a todos por algum tempo, bem como enganar alguns por todo o tempo, mas ser impossível enganar toda a gente o tempo inteiro. Mas, entretanto, já foram provocados muitos estragos embora os próprios inventores da mentira continuem, com toda a certeza, a manter o seu discurso, sempre acusando outrem das consequências.
Um dos maiores estragos será certamente o minar da confiança dos cidadãos nas instituições democráticas. E aqui não podemos ter contemplações perante este tipo de exercício da política: não é por ser “o nosso mentiroso” isto é, o que ajudámos a eleger pelo voto que uma mentiroso deixa de o ser. A nossa obrigação de cidadania é não calar a mentira total e denunciá-la, custe o que custar. Até porque a verdade existe.

Sem comentários: