segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Navegar com coordenadas erradas e sem Norte



O comandante do navio bem dava ordens de rumo ao marinheiro do leme, mas havia sempre alguém a dizer-lhe que a derrota andava bem longe da que devia ser, embora as condições meteorológicas até fossem as habituais naquele mar. Temia, aliás, que o soberano que tinha as suas próprias antenas a bordo começasse a desconfiar que algo estivesse a correr mal na navegação que pudesse colocar em causa que o fim da viagem fosse o destino marcado na carta de navegação.
Resolveu chamar os dois imediatos para fazer uma análise da situação e decidir quais as melhores ordens a dar, porque ainda não estando percorrida nem metade da viagem, o navio parecia ter alguns problemas não habituais. Claro que não gostava nada de ter dois imediatos, mas quando o soberano lhe havia dito não ser ele a primeira escolha para comandar aquele grande navio, não teve outra hipótese senão fazer aquela partilha de comando, confiando que os imediatos o acompanhariam empenhadamente até ao fim da viagem.
Quando se reuniram à volta da mesa das cartas na ponte, não percebeu a carta que lá estava e perguntou de onde tinha vindo, porque era muito diferente das habituais onde ele tinha aprendido a trabalhar e que sempre lhe tinham servido para preparar a navegação. Um dos imediatos respondeu-lhe de imediato que as cartas velhas tinham sido atiradas ao mar, que hoje já não serviam por os tempos serem outros e não se poder estar a seguir as regras ditadas por almirantados estrangeiros caducos, que colocavam em causa a soberania. 

As velhas coordenadas estavam calculadas em função de critérios obsoletos e levavam sempre aos mesmos resultados definidos por outrem, que não estavam de acordo com os novos objectivos definidos. O comandante ficou atrapalhado, mas logo se recompôs. Afinal, tinha muita experiência e não era por uns novatos o querem levar pelos seus próprios caminhos que se iria perder. Lembrando-se dos seus velhos cálculos logo ali decidiu, sem o comunicar, seguir o seu caminho sem informar os imediatos do facto; para tal, bastava ir ao computador e fazer a simples transformação de coordenadas, que a navegação depressa iria para o rumo que ele próprio pretendia, sem os imediatos perceberem nada.
No entanto, passados uns dias, um marujo de comunicações que estabelecia mais directamente contactos com o soberano, veio informá-lo de que aquele continuava nervoso, convicto que estava de que o rumo do navio continuava a afastar-se do que estava estabelecido. Que diabo pensou o comandante com os seus botões, sempre receoso das reacções do soberano que a qualquer momento podia chamar por alguém que o substituísse no comando. Lá mandou vir outra vez os imediatos à ponte e tentou perceber a razão da continuação do desvio da rota traçada com tanto cuidado. As coordenadas lá continuavam com os respectivos erros compensados da forma que havia calculado, mas havia ainda algo que não batia certo.
Foi quando o outro imediato o informou sobre a agulha. Na realidade, ao largarem do porto tinha mexido na agulha giroscópica porque, tal como o outro imediato no que dizia respeito às coordenadas geográficas, entendia que o norte pré-definido estava errado. Acrescentou que os rumos definidos para aquela viagem necessitavam de um referencial próprio que não tinha nada a ver com uma estrela escolhida há séculos por gente atrasada que, se calhar, ainda pensava que o Sol rodava em volta da Terra.
O comandante mais uma vez se serviu da sua célebre capacidade de resolução de problemas e, manifestando a sua total concordância com os princípios definidos pelos seus imediatos, lembrou-se da velha bússola magnética e tratou de calcular com discrição o erro da giro e de proceder à respectiva compensação.
Claro que, com o tempo entretanto decorrido, a rota seguida tinha-se desviado tanto do ponto de chegada e o navio tinha dado tantas voltas em círculos, que o combustível estava quase acabado e o porto de chegada parecia que tinha fugido para o outro hemisfério. Não valia a pena acenar com o sucesso finalmente conseguido de acertar com o rumo. Esse, embora fundamental, era apenas um instrumento para atingir o destino e, finalmente, o navio teve que encostar no porto mais próximo.

Sem comentários: