segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Le pays de Cocagne




Durante a Idade Média a que muitos, erradamente como demonstrou Umberto Eco, se referem ainda como a “Idade das Trevas”, surgiu o mito do país da Cocanha, espécie de paraíso terrestre, onde a abundância fornecida pela natureza era de tal ordem que ninguém precisava de trabalhar, o que era mesmo proibido, vivendo-se numa festa permanente e perpétua, sem fome nem guerras. Uma utopia, muito antes de Thomas More, que exprimia o desejo de paz, igualdade e prosperidade universal. No país da Cocanha as casas eram feitas de doces, as montanhas de gelados, havia sempre vinho, o sexo era completamente livre e toda a gente permanecia jovem para sempre.
O país da Cocanha foi representado por Peter Bruegel-o-Velho num quadro famoso em que representantes do clero, da nobreza e do povo recebiam tudo o que queriam refastelados no chão, sem precisarem sequer de se mexer, caindo-lhes as iguarias do céu. Foi, talvez, a forma que o protestante Peter Bruegel encontrou para sublimar a destruição de Bruxelas pelos soldados do Duque de Alba enviados pelo católico Filipe II de Espanha para combater a Revolta dos Países Baixos, ou Guerra dos 80 Anos.
Já os poemas medievais Carmina Burana hoje bem conhecidos pelo trabalho de Carl Orff se lhe refeririam, retratando as danças selvagens, o amor livre, o vinho e a licenciosidade. Diversos músicos mais recentes ou da actualidade abordaram o país da cocanha nos seus temas, como Edward Elgar que escreveu uma abertura de concerto, Georges Brassens na canção “Auprès de mon arbre” e também Jacques Brel, entre outros; mesmo no filme da Disney Pocahontas se refere o Novo Mundo como terra de cocanha. Podemos ainda olhar para o movimento hippie dos anos 60 do século XX como uma espécie de concretização do país da cocanha em que todos os desejos tinham resposta imediata.

O mito do país da cocanha não deixa também de nos lembrar o paraíso bíblico em que Adão e Eva viviam na felicidade absoluta, antes de comerem a maçã, pelo que o seu surgimento não é uma novidade absoluta na História.
A persistência da mitologia do paraíso terrestre traduzido de forma artística ou mesmo subliminarmente na política deveria fazer-nos pensar na sua justificação e na enorme influência que tem tido na humanidade ao longo dos tempos, a diversos níveis, já que promessas de paraísos terrestres é coisa que não tem faltado.
Todos aprendemos que a Revolução Francesa foi um passo da humanidade no sentido do progresso. Na realidade, os desejos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade rapidamente descambaram, não numa aproximação de um paraíso terrestre como muitos imaginaram no seu princípio, mas numa espiral de terror, assassínios e pobreza que rapidamente destruiu os seus próprios mentores terminando ingloriamente num “império” que levou a guerra e a destruição a toda a Europa. Nem Portugal, aqui neste cantinho da Europa, escapou. Isto, enquanto a Inglaterra e muitos outros países prosseguiam o seu caminho no mesmo sentido de desenvolvimento sem necessidade da hecatombe da Revolução Francesa.
Faz este ano um século que se iniciou uma das experiências mais impressivas visando a construção de um “paraíso” na Terra, sem exploradores nem explorados, em que todos seriam iguais e em que a Liberdade seria lei. O regime instituído na Rússia pelo partido, primeiro chamado bolchevique e depois comunista, que ao longo dos anos teve como líderes assassinos notórios como Lenin, Stalin, Krushchov ou Brejnev foi um dos maiores desastres da História. As suas vítimas contam-se por muitas dezenas de milhões de mortos por fome e guerra, para além da imensidão de degredados. Tudo isto, não para construir impérios assumidamente militarizados e racistas como os nazis e fascistas, mas tendo a boa intenção da construção de um “paraíso terrestre” concreto e verdadeiro.

Um pensamento minimamente racional deveria levar-nos a desconfiar de todos os que ainda hoje nos prometem paraísos terrestres, que são os populistas de todos os matizes ideológicos. Especialmente depois das experiências trágicas provocadas pela transposição para a realidade das ideologias construtoras de “homens novos”, da prosperidade universal e da paz para todos enfim conseguida.

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