terça-feira, 8 de maio de 2018

“Entre marido e mulher, não metas a colher”




Quase não há semana sem que, um pouco por todo o país, surjam notícias sobre mulheres mortas de forma violenta pelo marido, pelo namorado ou amante ou por algum ex-qualquer coisa. Por vezes, junta-se-lhe ainda no infortúnio alguma filha, irmã ou sogra. E damos por nós a pensar sobre se há alguma pandemia a alastrar pela sociedade nos dias de hoje e se será sinal dos nossos tempos.
Só no ano de 2015 foram registados 26.141 casos de violência doméstica em Portugal, o que corresponde a 3 casos por mil habitantes, deixando de fora muitos outros que não chegaram às estatísticas, por desconhecimento. Há realmente quem tenha a ideia de que, por qualquer motivo, a violência doméstica é um problema dos dias de hoje e que está a aumentar. Ideia que surge integrada naquele mito do país de brandos costumes que na verdade não tem nem nunca teve nada a ver com a realidade, servindo apenas para camuflar uma realidade violenta com um manto diáfano de fantasia que serve bem os interesses de criminosos.
Mas a violência doméstica sempre existiu. Foi escondida durante muito tempo dentro das paredes das casas. Era um problema a resolver debaixo de telhas entre os próprios intervenientes e a sociedade entendia que não devia interferir, abandonando as vítimas à sua sorte e continuando a conviver com os agressores como se nada se passasse. Só começou a ser debatida publicamente nos últimos trinta anos do século XX, com a libertação da mulher e o desenvolvimento dos direitos cívicos. A consciencialização social e política do problema apenas começou a encontrar respostas concretas na década de setenta, altura em que surgiram as primeiras casas de abrigo em Inglaterra e nos Estados Unidos. Em Portugal as casas de abrigo surgem a partir de 1999 com o I Plano Nacional contra a Violência Doméstica, havendo hoje 39 instituições que lidam com este problema e passou a ser um crime de natureza pública em 2007: qualquer pessoa que tenha conhecimento de algum caso pode hoje apresentar queixa.
Também contrariamente ao que se possa pensar, é um problema que atravessa toda a sociedade São muitos milhares de mulheres espancadas e mutiladas, sujeitas aos mais bárbaros tratamentos nas mais variadas classes sociais, daquelas com maiores dificuldades financeiras às mais abastadas. Nem sequer a formação a nível superior é garantia de que esse problema esteja ausente, como se fosse necessária mais uma prova de que formação não equivale a educação. E também entre adolescentes e jovens adultos se verifica este problema de forma preocupante: estima-se que 25% da população jovem tenha tido comportamento violento pelo menos uma vez e 22,5% admite mesmo já ter sido vítima de agressão por parte do namorado ou da namorada. A esmagadora maioria das vítimas, numa percentagem de 85%, é do sexo feminino, mas também vão surgindo casos ainda mais escondidos em que as vítimas são homens, havendo já em Portugal uma casa de abrigo específica para eles.

Os estudos dizem que a duração média das situações de violência conjugal é de treze anos e que a idade média das mulheres das mulheres que pedem ajuda é de 50 anos. Como será fácil de imaginar, as consequências a nível psiquiátrico para as vítimas de violência conjugal em períodos tão prolongados, são graves. Por vezes, tão ou mais graves que as feridas físicas e de difícil e prolongado tratamento. Estas consequências estão hoje bem documentadas e estudadas, por exemplo em Coimbra, no Serviço de Violência Familiar no Hospital Sobral Cid que trabalha em colaboração com escolas, polícias e Tribunais. Há ainda outras vítimas directas da violência conjugal que são as crianças. Por mais resistentes que sejam e que pareçam conseguir ultrapassar aquilo de que são testemunhas directas, não será possível fugirem a que, mais cedo ou mais tarde, o seu comportamento se venha a ressentir de forma mais ou menos grave.
Felizmente há hoje uma série de instituições dedicadas a lidar especificamente com a violência doméstica e as forças policiais e os tribunais estão técnica e humanamente apetrechados. Mas, além de tratar os casos que surgem, há necessidade urgente de os prevenir, acabando com esta chaga social. E tal só pode ser conseguido com uma consciência social generalizada do mal, para além de uma cultura de cidadania que faça sentir a todos os homens e mulheres que são iguais em direitos e deveres e que ninguém, seja de que forma for, pode sentir-se como sendo dono de alguém. 
Republicação de crónica de Maio de 2017

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