segunda-feira, 2 de outubro de 2017

A Alemanha de Merkel e nós



Como se previa, a CDU/CSU venceu as eleições na Alemanha, dando a oportunidade a Angela Merkel de um quarto mandato como Chanceler, no que será a mais longa governação desde o fim da II Grande Guerra, já que iniciou essas funções em 2005.
Contudo, os resultados destas eleições têm outros aspectos a ter em conta, já que houve novidades relativamente ao que anteriormente se tornara habitual na Alemanha. Desde logo, pela primeira vez desde o fim da guerra, o partido AfD – “Alternativa para a Alemanha”, assumidamente de extrema-direita, obteve uma votação (13%) que lhe permitiu eleger 94 deputados, sendo a terceira força no parlamento alemão. Os socialistas democráticos do SPD caíram para próximo dos 20%, um resultado péssimo para o seu líder Martin Schulz que se havia demitido de presidente do parlamento europeu para tentar a chancelaria no seu país vindo a obter a pior votação de sempre para o seu partido. Mas o próprio resultado do partido da própria Angela Merkel foi decepcionante, já que caiu mais de 8% em relação ao resultado anterior, ficando-se nos 33% o que, ainda assim, lhe permite a manutenção na chancelaria, embora se antevejam algumas dificuldades para formar a necessária coligação.
A duração do seu mandato à frente dos destinos da Alemanha obriga a que se observe com algum detalhe a personalidade e modo de governar desta mulher que é considerada a mais influente do mundo e, em particular, a personalidade mais importante entre os líderes da União Europeia. Merkel nasceu na antiga Alemanha de Leste e a sua formação foi largamente influenciada, quer pelo pai pastor de uma igreja luterana a norte de Berlim, quer pelo ambiente paranóico e ultra vigiado do seu país, aprendendo a falar pouco e a ser discreta. A formação científica do doutoramento em química forneceu-lhe os métodos de análise e de decisão sustentada que mais tarde aplicaria no seu exercício de governante. A sua personalidade discreta mantém-se até hoje. Ao fim do dia de trabalho no seu imponente gabinete, regressa a casa que é apenas um vulgaríssimo pequeno apartamento, para calmamente preparar a sopa que constitui o seu próprio jantar.

Após a queda do muro de Berlim, dedicou-se à política, tendo sido eleita deputada e iniciado a carreira de governante quando Helmut Kohl, que lhe chamava a sua menina, a convidou para um ministério relativamente secundário, mas de onde partiu para o que hoje é.
Politicamente, Merkel costuma dizer que é “um pouco liberal, um pouco social-cristã e um pouco conservadora”. Isto é, fundamentalmente, acredita numa série de princípios simples, não demasiado elaborados ideologicamente e muito ligados à vida concreta das pessoas. Há mesmo quem diga que pensa de forma ética e não ideológica. Talvez por isso reagiu à desgraça dos refugiados de 2015 tendo, surpreendentemente para muita gente, permitido a entrada na Alemanha de mais de um milhão de pessoas fugidas à fome e à guerra. Aqui residirá o surpreendente resultado do AfD nestas eleições recolhendo, sobretudo na população residente no antigo território da Alemanha de Leste, o voto de reacção à entrada de tantos refugiados. Os esquerdistas que, também por cá, ainda há pouco tempo se divertiam a pintar bigodes hitlerianos na cara de Merkel e a colocá-la a fazer saudações nazis bem podiam pintar agora a cara de preto perante a verdadeira face de Angela Merkel.
Mas estas eleições alemãs trouxeram à superfície alguns aspectos insuspeitados da política de Merkel e que colocam nuvens escuras no futuro do país que ameaçam transformar-se em tempestade se a Chanceler não alterar a sua política interna no próximo mandato.
Na realidade, Merkel tem governado sobre as reformas económicas profundas introduzidas pelo Chanceler Gerhard Schröder do SPD que a antecedeu, nomeadamente na área do emprego, e que trouxeram competitividade e catapultaram a economia alemã depois de anos de estagnação ou pior. O investimento público alemão, em função do PIB, é hoje inferior à média da OCDE e o valor líquido das infraestruturas do país tem caído de forma impressionante. O seu cuidado obsessivo com o défice, descurando o investimento nas infraestruturas, tem garantido boas contas mas descura claramente o futuro e obrigará, mais cedo ou mais tarde, a reformas e grandes investimentos que alterarão a situação económica. Um investimento público de apenas 2,1% do PIB fica abaixo da própria média da UE, que é de 2,7%. As infraestruturas clássicas, como estradas, pontes, edifícios escolares e hospitais começam mesmo a ter problemas decorrentes de falta de investimento, mas até a velocidade de internet é hoje muito baixa em comparação com a maioria dos países.
Curiosamente, encontramos aqui a justificação para um olhar tão benigno de Merkel e mesmo do até agora seu ministro das Finanças Wolfgang Schäuble relativamente às contas do actual governo português que atinge as metas exigidas quanto ao défice através de cativações e cortes maciços no investimento público: na verdade, eles próprios têm essa prática no seu próprio país. A sua preocupação é o número do défice no fim do ano, independentemente do processo seguido para lá chegar, e fazer reformas não é propriamente o seu forte.

Texto publicado no Diário de Coimbra em 2 de Outubro de 2017

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