segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Cultura elitista



Apesar de toda a evolução social das últimas dezenas de anos, volta não volta ainda é possível ouvir alguém queixar-se de haver demasiada cultura elitista. A questão do elitismo na cultura é muito antiga. Por definição, a criação artística acompanha sempre a vanguarda das sociedades, pelo que não é susceptível de ser imediatamente percebida e muito menos geradora de sentimentos de afecto por toda a gente.
Mas as acusações de elitismo na cultura não vêm desse aspecto vanguardista das diversas formas de arte e sim de uma posição, a que chamarei populista, de achar que se deve dar ao “povo” aquilo de que supostamente gosta e não aquilo de que as ditas “elites cultas” gostam. Para ser breve e directo, ao povo deve ser dado Quim Barreiros e não Freitas Branco, citando apenas portugueses.
Durante séculos, para se ouvir música, era necessária a deslocação a salas de concertos, o que só estava ao alcance de poucos. Hoje em dia, a música, todos os estilos de música, quer ela seja boa ou seja má que deve ser esse o único critério de distinção, está em toda a parte e acompanha-nos quase em permanência. Se a contemplação directa de pinturas ou esculturas só é possível indo aos museus há, no entanto, processos de admirar todas essas obras de arte através de livros, filmes e outros meios ao alcance de todos, permitindo um conhecimento e formação de gosto e sensibilidade. A literatura está ao alcance de todos desde há séculos, a partir do momento em que a tipografia permitiu a reprodução fácil e barata de livros e, essencialmente, desde que a Liberdade permitiu o acesso de todos a qualquer obra escrita, seja ela qual for.
Infelizmente, ainda é muito vulgar confundir cultura com acumulação de conhecimentos, daí uma veneração pelo academismo, que é particularmente evidente na nossa cidade. Na realidade, a Cultura não tem nada a ver com isso e sim com o desenvolvimento de sensibilidade, de capacidade de perceber e tentar alcançar o belo, nas suas mais diversas manifestações. O belo anda muitas vezes escondido atrás de realidades diversas e criações difíceis de compreender. 

Como escreveu Fernando Pessoa, através da personalidade de Álvaro de Campos, “O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo; O que há é pouca gente para dar por isso”. Por isso se costuma dizer que só se ama aquilo que se conhece. Quem vive na ignorância, nunca poderá afirmar que gosta de Shakespeare, Dante ou Camões; nem de Bach, Puccini ou Stravinsky; ou de Miguel Ângelo, Caravaggio, ou Picasso. Uma verdadeira Educação é muito mais do que a transmissão de conhecimentos ou, como se dizia antigamente instrução que, literalmente, quer dizer encher de palha.
Um povo mantido na ignorância não desenvolve critérios de exigência e é muito mais fácil de enganar pelos governantes ou supostos líderes. Quando os que deviam agir na sociedade em prol da Cultura e, pelo contrário, protestam contra a existência daquilo a chamam cultura elitista, deliberadamente escondem que os bilhetes para espectáculos de música erudita, por exemplo, são sistematicamente muito mais baratos do que os bilhetes de futebol, para não falar dos concertos ou festivais de música moderna sempre cheios apesar do custo elevadíssimo dos ingressos.
Os meios que hoje possibilitam o acesso generalizado à informação e aos produtos culturais são os mesmos que patrocinam uma sociedade de espectáculo que, progressivamente, vai abafando a Cultura. Aquilo a que ainda chamamos informação é-o cada vez menos, substituída por publicidade encapotada, levando a que os cidadãos sejam cada vez mais clientes de algo de que nem sequer tomam consciência.
Ninguém está contra as mais diversas formas de expressão artística. Concretamente, o património cultural de um povo, por mais simples que seja a sua manifestação, deve ser respeitado e protegido, olhado não só como base do que veio a seguir, mas também como testemunho da época em que floresceu. Mas a Humanidade nunca teve mais motivos para ser respeitada e amada do que quando os grandes artistas produziram as suas obras maiores. Tentar retirar a partes da população a possibilidade de usufruir desses grandes momentos é, não só manifestação de populismo, mas demonstra também desrespeito para com o semelhante.

Sem comentários: