segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Um país aos tiros a si próprio



Com uma regularidade estonteante, as noticias e imagens sobre tiroteios mortais em escolas americanas entram-nos nas televisões de forma perturbadora. As estatísticas destes acontecimentos são impressionantes. Só desde o início do corrente ano, houve 18 incidentes deste tipo em escolas dos Estados Unidos e, desde o princípio de 2013, é o 291º tiroteio numa escola, numa média aterradora de um por semana.
Na Quarta-feira da semana passada verificou-se outro incidente, desta vez num liceu em Parkland no Sul da Florida, em que um jovem ex-aluno daquela escola, com apenas 19 anos, matou a tiro 17 pessoas, ferindo ainda muitas outras. Entre as vítimas contam-se alguns professores que, de uma forma heróica, se colocaram à frente de alunos salvando-os, mas perdendo a sua vida nesse acto. O atirador passeou-se pelos corredores da escola, abatendo a tiro quem lhe aparecia pela frente, numa acção que, de tão repetida, se tornou já banal e recorrente mesmo em filmes e séries policiais. Ainda há poucas semanas tivemos oportunidade de ver um episódio da excelente série britânica “Silent Witness” do qual este tiroteio parece tirado a papel químico. Até a técnica de fuga do criminoso do filme introduzindo-se no meio dos estudantes na evacuação apressada da escola e escondendo a arma num saco de ginástica, parece ter sido transposta para a vida real.
O presidente Donald Trump dirigiu-se ao país depois do massacre, tendo-o caracterizado como "uma violência terrível, de ódio e maldade" causada por problemas mentais do jovem criminoso, tendo evitado qualquer referência à questão da facilidade de acesso às armas nos Estados Unidos.

Para muitas pessoas nos EUA e essencialmente, para quem observa de fora, a questão da posse de armas pelos cidadãos americanos deveria estar no centro da discussão sobre estes casos. De facto, por causa da actual interpretação da célebre “Segunda Emenda” da Constituição dos EUA, o jovem que perpetrou este ataque na sua antiga escola comprou legalmente a espingarda semi-automática que utilizou no atentado. Se os americanos precisam de ter 21 anos para comprar bebidas alcoólicas, na maioria dos Estados só precisam de ter 18 anos para comprar uma espingarda AR-15, numa demonstração de que algo vai mal naquele país para além dos problemas mentais referidos por Trump, naquilo que mais parece uma justificação lateral ao verdadeiro problema. Aquela arma é uma adaptação civil da M-16, sendo muito popular nos EUA, tanto servindo para caça, para tiro desportivo ou em “auto-defesa”, estimando-se que haja mais de 8 milhões de exemplares em casas americanas.
A “Segunda Emenda” é utilizada pelo enorme lobby pró-armas como símbolo da liberdade americana que incluiria um direito à auto-defesa constitucionalmente garantido, incluindo o direito a possuir armas. Contudo, a própria justificação da “Segunda Emenda” para garantir o “Right to Bear Arms” não parece fazer muito sentido nos dias de hoje, sendo claramente datada, ao dar aos cidadãos americanos dessa altura a possibilidade de possuir armas para defesa colectiva do Estado, através de participação em milícia. Estava-se em 1791, poucos anos depois da Declaração de Independência de 1776 e a Segunda Emenda fazia parte do conjunto de dez emendas constitucionais que constituíram a “Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos Estados Unidos”.
Hoje em dia, esse Direito perdeu a função colectiva de defesa do Estado, tendo-se transformado num direito a todos os cidadãos possuírem armas, com as consequências que estão bem à vista de todos, menos dos que entendem que a solução para resolver o problema dos atiradores é toda a gente ter armas para ripostar em auto-defesa.
Os defensores do direito generalizado à posse de armas encontram muitas justificações para estes massacres, com os problemas mentais à cabeça. Mas há uma consideração a que não podem fugir e que é o elevadíssimo número de armas detidas por particulares nos EUA, já que se os americanos constituem cerca de 4,4% da população mundial, possuirão 42% das armas do mundo.
Trata-se de uma questão difícil de resolver, mas um grande país como são os Estados Unidos da América não pode deixar de o fazer, sob pena de num dia destes o remédio vir a ser ainda pior que a actual doença.

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