segunda-feira, 4 de novembro de 2013

ALLÔ ALLÔ



A espionagem rivaliza com outra atividade bem conhecida sobre a classificação de atividade mais velha do mundo, sendo que ambas concorrem ainda em muitos outros aspetos que ajudam na baixa consideração que o comum dos cidadãos tem por qualquer uma delas.
Em tempos de conflitos mais aguçados, como é o caso das guerras, percebe-se facilmente o papel precioso da chamada “informação”, sendo que nessas alturas a espionagem quase ganha foros de cidadania. Basta lembrarmo-nos da importância que o MI5 e o MI6 britânicos tiveram no desfecho da segunda guerra mundial e do trabalho tantas vezes heroico de homens e mulheres que frequentemente deram a própria vida na obtenção de segredos inimigos e na ajuda aos combatentes nas frentes de combate.
Também durante a chamada “guerra fria” a actividade da espionagem dos blocos ocidental e soviético foi extremamente intensa, constituindo frequentemente a ponta visível do iceberg que era a guerra surda que então se travava. Nos seus romances, John Le Carré descreveu como ninguém esse mundo subterrâneo e perigoso, onde não há amigos nem aliados. Mundo esse que não desapareceu após a queda do muro de Berlim, antes pelo contrário, apenas mudando os objetivos da atividade que, de uma forma evidente, passaram a ser muito mais económicos do que militares ou simplesmente políticos. Chegou-se a um ponto em que hoje se desconfia, com boas razões, que interesses económicos inconfessáveis terão levado comunidades de espionagem a montar um cenário artificial que enganou líderes políticos levando-os a decidir pela invasão do Iraque, com as consequências que todos bem conhecemos.
O desenvolvimento das comunicações e, em particular da internet, levou as capacidades da espionagem a um novo patamar anteriormente inimaginável. Deixou de ser necessário plantar os informadores no terreno, recorrendo-se à velha técnica das escutas, mas agora de uma forma completamente sistemática.
A legislação de proteção contra o terrorismo permitiu que nos EUA se desenvolvesse uma agência especializada na intercepção de mensagens, seja por telefone, por fax, por telemóvel ou por mensagem electrónica (e.mail), a NSA – Agência de Segurança Nacional.
Sabe-se agora que ninguém, mas mesmo absolutamente ninguém, em qualquer parte do mundo, está a salvo da NSA e das suas escutas. Data de 2006 um memorando em que a NSA solicitava à Casa Branca, ao Departamento de Estado e ao Pentágono que os seus oficiais lhe entregassem as listas de números de telefones de individualidades estrangeiras que possuíssem, com o objetivo de controlar as suas comunicações telefónicas e dos números contactados.
É assim que o telefone da própria chanceler alemã Angela Merkel foi sistematicamente objeto de escutas por parte da NSA, pelo menos nos últimos dez anos. Para além de Ângela Merkel, é provável que todos os líderes europeus sejam objeto desta atividade por parte dos americanos, para além de milhões de cidadãos anónimos por todo o mundo, como eu próprio e o leitor. Na última semana soube-se por exemplo que, só num mês, a NSA espiou mais de 60 milhões de chamadas telefónicas em território espanhol.
O número de líderes políticos que já protestaram contra as actividades da NSA continua a aumentar, abrangendo países como o Brasil, a Alemanha, a Espanha, a Itália e a França
A NSA tem mesmo utilizado os serviços de grandes empresas tecnológicas como a Yahoo, a Google e ainda dezenas de outras na análise de escutas, coordenação de agentes secretos e mesmo no controlo de aviões de guerra não pilotados, os drones.
A tecnologia não para no seu desenvolvimento e o mundo é cada vez mais uma aldeia global. Dever-se-ia exigir, de todos os governos, uma ação firme na rejeição de toda esta ação que mistura interesses privados com espionagem e mesmo guerra. Em causa está mesmo a continuação dos regimes democráticos, tal como hoje os conhecemos.




Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Novembro de 2013

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

PRIMAVERAS (no outono)

Na noite da passada sexta-feira, a Biblioteca Joanina encheu-se para um concerto inédito, integrado nos VII Encontros Internacionais da Guitarra Portuguesa, organizados pela Orquestra Clássica do Centro. Para além de peças de compositores clássicos como Schubert e Mozart, foi possível ouvir composições de alguém que Coimbra bem conhece e ama: as Primaveras e outras peças de Francisco Martins.
A interpretação esteve a cargo de Natália Pikoul ao piano e de Richard Thomes ao violino. O leitor estará esta hora a perguntar-se sobre o que farão as obras de Francisco Martins neste programa, conhecendo-as como conhece, tocadas no instrumento mais característico da canção de Coimbra: a guitarra de Coimbra. E o ineditismo deste concerto esteve precisamente aí: no facto de composições habitualmente interpretadas à guitarra de Coimbra acompanhada por guitarra clássica serem tocadas por um duo composto por pianista e violinista.
A possibilidade de isto ter acontecido tem uma história longa e interessante. Há cerca de um ano, aquando dos VI Encontros de Guitarra Portuguesa, a Orquestra Clássica do Centro decidiu publicar em livro as partituras de algumas das composições de Francisco Martins. A razão dessa publicação percebe-se pelo facto de essas obras constarem de discos publicados e poderem portanto ser ouvidas e apreciadas pelos ouvintes interessados, mas não estarem à disposição de intérpretes, por não estarem escritas; situação esta que acontece alias com grande parte do reportório da guitarra portuguesa, que é passado de intérprete para intérprete, limitando a sua interpretação. Com a publicação das partituras, qualquer guitarrista em qualquer parte do mundo pode tocar as músicas, desde que as saiba ler, podendo ainda ser transcritas para outros instrumentos.
Quem fez esse trabalho difícil e exigente foi precisamente a compositora Natalia Pikoul, a partir das gravações existentes interpretadas pelo próprio Francisco Martins. Natália Pikoul é, tal como a sua irmã Marina uma excelente pianista, mas também compositora saída das melhores escolas de música de Moscovo, tendo passado ainda por Paris antes de se radicar em Portugal. As irmãs Pikoul são a prova de que a suposta supremacia histórica dos homens na área da composição musical não é mais do que o resultado do esmagamento da capacidade das mulheres também nessa área, que eliminou um património riquíssimo da história cultural da humanidade.
Estes VII Encontros deram a Coimbra a possibilidade de apreciar peças musicais de uma enorme beleza, trazidas por intérpretes do gabarito de Doc Rossi, Bruno Costa, Carlos Alberto Moniz, Artur Caldeira, Natália Pikoul, Richard Thomas, Virgílio Caseiro, ou os excelentes músicos do Fado ao Centro e ainda toda a Orquestra Clássica do Centro dirigida por David Lloyd.
Momentos houve de verdadeiro êxtase pela beleza das músicas e virtuosismo dos intérpretes, recordando-se aqui a performance superlativa de Artur Caldeira. Mas na memória perdurarão as Primaveras de Francisco Martins, monumento cultural da nossa Cidade, tocadas de uma forma nova e lindíssima na Biblioteca Joanina, em momento afectivo que uniu muitos dos presentes a quem, embora ausente fisicamente, lá estava também através da sua música.


Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Outubro de 2013

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

As vezes que for necessário

“Everything that needs to be said has already been said. But since no one was listening, everything must be said again.”

Conhecimento

"No man really knows about other human beings. The best he can do is to suppose that they are like himself." — John Steinbeck

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Os portugueses e os Bancos




De vez em quando deparamos com uma notícia que nos atinge como um murro no estomago. De tão difícil de acreditar, até parece que alguém está a gozar connosco. Mas se a infvormação consiste no resultado de uma mega sondagem levada a cabo por uma agência credível a nível mundial como a GALLUP; o mais sensato é analisar com atenção e pensar se a nossa própria reacção não consiste num preconceito resultado da enxurrada de informação que diariamente nos inunda os jornais e os computadores.
De facto, a Gallup deu a conhecer há poucos dias o resultado de uma sondagem que realizou nos países europeus com intervenção financeira externa, sobre a percepção que os respectivos cidadãos têm dos seus sistemas bancários.
O que mais surpreende é Portugal ser, dos países intervencionados, o que manifesta mais confiança nos seus bancos. Mais, a percentagem dos portugueses que confiam nos seus bancos é ligeiramente superior à dos alemães, principais financiadores das intervenções financeiras. Claro que 54% dos portugueses não confiam nos seus bancos, mas os 40% que confiam são um número que se pode considerar espantoso, até porque essa percentagem subiu 4 pontos de 2012 para 2013. Apesar do apreciável nível de confiança que ainda manifestam nos seus bancos, os alemães estão longe dos níveis anteriores à crise de 2008, numa queda de 20 pontos que tarda a recuperar. Os alemães sabem bem que foram colocados mais de 640 mil milhões de euros à disposição dos seus bancos desde 2008, para evitar mais falências no sistema bancário.
Para se perceber bem como a taxa de confiança em Portugal é extremamente significativa, basta ver que em Espanha a percentagem dos cidadãos que confiam nos bancos é de 11%, com descida de 7% entre o ano passado e este ano, enquanto na Grécia é de 17%, na Irlanda de 15% e no Chipre de 11%.
Claro que em Portugal, e a Gallup não deixa de o salientar, a crise que levou à intervenção externa foi provocada pela dívida insustentável resultante de défice das contas do Estado exagerado e prolongado, enquanto nos outros países foi essencialmente bancária. Mas também sabemos que os bancos portugueses receberam uma parte do pacote financeiro da troika. Sabemos ainda outras coisas, como seja a elevada quantidade de dívida pública comprada pelos bancos portugueses. E todos os dias somos inundados com notícias sobre o BPN, sobre o BPP e ultimamente sobre o Banif, que se tenta financiar sem grande sucesso. E não esquecemos o que se passou e ainda passa como o maior banco privado português, o BCP, que em Junho de 2012 recebeu 3 mil milhões de euros para não desaparecer, embora o valor das suas acções seja ainda hoje pouco mais que zero.
E mesmo assim…O que levará os portugueses a não perder a grande confiança que continuam a manifestar nos nossos bancos? E será isso bom? E quais as consequências da actual situação europeia para o nosso futuro colectivo?
Na realidade, observando de fora, o elevado nível de confiança dos portugueses nos bancos nacionais parece algo incompreensível. Mas será necessário entender a relação pessoal dos portugueses com os seus bancos que, no fim, ditará os valores estatísticos. E o que se vê é que, apesar da crise, os bancos foram tentando resolver de uma maneira ou de outra os problemas resultantes essencialmente do financiamento para habitação; ao contrário de outros países, não se viu os bancos ficarem repentinamente na posse de todo um património imobiliário resultante do incumprimento das obrigações dos particulares. E deverá residir aí boa parte da razão que leva 40% dos portugueses a confiar nos bancos nacionais quando, no ano passado, eram 36%.
E é bom que os portugueses continuem a confiar na banca portuguesa, para que ela recupere da difícil situação em que se deixou enredar, ou em que a enredaram, particularmente num momento em que os sinais de retoma da economia são indesmentíveis, mesmo que de dimensão ainda reduzida face às necessidades de crescimento.
Mas a Europa continua, no seu todo, a ser a região do mundo com mais baixos índices de confiança nas instituições financeiras. Depois das eleições alemãs, como salienta a própria Gallup, é chegado finalmente o momento de se encontrar acordo para aprofundar a união europeia, também no sistema bancário.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra de 21 Outubro 2013
Nota: Gráficos retirados de Gallup: http://www.gallup.com/home.aspx?ref=b