segunda-feira, 26 de maio de 2014

A Campanha



Eu sei que à data em que esta crónica chegar às mãos do leitor, a campanha eleitoral para “as europeias” terá já passado à história e o que se lerá mais são os resultados eleitorais, sua análise e consequências para os diversos partidos.
Mas só passadas as eleições se tem verdadeira liberdade para se analisar o que se passou durante a campanha, por tal já não poder ser interpretado e levado à conta de, sob a capa de independência de espírito, se tentar passar alguma mensagem ainda que subliminar.
Estas eleições foram para escolher os deputados europeus. Seria de esperar, depois de tanto se falar nos malefícios da organização da União, da necessidade de aproximar os eleitos dos eleitores, da falta de democraticidade, da revisão do Tratado de Lisboa, do euro e das supostas maldades que provoca nas nossas vidas, dos eurobonds, do Fundo Europeu de Estabilização Financeira, do estatuto do Banco Central Europeu, que os temas discutidos andassem por aí.
Mas o que foi que vimos, ouvimos e lemos nesta campanha?
O principal partido da oposição resolveu apresentar as suas propostas para o país durante esta campanha; o desvio da discussão daquilo que verdadeiramente estaria em causa foi imediato e, aparentemente intencional, embora os resultados nesta altura não devam ter sido os pretendidos porque se começou de imediato a discutir os seus custos, discussão nunca pacífica.


A coligação que suporta o actual governo não encontrou outros motivos de discussão que não o aparecimento na campanha do anterior primeiro-ministro.
Em determinado momento, sem que nada o fizesse prever nem se compreendam as razões para tal, a discussão focou-se em vírus, judeus e nazis!
Até o desporto entrou na liça, quando um partido propôs que o surf passasse a fazer parte dos currículos escolares.
Houve quem clamasse que estas eleições serviriam para dar um cartão vermelho ao governo, mostrando assim em que grau coloca as questões europeias e para que pensa servir os deputados eleitos pelas suas listas.
Nem se diga dos nossos parceiros europeus que não tenham dado motivos mais que importantes para justificarem a discussão dos temas europeus durante a campanha. Desde Sarkozy que veio propor preto no branco a institucionalização do directório franco-alemão para governar a União através do fim da igualdade dos estados membros, até Ângela Merkel que calmamente, do alto da sua mais que provável vitória eleitoral, confiava estar já a tratar da constituição da futura Comissão.
Entre nós, só Marcelo Rebelo de Sousa mostrou entender bem o que estava mesmo em causa nestas eleições, ao vir a Coimbra dizer que tencionava votar na coligação PSD/CDS para ajudar à eleição de Jean-Claude Juncker para a presidência da Comissão Europeia e deixando bem claro que os nomes dos candidatos a deputados europeus interessam bem pouco.
À esquerda do PS levantaram-se muitas das bandeiras que nos restantes países da união são defendidas pelos partidos mais à direita, com as críticas à Europa capitalista e ao euro à cabeça. Assim se põe tudo permanentemente em causa, colocando ilusões à frente dos interesses das populações europeias que estão fartas de demonstrar querer pertencer a esta Europa que lhes tem garantido paz e prosperidade, apesar de momentos menos bons, como o que atravessamos.
Passa assim incólume a mensagem de que a Europa e o Euro são responsáveis pelos nossos problemas, que o paraíso seria sairmos da moeda única, quando a brutal desvalorização da moeda, as falências generalizadas, a fuga de capitais e a inflação que se seguiriam originariam o caos no país e, certamente, as condições para que um golpe de estado militar acontecesse sem reação da União, porque já não lhe pertenceríamos. A União tem problemas graves, há muito a discutir e a melhorar, mas dentro da União. As eleições europeias já passaram e foram importantes. Não percamos mais tempo com vírus, surfs e o umbigo dos srs. candidatos agora eleitos deputados.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Maio de 2014

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Saída do PAEF



Os representantes da Troika foram-se embora depois de concluída a 12ª e última avaliação do cumprimento do memorando de entendimento respeitante ao “Programa de Assistência Económica e Financeira” (PAEF) assinado em 17 de Maio de 2011 que fica agora encerrado.

Muito se tem dito e escrito sobre o PAEF, sobre a austeridade que significou e sobre o que nos levou a pedir a ajuda da União Europeia e do FMI, mas o mais importante de tudo isto é o nosso futuro colectivo.
Em primeiro lugar, há que ter consciência de que fomos nós que pedimos ajuda em desespero de causa. Já não podíamos pedir dinheiro emprestado nos famosos “mercados”, dado que tinham perdido a confiança em Portugal e isso reflectia-se nas taxas de juro que nos pediam, pelos 12% e em subida permanente. 
Fala-se no chumbo do famoso PEC IV mas, dado o estado a que o país tinha chegado, seria como tentar tratar uma tuberculose com aspirina. Mas pouco se fala no mais importante de tudo e que terá estado na origem de todos os nossos problemas. De facto, apesar de todas as políticas de fomento da economia seguidas nos anos anteriores, desde as SCUT’s ao Euro e às energias renováveis, a nossa economia estava desde há muito a afastar-se (para baixo, entenda-se) das outras economias europeias. Quando o crédito era barato e o investimento público atingia valores nunca antes sonhados, entre os anos 2000 e 2007 - o ano anterior à crise, a economia portuguesa cresceu uns magros 3,37%, e apenas a Itália cresceu menos (3,14%). Mesmo a Grécia cresceu 8,12% e os restantes países europeus do euro entre 10 e 25%. É evidente que, quando um país tem este crescimento miserável, não se geram impostos que paguem as despesas do Estado, principalmente quando estas crescem, criando um défice crescente das contas públicas que, mais tarde ou mais cedo, associado a uma dívida pública galopante, teria necessariamente que levar a problemas graves. É aqui que reside o nosso maior problema, que não resulta da austeridade e sim de anos e anos de políticas públicas desastradas, para dizer o mínimo. A despesa pública tornou-se uma canga sobre a economia que a asfixia e impede de mexer.
Por isso o “memorando de entendimento” dava tanta atenção às reformas estruturais focalizadas no baixo potencial de crescimento da economia portuguesa, originado em boa parte pelo desequilíbrio estrutural entre o sector não transaccionável, incluindo o Estado e o sector transaccionável, o mais importante, por incluir as exportações. Durante a aplicação do PAEF, as exportações passaram de menos de 25% do PIB para aproximadamente 40%, como hoje sucede. Esta é uma alteração importantíssima, pouco referida, mas que significa uma viragem no que vinha sucedendo há muitos anos. Por outro lado, houve uma mudança crucial nas contas públicas, tendo o saldo orçamental primário (isto é, antes de juros de empréstimos) passado de negativo, como era também há muitos anos, para positivo.
Refere-se frequentemente como fracasso o aumento entretanto registado na dívida pública, como se o PAEF não se tivesse justificado precisamente para pedir 78 mil milhões euros; e como se entretanto não se tivessem transferido para as contas do Estado as dívidas “escondidas” das empresas públicas e parcerias público privadas.
A austeridade trazida pela aplicação do “memorando de entendimento” é difícil de suportar por muitos portugueses. Mas muito mais difícil teria sido lidar com a bancarrota ou a saída imposta do Euro.
Num momento em que Portugal volta a ter a possibilidade de aceder a financiamento externo sem rede, bom seria que todos reconhecessem os pesados sacrifícios que os portugueses aguentaram e ainda que vamos continuar a depender dos tais “mercados” para financiar o Estado, incluindo o “Estado Social”. Se não formos todos capazes de olhar para o futuro, reconhecendo as dificuldades do País e não deste ou daquele governo, depressa teremos aí o FMI de novo, pela quarta vez, e nessa altura não haverá ninguém que evite uma autêntica tragédia económica e social.
Muito a propósito, a revista Economist da semana passada citava Tocqueville: “os demónios, que esperam pacientemente quando parecem inevitáveis, tornam-se intoleráveis quando a ideia de fuga deles é sugerida”, isto é, as revoluções surgem não quando as condições pioram, mas quando começam a melhorar.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 de Maio de 2014

Malomil: No devagar depressa dos tempos.

Malomil: No devagar depressa dos tempos.:  

terça-feira, 13 de maio de 2014

A ARTE E A VIDA (Mário Silva)



É conhecida a frequente discrepância entre a arte de muitos grandes artistas e a sua própria vida. Não vale a pena referenciar nomes, mas todos nos lembraremos de grandes pintores, compositores musicais, escritores ou artistas de cinema que nos comovem com as suas composições artísticas e cujas relações com os próximos não se pautaram pela simpatia ou sequer pela mínima aceitação pessoal.
Entre nós vive um grande artista que é exactamente o contrário disso. Mestre Mário Silva é um dos nossos maiores artistas contemporâneos, não só na pintura mas também na escultura, no desenho, na cerâmica e na ilustração. A sua genialidade manifesta-se de forma constante nas diversas épocas que se conseguem detectar na sua longa vida artística. Ao apreciar a sua arte ao longo dos mais de cinquenta nos que leva a sua carreira, sentimos verdadeiramente que a arte é a procura da verdade, que traz a eternidade dentro de si.
A sua carreira artística levou-o a ter participado em numerosas exposições individuais e colectivas em Portugal, na Suécia, na Bélgica, na Holanda, em França, em Itália, nos EUA, no Brasil, no Japão, etc. Os prémios que recebeu são inúmeros em diversos países, designadamente a Itália. Está representado em museus por toda a Europa, no Brasil, EUA e claro, em Portugal. Se é hábito dizer-se que o tempo é o maior garante da qualidade da obra artística de um autor, através da sua perenidade, no caso de Mário Silva essa prova está já feita.
Artista irreverente, por vezes mesmo iconoclasta, coloca permanentemente em questão ideias feitas, preconceitos e tradicionalismos sem sentido.
A sua atitude provocatória perante os convencionalismos sociais estéreis manifestou-se durante a sua vida das mais diversas formas, desde surgir numa exposição vestido com fato de mergulhador, incluindo barbatanas até convidar amigos e comunicação social para uma queima pública dos seus quadros na praça pública em protesto contra alterações fiscais sobre as obras de arte. Claro que, em privado, sempre vai dizendo com aquele seu sorriso matreiro que eram apenas cópias sem qualquer valor.

Mas ao lado da sua turbulência artística, Mário Silva é um Homem de extrema afabilidade, cuidando com inteligência mas com grande afecto todos aqueles que com ele de alguma forma contactam. A sua ligação carinhosa com os elementos da sua família é verdadeiramente comovente. E é mesmo surpreendente observar como consegue estabelecer contacto com grupos de crianças a quem ensina técnicas de pintura básicas levando-as a produzir desenhos únicos, respeitando as suas brincadeiras e guiando-as na descoberta da produção artística. Assim fossem todos os pedagogos.
Mestre Mário Silva mora numa rua estreita de Lavos na Figueira da Foz, vizinho de pescadores. Apesar de a sua obra estar representada em todo o mundo, ao contrário de tantos outros artistas, nunca enriqueceu com o seu trabalho. Quando o visitamos, leva-nos a ver o seu “museu”, mostrando-nos as peças que possui um pouco de todo o mundo, explicando-nos a sua proveniência e o seu significado, tantas vezes com uma ironia subtil que é, ela própria, uma forma de arte. E é um seu gesto próprio retirar alguma peça do seu acervo e oferecê-la logo ali a quem gosta.
Mestre Mário Silva gosta de captar os momentos sempre difíceis da faina da pesca tão característica da nossa cidade irmã da Figueira da Foz em muitos dos seus quadros. E não precisa de estar a ver Coimbra para a pintar com um pormenor e uma sensibilidade inimitáveis. Se ele próprio costuma dizer que nasceu para a arte; nós podemos dizer que Mário Silva nasceu para nos oferecer a sua arte e a vivência amiga e fraterna.


Publicado originalmente no Diário de Coimbra de 12 de Maio de 2014




segunda-feira, 5 de maio de 2014

EQUAÇÃO DO TEMPO



A História da Humanidade mostra-nos que sempre houve civilizações contemporâneas diferentes e quase tão imiscíveis como a água e o azeite. Nas últimas dezenas de anos, contudo, tem-se assistido a uma alteração radical dessa situação. A globalização económica tem provocado uma “normalização” do mundo, aproximando civilizações antes afastadas, sendo a evolução do Japão e, ultimamente da China, talvez os exemplos mais marcantes dessa evolução.

  Uma das consequências destas transformações é uma artificialização crescente das nossas vidas, com o desaparecimento de muitas ligações ao mundo real. Sinais disso mesmo são, por exemplo, a possibilidade de comprar durante todo o ano alimentos que dantes só se encontravam nas estações do ano em que naturalmente se desenvolviam. Ou podermos facilmente encontrar no supermercado da nossa rua alimentos característicos de determinadas partes do mundo situadas nos nossos antípodas.
As tecnologias de informação e, em particular a internet, vieram dar todo um novo e mais perturbante significado às teorias da cibernética. De repente, o mundo tornou-se mesmo uma aldeia global e qualquer acidente no ponto mais remoto do planeta é instantaneamente conhecido em todo o mundo; as transações financeiras passaram a dar a volta ao planeta várias vezes por dia, colocando as ordens nas mãos de máquinas e já não de cérebros humanos.
Com tantos instrumentos electrónicos à nossa volta perdemos a noção do tempo que passou a ser apenas o conhecimento da hora local, eventualmente com uma precisão de muitos milésimos de segundo que não nos serve para nada.

Quem de entre nós mantém a ligação à Natureza, percebendo a razão por que o dia tem legalmente 24 horas? E qual a razão do ano ter 365,242199 dias e não 365 dias inteiros e como se resolve esse problema? E em que consiste o calendário gregoriano e qual o motivoo para que tenha sido adoptado em 1582 em substituição do calendário juliano, assim alterando as datas de todas as efemérides importantes até então?
Se o leitor julga que a hora que o seu relógio preciso até mais não pelo vibrar do cristal de quartzo está sempre certa, engana-se; de facto só está certa quatro dias por ano, porque a Terra na sua rotação à volta do Sol segue uma elipse imperfeita, o que leva a que a duração real dos dias varie entre 23 horas 44 e minutos em 3 de Novembro e 24 horas e 14 minutos em 11 de Fevereiro, havendo quatro dias por ano com uma duração igual à duração média.
Esta diferença é a “Equação do Tempo”, cujo conhecimento exacto é crucial para muito mais aparelhos e situações importantes para o seu conforto do que lhe passa pela cabeça.
Damos também por garantidas situações que são apenas transitórias. E esquecemos o nosso lugar na Terra e no Universo. Estranhamos e bem, claro, as posições extremistas e arrogantes e homocêntricas da Igreja na Idade Média que não aceitava o lugar excêntrico da Terra no sistema Solar e no fundo vivemos hoje em dia como se a existência do Universo se justificasse por e para nós.
A “equação do tempo” é apenas o símbolo de como toda a nossa vida contemporânea esquece o funcionamento do Universo em que apenas habitamos um minúsculo planeta num sistema solar irrelevante e periférico numa galáxia que é apenas uma das mais pequenas entre milhões delas que a cada segundo se afastam a uma velocidade vertiginosa. Mais importante para a nossa vida e dos que se nos seguirão é compreender como o planeta em que habitamos é verdadeiramente importante, não deixando que todas as facilidades da técnica nos façam esquecer de que temos que cuidar dele e, já agora, dos homens e mulheres em concreto que nele vivem.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 5 de Maio de 2014