segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Noite saudável



Mais cedo ou mais tarde todos nós nos deparamos, de um forma ou de outra, com a vida nocturna da nossa cidade. Quanto mais não seja porque temos jovens em casa que, naturalmente, lá vêm por uma vez ou por outra pedir para “ir para a noite.
A noite tem hoje um aspecto importante na vida dos jovens e mesmo da sua aprendizagem da interacção com os outros, fazendo parte do seu processo de crescimento. O lazer corresponde ao tempo de folga do trabalho ou mesmo do estudo e pode ser utilizado em divertimento ou recreação sendo hoje entendido como essencial ao equilíbrio pessoal e à formação da personalidade.Claro que por vezes deparamos também com aspectos desagradáveis da “noite” que se revelam quando percorremos algumas ruas da cidade bem cedo, com a saída dos últimos noctívagos ou com a leitura de notícias sobre acidentes de trânsito na madrugada ou sobre resultados de controlo de álcool em condutores.
Mas, talvez pior, é a manifestação de violência potenciada por abuso de consumo de bebidas alcoólicas ou de substâncias ilícitas. Violência física, com consequências visíveis, mas muitas vezes violência psicológica que deixa marcas interiores, por vezes mais difíceis de sarar e que frequentemente se vêm a manifestar na vida dos agredidos muitos anos depois, condicionando o contacto normal com as outras pessoas.
Claro que não tem de ser assim e, felizmente, nem o será a maior parte das vezes e na maior parte do tempo. Mas não sejamos ingénuos, nem fechemos os olhos ao que tantas vezes acontece.
A consciência de que a noite tem um papel importante na formação dos jovens de hoje e de que muitos interesses se cruzam e algumas pessoas se aproveitam disso para fins inconfessáveis levou a que profissionais de saúde e entidades preocupadas com esta problemática se debruçassem sobre a mesma e partissem de forma coordenada para acções concretas.
 Surgiu assim o Projecto Noite Saudável em Coimbra promovido em conjunto pelo Centro de Prevenção e Tratamento do Trauma Psicogénico, o CRI de Psiquiatria e Saúde Mental do CHUC e o Instituto Europeu para o Estudo dos Factores de Risco-Portugal. Os principais objectivos deste projecto são precisamente “eliminar os factores de risco e potenciar os factores promotores de saúde e bem estar na noite da nossa cidade a par com o reforço da resiliência comunitária”.
Ao longo de quatro estações do ano, desenvolveram-se assim diversas iniciativas, de carácter diverso, em conjunto com diversas entidades que se associaram ao projecto.

Uma dessas entidades é a Orquestra Clássica do Centro. Assim, no próximo dia 5 de Dezembro um Quarteto de Cordas fará a abertura de uma Conferência integrada neste projecto, em que falará o Doutor Constantino Sakellarides,e que terá lugar no Auditório do CHUC durante a manhã. À noite, no Pavilhão Centro de Portugal, decorrerá a “Milonga Tango e Vida”. No dia 6 de Dezembro, pelas 21:30, a Orquestra Clássica do Centro dará um Concerto na Igreja de Santa Cruz.
Nas conferências que já tiveram lugar, tem sido salientado que, longe de se tomar uma posição contra a “noite”, se deve reconhecer o seu papel importante no lazer e no convívio entre os jovens. Em vez de a combater, há que torna-la saudável e, se possível, fazer da noite de Coimbra num exemplo nacional. Para isso, será essencial a comunhão de esforços entre técnicos de saúde e outras entidades como autarquias, associações de estudantes, empresários e trabalhadores dos restaurantes e bares e ainda forças policiais.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Dezembro de 2014

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A doença dos legionários



Nos dias que correm, um cronista que deseje comentar os choques do quotidiano, só tem um problema: a escolha do tema. Para referir apenas as últimas semanas, entraram na nossa vida em todo o explendor os problemas da PT,do Espírito Santo, dos Vistos Dourados, das “Secretas” e, qual cereja em cima do bolo, o espectáculo deprimente da detenção do anterior primeiro-ministro na sequência de investigações judiciais relacionadas com a comezinha corrupção. Realmente, os portugueses não têm possibilidade de sossegar o espírito, pouco espaço restando para imaginar o que aí virá ainda. Como pano de fundo de tudo isto, uma clara degradação ética de supostas elites, associada a uma ganância obscena por poder e dinheiro.
Felizmente, uma das maiores preocupações que nos afligiu nos últimos dias teve na sexta feira passada o seu epílogo. O ministro da Saúde declarou extinto o surto da “Doença dos Legionários” que teve início em 7 de Novembro, tendo-se registado 336 casos e dez mortes.
A “doença dos legionários” deve o seu nome ao primeiro surto conhecido que ocorreu em 1976 durante uma convenção de legionários americanos num Hotel em Filadélfia que originou a morte de 34 pessoas. Veio a provar-se que a bactéria na origem deste tipo de pneumonia estava alojada nos chillers do sistema de ar condicionado do Hotel, daí o seu nome “legionella”.

A ciência coloca hoje as bactérias como estando na origem da vida na Terra tal como a conhecemos. Durante uns dois milhões de anos terão sido mesmo a única forma de vida na Terra. A determinada altura, um tipo de bactérias, as cianobactérias, começaram a viver do hidrogénio que retiravam das moléculas de água que existia em grande quantidade tendo como resultado a produção de oxigénio; fizeram-no em tal quantidade durante esses milhões de anos, que criaram condições para o surgimento e desenvolvimento das formas de vida que, como nós, dependem do oxigénio para viver. Continuamos dependentes das bactérias, que o nosso corpo carrega permanentemente uns cem mil biliões delas que nos ajudam a fazer praticamente tudo para viver. Algumas das bactérias que entram no nosso organismo podem, no entanto, ser muito perigosas. É o caso da legionella. Como se desenvolve em determinados ambientes como sistemas de armazenamento e água e, fundamentalmente, sistemas de ar condicionado de dimensão razoável, é necessário um controlo ambiental apertado sobre o seu surgimento.
De vez em quando, com condições climatéricas favoráveis e falta de controlo permanente, surgem surtos. Foi este o caso recente em Vila Franca de Xira, com as torres de arrefecimento de água de uma fábrica a lançarem partículas minúsculas de água para a atmosfera que o vento se encarregou de transportar e espalhar. Toda a população da área ficou exposta apenas por respirar e surgiu o surto de legionella com as consequências que se sabem. É evidente que a empresa proprietária da fábrica que esteve na sua origem vai ser objecto de acção judicial para determinar responsabilidades, havendo igualmente lugar a indemnizações que, como é natural, não pagarão nunca as mortes que se verificaram. E deverão igualmente ser tiradas consequências legislativas que venham a impedir, o mais possível, casos semelhantes no futuro.
Mas este surto veio mostrar que algumas coisas funcionam bem em Portugal. Este surto foi combatido por diversas entidades oficiais de mais que um ministério, sob a coordenação do ministro da Saúde. Houve eficácia na montagem de um complexo e grande dispositivo de saúde para acolher e tratar um número invulgar de doentes em graves condições de saúde, num ambiente sanitário difícil. As equipas de recolha de amostras e o Instituto Ricardo Jorge que as analisou trabalharam em grande velocidade e com competência para, através de eliminação de dezenas de suspeitas, identificarem com grau grande de certeza qual a fonte do surto, permitindo a sua eliminação.

Por fim, e não menos importante, foi montado um plano eficaz de comunicação que, mostrando competência, transparência e verdade, criou confiança nas populações mais directamente atingidas, factor crucial para o sucesso. Tantas coisas têm corrido mal em Portugal nos últimos tempos que, quando algo que à partida tem grandes hipóteses de correr mal acaba por correr bem, só nos podemos dar por satisfeitos e louvar publicamente os responsáveis por isso.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Novembro de 2014

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A visita ao cometa



Vindo dos confins do sistema solar, da cintura Kuiper situada para lá da órbita de Neptuno onde tem por companhia habitual inúmeros objectos gelados, o cometa Churyumov-Gerasimenko aproxima-se de novo do Sol, como acontece regularmente cada seis anos e meio. Neste momento, viaja a 55 mil quilómetros por hora, algures entre as órbitas de Marte e Júpiter. O cometa deve o seu nome a dois astrónomos ucranianos que trabalhavam no Instituto Astrofísico de Alma-Ata no Casaquistão em 1969: Svetlana Gerasimenko que que tirou a fotografia em que ele surgia e o seu colega Klim Churyumov que fez a identificação.
Mas, desta vez, o cometa também conhecido como 67P não viaja sózinho. Desde a passada quarta-feira, dia 12 de Novembro de 2014, um pequeno robô chamado Philae está pousado na sua superfície, que analisou a sua constituição e enviou esses dados para a Terra para estudo posterior. O Philae foi lançado para a superfície do cometa pela sonda Rosetta que se juntou ao 67P em Agosto passado, acompanhando-o na sua órbita a uma distância de apenas noventa e poucos quilómetros.
Curiosamente, os nomes dados às duas sondas remetem para o antigo Egipto. Rosetta era o nome da pedra descoberta durante a expedição francesa ao Egipto e que permitiu a Champollion decifrar a escrita egípcia em 1822, dado que nela estava inscrito o mesmo texto em três linguas diferentes: o grego, o egípcio antigo e o egípcio tardio. Philae é o nome de uma ilha no rio Nilo onde foi descoberto um obelisco que, juntamente com a pedra de Rosetta, possibilitou decifrar a antiga língua do Egipto.
Para que a sonda Rosetta encontrasse o 67P no vazio do espaço sideral, no fim de uma longa perseguição, muita coisa se passou.  A expedição foi aprovada pela Agência Espacial Europeia em 1993 e o lançamento foi feito em Março de 2004 há, portanto, dez anos. Neste período de tempo, a sonda Rosetta viajou pelo sistema solar, tendo passado pela Terra por três vezes e por Marte uma vez, aproveitando a gravidade deste planetas para impulsionar a sua velocidade até à necessária para acompanhar o cometa e entrar na sua órbita em Agosto passado, depois de ter percorrido 6,4 mil milhões de quilómetros.

Investigar directamente um cometa é de uma importância crucial para se conhecer melhor a História do Universo. De facto, considera-se normalmente que a sua formação data do início do surgimento do sistema solar, estando a matéria que os constitui preservada, dado que passam a maior parte do tempo muito longe do Sol. Por exemplo, o cometa 67P só em cerca de seis em seis anos se aproxima do Sol, passando ainda assim bastante longe dele, entre as órbitas da Terra e de Marte durante apenas alguns meses, regressando depois para as profundezas geladas da cintura de Kuiper. Poderá ainda dar informações sobre a própria vida na Terra, dado que se pensa que cometas possam ter trazido água, gelo e mesmo matéria orgânica para o nosso planeta.
O robô Philae tem baterias que duraram 64 horas, período de tempo que os cientistas aproveitaram para recolher a maior informação possível. O facto de Philae não ter “aterrado” no cometa como desejado pode ter limitado a informação que conseguiu obter, mas não retira qualquer mérito ao sucesso da missão. 
A sonda Rosetta vai orbitar o 67P até Dezembro de 2015,continuando a enviar informação, altura em que se separará do cometa, terminando a sua missão. Estão tão longe da Terra que, mesmo à velocidade da luz, a transmissão demora cerca de 30 minutos a chegar até nós.
Em tempos de preponderância de notícias desagradáveis, este acontecimento sabe bem. Para toda a Humanidade, significa mais um passo no conhecimento do Universo e do que somos. Depois, é motivo de orgulho para os europeus que ultimamente têm tido razões para insatisfação generalizada. E para um cidadão vulgar, é certamente motivo da maior admiração pelo feitos conseguidos. Planear uma missão altamente sofisticada e a longo prazo, financiá-la e mantê-la operacional durante todo este tempo é um feito memorável. Como notável é a capacidade científica para atirar uma sonda para o espaço, levá-la a passar perto de planetas para lhe dar a velocidade necessária, adormecê-la enquanto corre a uma velocidade louca pelo Espaço e encontar-se com toda a precisão com um pequeno objecto com uma dimensão reduzida de 5 por 3 km que voa também a uma velocidade estonteante..
Um juiz de uma causa horrível respondeu uma vez quando lhe perguntaram por que achava que a Humanidade valia a pena, dizendo que tinha lido o Diário de Ann Frank. Este feito da Europa para toda a Humanidade é também a prova de que continua a valer a pena acreditar no Homem.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Novembro de 2014

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O regresso dos fanatismos



A evolução económica, social e essencialmente cultural do chamado ocidente levou a que muitas das posições que ao longo da História eram consideradas normais e aceitáveis sejam hoje consideradas como fundamentalistas. 

E ainda bem! De facto só se pode considerar como avanço civilizacional a capacidade de olhar para os textos religiosos, políticos ou outros como produto da inteligência, imaginação ou mesmo humildade de Homens e Mulheres ao longo dos tempos. E respeitar todos os seres humanos como iguais em direitos.
Embora diminuta perante a idade da Terra ou do Universo, a História da Humanidade tem já algumas dezenas de milhares de anos, em que obrigatoriamente se contam momentos bons e maus ou mesmo muito maus. Estes últimos correspondem normalmente a dominações violentas de partes da humanidade por outras que se acham superiores de alguma maneira. Olhando para a evolução civilizacional é possível verificar que nas últimas centenas de anos experimentou uma aceleração nunca antes vista. Há cerca de mil anos, a razão maior da violência entre povos europeus era uma, a religião. À conquista de grande parte da europa mediterrânica pelos muçulmanos em nome do Islão, seguiu-se o levantamento pelos povos cristãos conquistados que lentamente foram expulsando os islamitas, o que veio a suceder em definitivo na Península Ibérica apenas no século XV. 
Os tempos de confronto violento contra “o outro” são sempre terreno fértil para o fundamentalismo que facilita os processos mentais que levam à violência, pelo que esses foram tempos de fanatismos extremos e guerras de violência inaudita.
Passados esses tempos, manteve-se o fundamentalismo religioso que, entre nós, ganhou a expressão máxima na Inquisição que, para nossa vergonha, só veio a terminar no início do século XIX, há duzentos anos.
Na transição do século XVIII para o século XIX o Ocidente conheceu um dos momentos de maiores implicações filosóficas e culturais da História, a Revolução Francesa. Apesar dos seus grandes objectivos proclamados, a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade, acabou por desaguar numa violência fanática extrema, cujo símbolo maior é a guilhotina, inventada para maior eficácia no castigo generalizado para os chamados inimigos da Revolução. O próprio Robespierre, “o incorruptível”, acabou por em 1794 ser vítima da solução final que utilizara para tantos milhares de oponentes, acabando também guilhotinado.

Na sequência da Revolução Francesa o fundamentalismo religioso no ocidente foi diminuindo gradualmente até praticamente desaparecer. Claro que existem sempre margens ocupadas por aqueles para quem o sentimento religioso deve enformar todos os aspectos da vida, o que facilmente desemboca no fundamentalismo, mas são minorias sem expressão social.
O fanatismo político veio a atingir o seu pico trágico ainda durante o Século XX. Após o fim da Segunda Grande Guerra, o mundo e em particular o ocidente, conheceu décadas de prosperidade que acompanharam uma diminuição notória dos fundamentalismos. Quando se pensaria que esta evolução estaria bem sustentada eis que, poucas décadas após o fim da guerra fria que manteve boa parte do mundo em alerta, voltam os extremismos fundamentalistas como se tivessem estado apenas adormecidos.
O ressurgimento espantoso do fundamentalismo religioso islâmico, que se manifesta, não só no médio oriente de forma extrema com o chamado “estado Islâmico”, mas também em África na Nigéria e na Ásia na Indonésia. 

Este fanatismo coloca em causa toda uma construção civilizacional que se pensava estável e adquirida, como sejam os direitos do Homem, os direitos da Criança e até mesmo desaparecimento da escravatura. Nos mais diversos países da Europa ressurgem em força os partidos extremistas que defendem a xenofobia, o racismo e atacam as minorias deprotegidas.
Pouco está nas nossas mãos fazer como cidadãos individuais, para além de adoptar uma intransigência absoluta relativamente aos fundamentalistas, venham de onde vierem. Cá por mim não esqueço a máxima de um velho amigo: admito tudo, fanáticos é que não!
 Publicado originamente no Diário de Coimbra em 100 de Novembro de 2014