segunda-feira, 29 de junho de 2015

E se…tivesse sido diferente?




Numerosos livros de ficção têm sido escritos sobre o que teria sido a História se, em determinados momentos cruciais, tivessem ocorrido desfechos contrários aos que realmente aconteceram. Num dos exemplos mais conhecidos, especula-se sobre o que seria hoje a Europa e mesmo o mundo, se Hitler tivesse vencido a Segunda Grande Guerra. Tal poderia ter sucedido, por exemplo, caso o desembarque aliado na Normandia em Junho de 1944 não tivesse sido vitorioso, atrasando toda a estratégia aliada e permitindo aos alemães terminar o desenvolvimento eminente de novos e mortíferos armamentos a que os aliados não poderiam responder militarmente. Noutra versão do género especula-se, não sobre o passado, mas sobre o futuro. É o caso do livro “Submissão” de Michel Houllebecq, recentemente surgido.
 De uma forma negra e algo tenebrosa mas excepcionalmente bem escrita descreve como, num futuro próximo, o islamismo toma conta do poder em França através de eleições, numa estranha aliança para evitar a vitória da Frente Nacional.
Na realidade, a História foi-nos ensinada como uma sucessão indiscutível de factos, todos interligados de uma forma que se diria “natural”, razão por que o tipo de ficção acima descrito terá hoje um sucesso assinalável. Para quem, como eu, frequentou o liceu nos anos sessenta e inícios de setenta, a História era mesmo apresentada como uma sucessão de vidas de personagens históricos, quase sempre imbuídos de heroísmo, muito desligada das condições concretas de vida dos povos. No que respeita à História de Portugal, aquilo que era ensinado divergia mesmo muito daquilo que hoje nos é permitido saber. É certo que próprio estudo da História é hoje muito diferente do que costumava ser, embora ainda se note muito que a análise e estudo do que aconteceu há muitos anos ou mesmo séculos, se faz muito usando lentes comprometidas com visões ideológicas dos historiadores. Se a História que nos era ensinada pelos historiadores tradicionais apresentava uma versão que ia ao encontro dos valores defendidos pelo regime do Estado Novo, há hoje historiadores que apenas veem a exploração dos oprimidos, por aplicação automática da vulgata marxista.
Como escreve José Mattoso na sua notável e esclarecedora “Identificação de um País” referindo-se ao caso concreto da polémica sobre o feudalismo em Portugal que alguns historiadores defendem nunca ter existido, os historiadores tradicionais “limitavam o «feudalismo» às relações entre os membros da classe senhorial decorrentes do contrato feudal, enquanto os segundos (marxistas) referiam-se apenas à exploração do campesinato pela nobreza”.
Continuando na Idade Média, neste caso a portuguesa, qual teria sido o rumo da História se os apoiantes de D. Afonso Henriques tivessem sido derrotados na batalha de S. Mamede em 24 de Junho de 1128? Sua mãe D. Teresa mantinha uma estreita ligação com a mais alta nobreza da Galiza que, lembra-se, tinha sido atribuída por seu pai o rei D. Afonso VI de Leão e Castela, a sua meia irmã Urraca que casou com o conde D. Raimundo de Borgonha. Por outro lado, D. Teresa havia recebido o novo Condado Portucalense que abrangia os anteriores de Portucale e de Coimbra, ao casar com D. Henrique de Borgonha. No meio de tudo isto, a Igreja impunha as suas regras e condicionava fortemente a acção dos responsáveis políticos, fundamentalmente pela sua política de reconhecimento ou não de relações e casamentos, através das excomunhões usadas como arma política.
E se D. Afonso Henriques tivesse perdido a batalha de S. Mamede, como esteve quase a acontecer segundo a IV Crónica Breve de Sta. Cruz do século XIV, que diverge em muito dos Anais de D. Afonso Henriques do cónego de Sta. Cruz na narrativa dos acontecimentos da época? Um dos caminhos históricos poderia ter sido a continuação do Condado Portucalense dentro do Reino de Leão e Castela e neste caso Portugal nunca teria existido como nação. Mas as incursões dos almorávidas que em 1116 fizeram um violento assédio a Coimbra, foram combatidas com o apoio dos nobres galegos, incluindo Fernão Peres de Trava que chegou a comandar as tropas na região do rio Mondego. Isto é, uma saída alternativa poderia ter sido a junção da Galiza ao Condado Portucalense num único reino que teria obrigatoriamente que crescer também para sul como aconteceu com D. Afonso Henriques e os seus sucessores, até se conquistar definitivamente o Algarve aos muçulmanos. Aí Portugal incluiria a Galiza, a que aliás a língua de raiz comum daria um cimento sólido.
Como é evidente, a História é aquela que foi e não a que poderia ter sido. Mas o conhecimento e a compreensão do que aconteceu e porquê, é vital para percebermos o que somos hoje, porque o somos e qual o nosso papel no mundo.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 de Junho de 2015

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Lições da História: Waterloo




Há personagens históricas que, pela força que delas emana, exercem um forte fascínio generalizado, ainda que a sua acção concreta tenha levado aos maiores desastres. Napoleão foi definitivamente derrotado em Waterloo há duzentos anos, em 18 de Junho de 1815, numa batalha mortífera cujo desfecho teve muito a ver com o acaso, mas que definiu os caminhos europeus por quase cem anos. No entanto, quem olhar para a História, dificilmente dirá que foi derrotado. Apesar de ter ocupado militarmente quase toda a Europa, Napoleão ainda hoje goza de uma aura que dificilmente se coaduna com o que fez durante a sua vida.
Napoleão revelou-se desde jovem como um militar brioso mas, fundamentalmente, desenvolveu um talento excepcional, primeiro do ponto de vista táctico, de comando de tropas no campo de batalha, e depois também como estratega, organizando campanhas militares de grande dimensão e criando as condições para o seu sucesso através de soluções inovadoras que duram até hoje.
Os seus homens seguiam-no cegamente, resultado de um carisma pessoal e de uma coragem na batalha que lhe conferiam uma poderosa voz de timoneiro sobre todos os que o seguiam. Conta-se o exemplo do Marechal Ney, um dos seus mais brilhantes comandantes, que aliás esteve com Massena no Buçaco. Quando Napoleão foi exilado para a Ilha de Elba, Ney, conhecido como “o bravo dos bravos”, prestou juramento de fidelidade ao regime de Luis XVIII. No entanto, quando Napoleão regressou para continuar no seu sonho louco de conquistar a Europa, Ney juntou-se-lhe de novo entusiasticamente. Após a derrota de Waterloo, quando colocado perante o pelotão de fuzilamento, o Marechal recusou a venda e deu a ordem de fogo sobre ele próprio, gritando que tinha participado em muitas batalhas, mas nunca contra soldados franceses.

A personalidade muito própria de Napoleão, que se considerava um predestinado, continuou a mostrar-se, mesmo depois de exilado definitivamente para a Ilha de Sta. Helena, onde veio a morrer. Aí se dedicou obsessivamente a ditar as suas memórias, para evitar que viessem a ser escritas de forma que, a seu ver, não fosse verdadeira e lhe tirasse o lugar na História a que achava que tinha direito.
Poucos anos após a sua morte, as suas cinzas foram levadas para os Inválidos em Paris, contando-se que as exéquias foram acompanhadas por mais de um milhão de franceses. O seu mito continuava vivo, o que acontece até hoje, sendo das personagens históricas mais populares entre os franceses, que recordam apenas as glórias militares e o entusiasmo que suscitava, principalmente entre o povo, esquecendo tudo o que de negativo teve.
Ainda hoje, mesmo entre nós portugueses que fomos invadidos e onde as tropas francesas praticaram os maiores desmandos, provocando sofrimento indizível, o nome de Napoleão não provoca a repulsa que seria de esperar. Mesmo Churchill, que detestava tudo o que tinha a ver com a revolução Francesa e a sequência que Napoleão lhe deu, levando a guerra a toda a Europa e sagrando-se a si próprio Imperador, tinha uma confessada admiração pelo seu génio militar.
De facto, Napoleão exerceu sempre um fascínio sobre os que o apoiavam, mas também sobre muitos que, não o apoiando ou mesmo guerreando-o, lhe reconheciam qualidades excepcionais, fundamentalmente do ponto de vista militar.
Napoleão foi talvez um exemplo à parte, por demasiado conspícuo, mas muitas pessoas, nomeadamente políticos, se consideram predestinadas para a sua acção na sociedade. Observam todas as circunstâncias da sua vida como concorrendo para o seu destino excepcional, pelo que por vezes se acham mesmo no direito de exercer a sua acção com a maior ferocidade de que se forem capazes. E é assim que, mostrando capacidade de definir objectivos superiores e a força interior para os conseguir seja de que maneira for, conseguem impressionar e transformar em seguidores mesmo quem à partida não se imaginasse que estivesse disponível para tal. Suscitam ódios, mas também uma admiração e até uma irracional e cega submissão e mesmo crença em tudo aquilo que dizem ou que fazem. Napoleão teve um primeiro exílio mais ou menos dourado em Elba e acabou os seus dias longe de tudo em Santa Helena. Diz-se que a História se repete sempre, sendo a segunda vez apenas uma farsa e bem andaríamos todos, se tivéssemos consciência dos exemplos históricos para a nossa vida. Poupar-nos-íamos a nós e, eventualmente aos outros, a tristes experiências.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Junho de 2015

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Aniversário da Magna Carta

Há aniversários que, embora originariamente digam respeito a datas marcantes para um determinado país, se revestem de um significado tão relevante que importam a toda a Humanidade. Claro que o tempo, esse inultrapassável construtor da História, se encarrega de filtrar as datas verdadeiramente importantes para o progresso da Humanidade, daquelas que os contemporâneos se convencem que o vão ser e afinal constituem simples marcos que apenas influenciam directamente algumas dezenas de anos da História. Entre aqueles contam-se, inevitavelmente a chegada de Vasco da Gama à Índia e a queda de Constantinopla que marcam o fim da Idade Média em 1498, a independência dos Estados Unidos com a sua Constituição em 1776, a própria Revolução Francesa em 1789 ou o desembarque aliado na Normandia em Junho de1944.
Mas o dia de hoje marca os 800 anos da assinatura da Magna Carta que ocorreu em 15 de Junho de 1215. Estava-se na Idade Média que ficou conhecida como a “idade das trevas” embora, lendo a História da Idade Média coordenada por Umberto Eco, se perceba como tal designação pode ser um erro histórico. E, apesar disso, o Rei João de Inglaterra assinou naquele dia a “Magna Charta Libertatum, seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae” que, no seu art.º 39º e, numa tradução livre, estabelecia:
“"Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra".
Independentemente das boas ou más razões que levaram João Sem Terra a assinar a Magna Carta, o documento ficou como inspiração para a definição das liberdades individuais e limites da acção do Estado em futuras constituições pelo mundo, de que o exemplo maior será talvez a Constituição Americana do século XVIII.
Certamente, aqui residirá igualmente a razão da tão antiga e sedimentada democracia inglesa que leva aquele povo, em momentos decisivos para a defesa da Liberdade, a afirmar muito simplesmente “we stand together” e partir para a luta custe o que custar, como aconteceu por duas vezes no século XX, em particular na Segunda Grande Guerra contra a barbárie nazi.
Nós, portugueses, podemos orgulhar-nos de nossos antepassados terem tido um papel importante na História da Humanidade. Mas há um aspecto particular em que não fomos exemplares e é precisamente aquele que tem a ver com as liberdades individuais que ainda hoje se percebe facilmente não serem entre nós objecto de um respeito que se possa considerar verdadeiramente inato.
De facto, a nossa primeira Constituição data do início do século XIX, há portanto duzentos anos.
Precisamente no momento histórico em que acabou a Inquisição portuguesa, extinta em 1821.
 Estado e Igreja tinham utilizado durante 285 anos um instrumento de dominação de tal forma terrível e quase impossível de evitar, que a nossa maneira de pensar e até de ser ficou marcada de forma evidente pelo medo e reverência face ao poder. Até hoje, porque nenhum povo pode viver mergulhado no medo durante tantas gerações, sem que tal influencie a própria personalidade colectiva. Mesmo o nosso século XIX ficou marcado por conflitos e até guerras civis que impediram uma aproximação popular aos valores da liberdade. E mais de metade do século XX decorreu também longe da democracia e das liberdades individuais.
É também por isso que faz sentido, entre nós, celebrar os oitocentos anos da Magna Carta. Para percebermos até que ponto somos ainda hoje tão diferentes de outros povos, particularmente do norte da Europa. E de que forma a nossa actual integração numa União Europeia, muito mais do que pela economia, nos importa pela integração social e política.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Junho de 2015

segunda-feira, 8 de junho de 2015

S. Francisco nos valha




As obras de construção do “Centro de Convenções e Espaço Cultural do Convento de S. Francisco”deverão estar concluídas dentro de alguns meses, após um imbróglio entre dono de obra e empreiteiro adjudicatário que, ao que tudo indica, só terminará em tribunal. Partindo da recuperação do antigo convento, que também já foi fábrica de lanifícios, o projecto do “Convento de S. Francisco”- chamemos-lhe assim para abreviar e também para abrigar todas as alternativas funcionais que poderá, ou não, vir a ter - passou a integrar uma sala de espectáculos com 1.200 lugares e um parque de estacionamento com mais de 500 lugares.
Desde o seu início que várias contradições atravessaram o caminho do projecto do “Convento de S. Francisco”. Desde logo, Centro Cultural ou Centro de Convenções? Conforme a decisão, o projecto (no seu sentido estrito de Arquitectura) seguiria caminhos diferentes, através de programas específicos. Não se sabendo o que escolher, resta a solução à portuguesa da actualidade, que é pedir ao arquitecto projectista para decidir e colocar lá tudo, que depois se vê o que se lá conseguirá fazer.
Aqui está o primeiro erro fatal. Qualquer promotor privado de um grande investimento faz estudos prévios de mercado, faz contas sobre a sustentabilidade do projecto e só escolhe a solução final de arquitectura depois de analisadas diversas hipóteses quer sob o ponto de vista de funcionalidade, quer de custos. Tudo isto com vista a várias coisas: em primeiro lugar, conseguir a resposta mais eficiente para aquilo que se quer; em segundo lugar, criar condições para que a obra decorra nos prazos indicados e que não tenha acréscimos de custos, isto é, que seja passível de ser controlada. Mas antes de tudo, para que isto seja possível, o promotor tem de saber exactamente o que quer, para que os projectos sejam claramente definidos e as soluções técnicas sejam as melhores e mais económicas. Depois, durante a obra, escolhe-se uma equipa com um responsável bem definido, que abranja as diversas áreas necessárias para assegurar a boa execução dos trabalhos, com capacidade para responder em tempo útil a todas as questões que os empreiteiros sempre colocam. Como costumo dizer, o dono de obra tem a faca e o queijo na mão antes de entregar a obra; depois disso, dono de obra, fiscalização e empreiteiro estão todos no mesmo barco numa tempestade que é tanto mais turbulenta, quanto maior a dimensão da obra; se o barco se afundar, vão todos ao fundo e não apenas um deles.
Nas obras do Estado, infelizmente, nada disto se passa e o Convento de S. Francisco é disso exemplo acabado, não sendo necessário analisar cada um dos pontos acima referidos, tal é a evidência do sucedido.
Discute-se hoje o que lá fazer depois das obras acabadas. Isto é, aquilo que deveria ter sido feito antes do próprio projecto, é agora o assunto do dia do Convento de S. Francisco, quando se vê finalmente a luz ao fundo do túnel das obras. Constata-se que, nem durante os anos que duraram as obras a Autarquia foi capaz de elaborar um plano de utilização do equipamento. Faz-se agora, tarde e a más horas, parecendo que gente conhecedora da matéria e competente se dedica finalmente ao assunto.
Este é um equipamento tão importante para a Cidade e região, que todas as forças políticas e entidades devem colaborar para que venha a ser um sucesso, ultrapassando um historial já de si negativo. No entanto, vem agora o anterior presidente da Câmara comentar sobre as aspirações de Coimbra quanto ao Convento de S. Francisco. Quanto a mim fez mal. Deveria ter algum pudor e até um pouco de bom senso ao abordar este assunto. Teve muito tempo para cuidar que as obras se desenvolvessem adequadamente e não o fez, embora tivesse sido aconselhado a tempo; teve muito tempo para definir o modelo de utilização do equipamento e nada se viu.
O Estado tem farta e poderosa legislação para evitar a corrupção nas obras públicas. O que muitas vezes falta, para que os investimentos públicos corram bem e sejam sustentáveis, é competência e humildade dos decisores desses investimentos para entenderem que não sabem tudo e se devem rodear de quem sabe.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Junho de 2015

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Josefa de Óbidos: mulher a conhecer



No tempo em que Portugal estava sob dominação filipina, nasceu em Sevilha uma menina chamada Josefa de Ayala, filha de pai português e mãe espanhola. Era ainda criança pequena quando, em 1634, os pais vieram viver para Óbidos, onde o pai Baltazar Gomes Figueira continuou a pintar os seus quadros, especialmente naturezas mortas, cuja técnica havia desenvolvido em Espanha, embora não fosse um estilo à época muito praticado por cá. Josefa aprendeu com seu pai os segredos da técnica da pintura, começando precisamente pelas naturezas mortas, mas abraçando e aperfeiçoando-se noutras temáticas.
Josefa de Óbidos, como ficou conhecida foi, a diversos títulos, uma mulher invulgar principalmente tendo em conta a época em que viveu. Quis ser e tornou-se uma mulher independente, para que não tivesse que prestar contas a ninguém. A sua fama como pintora excepcional permitiu-lhe viver, e viver muito bem, das encomendas que lhe faziam, tendo mesmo feito fortuna com o seu trabalho. As mulheres do seu tempo eram obrigadas a viver na total dependência dos maridos, algo que a personalidade de Josefa não aceitava, pelo que não casou. Mas não se ficou por aqui. Como mulher, dependeria sempre de um homem para fazer negócios, pelo que obteve a condição social de viúva, que lhe permitia ser independente. Enriqueceu com o seu trabalho que, para além da pintura, abrangia ainda outros negócios como compra e arrendamentos de propriedades para os quais demonstrou grande capacidade.

A sua pintura foi durante muitos anos desconsiderada e mesmo chamada de provinciana, sendo precursora do Barroco e caracterizando-se por uma grande profusão de pormenores delicadamente introduzidos nas suas pinturas, cujos motivos, essencialmente religiosos, reflectiam a sensibilidade artística do seu tempo. A sua produção artística e mesmo a sua circunstância faz lembrar outro grande artista do mesmo século, mas que durante muito tempo foi esquecido e relegado para um lugar secundário por a sua arte ser tida como exagerada, com demasiado referência à temática religiosa, de mau gosto e mesmo repetitiva: refiro-me a João Sebastião Bach, hoje justamente considerado um dos mais altos expoentes culturais de sempre.

Josefa de Óbidos começa hoje a ser olhada publicamente de outra forma, já que nunca deixou de ser uma artista das mais queridas e desejadas em colecções particulares no mundo inteiro.

Até 6 de Setembro, o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) na Rua das Janelas Verdes em Lisboa tem aberta a Exposição “Josefa de Óbidos e a Invenção do Barroco Português”. A raridade de uma exposição tão importante sobre a obra de uma pintora portuguesa do século XVII vem suscitar a curiosidade e o interesse sobre a mulher, a sua obra, mas também sobre o contexto em que viveu e trabalhou.
Esta exposição apresenta mais de 130 obras de Josefa de Óbidos, de pintura, mas também escultura e artes decorativas. As obras vieram de instituições nacionais e internacionais, de que se destacam os museus do Prado e de Bellas Artes de Sevilha e o Mosteiro do Escoria,l e ainda de colecções privadas, portuguesas e estrangeiras.
Entre as instituições que cederam peças para a exposição conta-se a Universidade de Coimbra, que enviou a imagem de Santa Catarina da Capela da Universidade, obra de Frei Cipriano da Cruz, representativa do Barroco em Portugal, estando ainda patente na entrada da exposição uma reprodução da pintura do tecto da Sala do Exame Privado da Universidade de Coimbra. Coimbra está ainda representada de outra maneira especial. 

De facto, o Director do Museu Nacional de Arte Antiga é, desde há cinco anos, um bom e velho amigo de Coimbra, António Pimentel. Não é certamente por acaso que o MNAA é hoje em dia o museu mais visitado do país, tendo recebido, só em 2014, mais de 200.000 pessoas. António Pimentel merece as nossas felicitações, não só por mais esta exposição magnífica, mas por ter transformado o MNAA numa casa viva, muito longe de um repositório de obras de arte. E o MNAA merece a nossa visita, caro leitor 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Junho de 2015