segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O REI VAI NU

Como acontecia todas as quintas-feiras desde que herdara o trono, el-rei avançou para a sala de despacho com a maior das satisfações. Se havia algo que lhe agradava no exercício das suas funções era o encontro com os secretários do reino que lhe traziam as pastas com propostas e assuntos tão bem tratados que bastava colocar a sua assinatura para que as acções se tornassem realidade. E eram todos tão simpáticos! Nunca deixavam de o cumprimentar com a maior das reverências, sublinhando como el-rei estava esplendoroso e bem vestido nesse dia, sublinhando como isso era motivo de orgulho e satisfação para todos os seus súbditos; até o cumprimentavam sempre pelo brilho das suas intervenções, pela grande cultura que manifestava e pela inteligência com que administrava os negócios do reino.
E aquela quinta-feira não foi excepção. Os assuntos eram muitos e variados e todos motivo de satisfação pelo que significavam de melhoria para a vida dos súbditos e claro, pela boa imagem que dele transmitiriam.
No fim do despacho, após a retirada dos secretários, foi com a melhor das disposições que recebeu os cumprimentos daquele seu primo companheiro de brincadeiras quando eram crianças e que há tanto tempo não via. Depois do abraço comovido, o primo disse-lhe: “Majestade, com a amizade fraterna que nos liga, não posso deixar de vos transmitir uma grande preocupação que me assaltou o espírito enquanto vós despacháveis com os vossos secretários. Eu sei que vós fazeis grande confiança neles, até porque já serviram fielmente o Senhor vosso Pai e antecessor. Mas devo dizer-vos que me pareceu excessiva a reverência com que vos tratam e apresentam as matérias para despacho. Pelo menos num desses assuntos, pareceu-me que alguns deles estarão directamente interessados na solução apresentada a V. Majestade e que existe no Reino quem seja muito mais capaz de promover a realização dos objectivos pretendidos e garantidamente com muito maior satisfação dos vossos súbditos. Permiti-me ainda abusar da v. bondade em me ouvir e dizer-vos que me pareceis demasiado crente nos elogios tão artificiais dos vossos secretários que cheiram a bajulice interesseira à distância, o que vos poderá vir a colocar numa situação falsa perante os vossos súbditos.”
Surpreendido, o Rei virou-se para o primo e retorquiu-lhe que já não era criança como nos tempos em que brincavam todo o dia e que tinha inteira confiança nos secretários que já haviam servido fielmente seu Pai, que conheciam bem o reino e os procedimentos da governação e que certamente só queriam o bem do seu Rei. Passou-lhe o braço pelo ombro e acrescentou que não se preocupasse, passando ambos para a sala de banquetes onde o presenteou com uma magnífica refeição ao som dos seus músicos.
Claro que o leitor já adivinhou o fim da história que aqui revisitei. Passados poucos anos sobre este episódio, o Rei passeava todo orgulhoso de si na rua com um séquito a acompanhá-lo, imaginando que as vestes que usava eram magníficas, porque assim lho garantiam os seus secretários. Até que uma criança na sua simplicidade gritou: o Rei vai nu! Só nessa altura, perante o gozo e chacota de todos o Rei caiu em si cheio de vergonha, lembrando-se então, tarde demais, do aviso que o seu primo velho companheiro de brincadeiras, afinal o único verdadeiramente fiel e verdadeiro, lhe tinha dado.
Moral da história? Nenhuma, caro leitor. Apenas a verificação de que todos os dias e em todos os sítios continuamos a assistir à representação desta velha história que de infantil não tem nada.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 12 de Dezembro de 2011

Sem comentários: