segunda-feira, 22 de maio de 2017

O valor dado ao planeamento



Em 2007 foi aprovado o PNPOT (Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território). Abrangendo todo o território nacional constituía o vértice da política do ordenamento do território, e era o último passo para que o país pudesse dispor de um conjunto de planos que permitisse finalmente ordenar devidamente o seu território na sua globalidade e de forma coerente.
Que o planeamento do território é uma necessidade, penso ser pacífico e qualquer pessoa que viaje pelo país pode ver as consequências da sua falta durante muitos anos. Na realidade, um dos principais problemas nacionais é a falta de planeamento em todos os sectores, com a consequente descontinuidade de políticas. Se em algumas áreas as consequências da falta de planeamento se sentem mas não são visíveis a olho nu por toda a gente, no que respeita ao território os erros ficam expostos e a sua correcção é, as mais das vezes, extremamente cara ou mesmo impossível de fazer num prazo razoável.
Com poucas excepções, a política de ordenamento do território só começou a ser efectiva em Portugal com o surgimento dos Planos Directores Municipais (PDM’s) em 1982, tendo-se seguidamente criado os Planos Regionais de Ordenamento do território (PROT’s) logo no ano seguinte. Com algumas contradições pelo meio, só em 1998 é que Portugal passou a contar com “um conjunto coerente e articulado dos instrumentos de gestão territorial”, através da aprovação da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo. Assim se pretendeu criar condições legais para integrar de forma harmoniosa os planos aos mais diversos níveis, desde o local até ao nacional. Percebe-se facilmente que se, por exemplo, cada município define os objectivos de ocupação do seu território de acordo com algumas regras definidas, não faz sentido que todos eles queiram ter equipamentos como universidades ou redes de infraestruturas independentes. Como as decisões sobre localização de aeroportos internacionais não podem ser tomadas a nível local ou regional.
A aprovação do PNPOT em 2007 foi o corolário de um trabalho de muita gente competente e dedicada, iniciado depois da decisão governamental de lhe dar início, tomada em 2002. Tendo a sua componente técnica, a cargo da Direcção Geral do Ordenamento e do Território e Desenvolvimento Urbano (DGOTDU), sido terminada em 2005, seguiu-se-lhe uma fase de concertação com as mais diversas entidades públicas, entre as quais seis instituições universitárias e a seguir um período de discussão pública. Diversas e profundas alterações foram introduzidas, até que o documento final fosse objecto de aprovação governamental e entrasse em vigor.

Não vou aqui entrar em comentários sobre o PNPOT, o que já fiz em tempos, salientando agora apenas que, para a nossa região, prevê o “Sistema Metropolitano do Centro Litoral, polígono policêntrico com destaque para Aveiro, Viseu, Coimbra e Leiria” que, obviamente, penaliza Coimbra que deveria ser considerada como central neste sistema metropolitano, como aliás já foi defendido pela Câmara Municipal.
O que agora, dez anos depois, parece relevante, é que a actual Secretária de Estado do Ordenamento do Território veio há poucos dias a Coimbra dizer que o PNPOT vai ser actualizado, porque “o país mudou e as necessidades são outras”. Para esclarecimento (e espanto) dos cidadãos, acrescentou ser difícil fazer um balanço por não existir “informação sistematizada”. E explicou que “a estrutura de avaliação prevista para efeitos de acompanhamento do PNPOT não foi implementada, o observatório de ordenamento do território não foi criado e ficaram por realizar a monitorização e avaliação regular do PNPOT e o seu programa e medidas”. Acrescento que no próprio documento do PNPOT estava prevista a criação destes instrumentos seis meses após a sua entrada em funcionamento.
Apetece dizer: valha-nos Deus com os governantes que temos tido! Os defeitos ancestrais continuam a todos os níveis. Gasta-se dinheiro e tempo para deitar trabalho para o lixo com o à-vontade de quem sabe que nunca lhe serão pedidas contas pela incúria, falta de responsabilidade e incompetência ao mais alto nível, com um total alheamento dos cidadãos que tudo pagam com os seus impostos e que nem se apercebem do que acontece.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Há cem anos, a revolução soviética



Foi em 1917 que Lenine levou a cabo a revolução que haveria de ser a primeira e mais consequente tentativa de construir o socialismo, levando à prática as teorias desenvolvidas por Marx e Engels no século XIX. Foi longamente pensada, uma vez que já em Outubro de 1914 Lenine escrevia ansiar pela derrota da Rússia na Grande Guerra, para mais rapidamente acabar com o czarismo, almejando mesmo transformar a guerra europeia em guerra civil no seu país. Quando as dificuldades e extremas privações sentidas pelo povo, agravadas pelas consequências da guerra, chegaram a um ponto insustentável, unidades do exército cansadas da longa guerra juntaram-se aos populares revoltosos em Petrogrado (S. Petersburgo) em 8 de Março de 1917 (23 de fevereiro pelo calendário russo de então) e o czar demitiu-se poucos dias depois. A Alemanha, que passava por grandes dificuldades na guerra, viu aqui uma oportunidade para se livrar da frente russa e ajudou Lenine a sair do seu exílio na Suíça e providenciou o seu transporte de comboio para a Rússia, tendo chegado a Petrogrado em 16 de Abril de 1917.
Após a inesperada abdicação de Nicolau II, formou-se um governo provisório dirigido por Kerensky, um político fraco e incompetente que foi incapaz de suster os ímpetos revolucionários dos bolcheviques liderados por Lenine e Trotzky. 

Em 7 de Novembro os bolcheviques derrubaram o governo provisório e tomaram o poder, apressaram-se a assinar um armistício com a Alemanha em 15 de Dezembro e puseram um fim à incipiente tentativa de democratização do país, dando de imediato início à caminhada para impor a “ditadura do proletariado”. Apesar de tudo, Lenine não ousou opor-se à realização de eleições para uma Assembleia Constituinte em 12 de Janeiro de 1918. Em 750 deputados eleitos, os bolcheviques apenas conseguiram eleger 180, pelo que a Assembleia Constituinte passou a ser um obstáculo ao exercício do poder absoluto pelos comunistas dos “Sovietes de Operários, Camponeses e Soldados” e foi rapidamente dissolvida. A partir daqui a História é conhecida, originou muitos milhões de mortos e a primeira experiência de construção do socialismo só terminou 74 anos depois.
Certamente não por acaso, a leitura do que se passou na Rússia há cem anos
parece um guião do que viria a suceder em Portugal no chamado PREC–“Processo Revolucionário Em Curso” que se seguiu ao 25 de Abril de 1974. Após o derrube do anterior regime houve uma fuga para a frente levada a cabo por comunistas e esquerdistas que desembocou no V Governo Provisório liderado por Vasco Gonçalves. Também na eleição da Assembleia Constituinte os resultados haviam sido desastrosos para as forças comunistas e igualmente houve tentativas para a manipular, quando não para acabar com ela, tendo mesmo havido um cerco do edifício pelos “operários da cintura industrial de Lisboa”. São eloquentes as imagens da saída dos constituintes após o sequestro, com a evidência da diferença do tratamento pelos manifestantes dos deputados comunistas e de todos os outros, quando finalmente sairam. Só que, apesar da propaganda maciça, na verdade as “condições objectivas” não eram as mesmas da Rússia de 1917 e a própria União Soviética decidiu cortar à última hora o apoio aos golpistas de esquerda. E o 25 de Novembro de 1975 em Portugal acabou por sair ao contrário do 7 de Novembro de 1917 na Rússia, abrindo-se o caminho para a estabilização da democracia efectiva que temos hoje, com a feliz integração dos que a combateram de uma ou outra maneira.

Passam agora cem anos sobre o ano de 1917, durante o qual tiveram lugar todos estes acontecimentos, que tanta importância tiveram em todo o mundo, com consequências que ainda perduram. Hoje em dia, de todas as experiências de construção do chamado socialismo real, sobram apenas uns exemplos tristes e irrelevantes, como a Coreia do Norte e Cuba, a que uma trágica experiência chamada “revolução bolivariana” na Venezuela faz todos os esforços para se juntar. A História destes cem anos mostra, com uma evidência indesmentível, que nem em um único sequer dos países que tiveram partidos comunistas a governar existiu algum dia democracia com escolha livre dos seus governantes pelos cidadãos. Apesar disso, persistem ainda entre nós mitos sobre a construção de um “homem novo”, numa demonstração de como o materialismo dialético, oh suprema ironia!, se transfigurou numa fé e partidos políticos em igrejas dogmáticas que nem sequer prescindem das suas manifestações colectivas.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Respeitar os equilíbrios da Democracia




Por acaso, ou talvez não, sucedeu no dia seguinte às comemorações do Dia da Liberdade, o que torna a atitude ainda mais significativa pelo contraste entre as palavras bonitas de um dia e a prática logo após. Em pleno debate na Assembleia da República, o Primeiro-Ministro recusou responder a uma simples pergunta feita pela oposição. E recusou fazê-lo por quatro vezes, não podendo assim ficar qualquer dúvida sobre o que pensa da competência de fiscalização da Assembleia da República, definida na Constituição da República Portuguesa. Para quem anda mais distraído, recordam-se os artigos 114º sobre o direito da oposição, o artigo 156 sobre os poderes dos deputados e, finalmente, o artigo 162º sobre a competência de fiscalização: “Vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração”. A Constituição da República vigora para todos os portugueses e não apenas para alguns que parece julgarem-se donos dela, mas que rapidamente a esquecem quando não lhes convém, dando razão a Lincoln que dizia que se queremos saber da qualidade de um político, basta dar-lhe um pouco de poder e ver como ele o exerce.
E qual era a pergunta a que o Primeiro-Ministro não respondeu? Apenas saber as razões da recusa do Governo em aceitar os nomes propostos para o Conselho de Finanças Públicas (CFP) pelo Banco de Portugal e pelo Tribunal de Contas.
O Primeiro-Ministro, visivelmente enfastiado com a insistência da oposição, acabou por dizer que não percebia a importância da pergunta, quando o país tem tantos problemas graves para resolver. Conclusão: não vale a pena, portanto, a oposição tentar exercer o direito de fiscalizar as decisões governamentais que não tem resposta, uma vez que o próprio decide aquilo a que responder ou não responder.

Pelo incómodo causado e pela ausência reiterada e assumida de resposta ficou-se a perceber que a questão tem muito que se lhe diga. Não se coloca em causa a legitimidade governamental para nomear ou não os elementos do Conselho de Finanças Públicas que lhe foram propostos, sendo essa discussão certamente passível de concitar doutos pareceres jurídicos para um e outro lado. O que é certo é que o Governo tem a estrita obrigação de, perante a Assembleia da República, assumir e justificar as suas decisões, o que se recusou a fazer. Vê-se porquê e o que se vê não é bonito de se ver. Nos dias de hoje, os sistemas democráticos maduros desenvolveram um conjunto de entidades independentes com capacidade técnica para fazer análises e, de forma independente, produzir relatórios que frequentemente não são do agrado dos poderes executivos, por mostrarem uma realidade diferente da “narrativa” que constroem para encher o olho aos eleitores. No seu conjunto formam um sistema, que se pretende equilibrado, daquilo a que costuma chamar “checks and balances” ou em português pesos e contrapesos, que se destinam a limitar os poderes, mas essencialmente a evitar chegar a situações-limite que já só se resolvem com soluções extremas. O Conselho de Finanças Públicas é precisamente uma dessas entidades, cuja função é “fiscalizar o cumprimento das regras orçamentais em Portugal e a sustentabilidade das finanças públicas”. Foi criado em 2011 na altura do desastre das contas públicas que levou ao pedido de ajuda externa e pretende evitar que os governos manipulem a informação sobre as contas, trazendo transparência e credibilidade ao Estado. A sua independência relativamente ao poder executivo é fundamental para que os portugueses possam ter uma informação do cumprimento dos orçamentos de estado e da política financeira mais consentânea com a realidade.
A recusa do Primeiro-Ministro em fundamentar a sua decisão de não aceitar as indicações do Tribunal de Contas e do Banco de Portugal em plena Assembleia da República mostra assim, à evidência, duas coisas, cada uma delas pior que a outra: que o Governo convive mal com instituições independentes com capacidade para escrutinar tecnicamente as suas contas e ainda que despreza publicamente os direitos constitucionais da oposição.