segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

DA AVALIAÇÃO POLÍTICA


Quando se aproxima o fim de períodos de tempo como sejam anos, décadas ou séculos, é quase obrigatório fazer-se uma avaliação do que sucedeu ou do que foi conseguido. Mas há avaliações, particularmente de governantes, que só se tornam possíveis de fazer algum tempo depois da sua saída definitiva do poder. Os critérios para fazer essa avaliação variam também muito sendo quase sempre impossível encontrar unanimidades de opinião.
Apesar das diferenças de critérios, uma pergunta será fácil de responder para avaliar uma governação: o seu país ou o mundo, ficaram melhores ou piores à saída do poder, relativamente ao seu início de funções? Ou dito de outra forma, qual foi a herança que deixaram?
Félix Houphouët-Boigny foi o primeiro presidente da Costa do Marfim, tendo governado o país entre 1960 e 1993. Foi um presidente moderado, que conseguiu notáveis sucessos económicos para o seu país. A sua acção internacional, em particular em África, foi reconhecida, levando a que, em 1989, a UNESCO tivesse criado o Prémio pela Paz Félix Houphouët-Boigny. 
Contudo, a governação de Houphouët-Boigny teve igualmente aspectos que, no mínimo, se poderão considerar controversos. Transferiu a capital do país de Abidjan para a sua terra natal, Yamoussoukro, onde construiu um aeroporto capaz de receber o Concorde e erigiu a maior catedral do mundo, que custou 300 milhões de dólares. Construiu ainda um grande palácio presidencial rodeado por um lago artificial onde mandou colocar crocodilos. Como é natural, depois da sua morte em 1993, a capital voltou a ser Abidjan, tendo a anterior sido praticamente abandonada. O país regrediu económica e socialmente de forma acentuada e é, de novo, um dos países mais pobres de África. Mas houve algo de que toda a gente se esqueceu, os crocodilos do lago do antigo palácio presidencial, cujo número aumentou de uma forma assustadora, tendo invadido os cursos de água naturais da região. E é assim que, hoje, as pessoas não se podem aproximar de rios e ribeiras sob pena de serem atacadas pelos animais. A herança da governação de Félix Houphouët-Boigny, na terra em que nasceu, acaba por ser a praga de crocodilos perigosos.
Este pequeno exemplo serve para mostrar como a governação de alguém que foi no seu tempo tido como um exemplo foi atravessada por incongruências que, anos depois, acabaram numa herança negativa. Neste caso, para além de despesas sumptuárias dispensáveis, houve algo que falhou gravemente na governação: a falta de sustentabilidade do desenvolvimento económico. A única herança que é sentida actualmente é mesmo o perigo que os crocodilos representam para a população.
E entre nós? Qual a herança deixada por cada um dos responsáveis políticos que temos escolhido em eleições? Desde os diferentes presidentes de Câmara até aos primeiros-ministros e presidentes da República, quais foram os legados que nos deixaram com as suas governações? No caso dos presidentes da República as suas eleições são pessoais, pelo que as responsabilidades das suas actuações também o são, sendo fácil apreciar os legados políticos de Eanes, Soares, Sampaio, Cavaco e, daqui a uns anos, Marcelo. Já quanto aos outros governantes, locais e nacionais, foram escolhidos através dos resultados eleitorais dos partidos que os indicaram para tal. 
Por mais personificadas que sejam as suas actuações, não é possível separá-las dos respectivos partidos, em função do estabelecido constitucionalmente. Sendo assim, quais as heranças que Mendes Abreu, Moreira, Mendes Silva, Machado, Encarnação, Barbosa de Melo deixam para Coimbra e seus munícipes? Tal como Soares, Sá Carneiro, Balsemão, Cavaco, Guterres, Barroso, Santana, Sócrates, Passos, Costa nos governos PS e PSD. Será que algum nos deixou crocodilos, ainda que de forma simbólica? Depois de amanhã entramos num novo ano. Não nos fará mal, fora de campanhas eleitorais, fazer um pequeno esforço de memória e tentarmos proceder a uma avaliação do que a acção de todos estes governantes nos legou, deixando de lado o dia-a-dia e, se possível, as palas partidárias ou ideológicas que tantas vezes nos enviesam as perspectivas da realidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Dezembro de 2019

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Prémio Gandhi de Educação para a Cidadania

E é este o tema: «princípios éticos para o bem-estar animal»

É para rir, ou é para chorar com tamanha parvoíce?

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

AMIZADE


Um dos fenómenos do nosso tempo é o surgimento de uma nova solidão que vem disfarçada de companhia permanente. As redes sociais, com as suas propostas de novas «amizades» com convites sempre em número crescente conseguem dar a impressão de imensa companhia mas, na realidade, não passam de um écran que, ao desligar, nos devolvem à realidade, tantas vezes vazia de contacto humano. As redes sociais, seguindo a senda do «facebook» criaram a figura dos «amigos» para designar as ligações pessoais através da Internet que passou a ter um significado completamente diferente daquele que tradicionalmente lhe é atribuído. Como o seu nome indica, o funcionamento destas estruturas é em rede, pelo que os «amigos» chamam outros, muitas vezes sugeridos pelos próprios algoritmos que lhes alimentam os motores. Depois, uma espécie de protocolo não escrito leva a uma série de procedimentos a seguir, no que respeita a «gosto», ou comentários e respectivas respostas, que sugere o estabelecimento de relações com aspecto de serem especiais. Quem viveu antes da existência e difusão destas redes à escala planetária, sabe muito bem o que são amigos e, eventualmente, manterá alguns das suas listas da internet, outros serão mantidos fora dessas redes. Contudo, quem tomou consciência de si já depois do surgimento das redes sociais, isto é, os mais jovens, terá alguma dificuldade em estabelecer claramente essa diferença, até porque grande parte da sua vida passa-se na net tendo, por exemplo, abandonado a televisão clássica e passado a estabelecer contactos pessoais através na internet, com prejuízo dos contactos directos.
Quando se avança na idade, percebe-se bem o valor das amizades estabelecidas ao longo da vida, sentindo-se com maior peso a perda daquelas que se vão indo, mas aprendendo também a apreciar melhor os momentos que se passam na sua companhia. Percebe-se quão preciosos foram aqueles tempos aparentemente perdidos em conversas tantas vezes leves, mas em que mutuamente se abriam as almas em momentos de cumplicidade e de partilha de sentimentos. Aí nos demos uns aos outros, sem pedir nada em troca, mas olhando-nos olhos nos olhos e, sem o saber então, construindo em nós todos os alicerces da participação futura na sociedade.
Tenho, hoje em dia, a noção clara de que as tentativas históricas de justificar o comportamento humano através de teorias absolutas estão erradas e passam ao lado da complexidade dos seres que todos nós somos. As teorias do homem naturalmente bom introduzidas por Rousseau e que levaram ao iluminismo vieram a desembocar na construção do «homem novo» do socialismo científico e nas teorias biológicas degeneradas de Lysenko. Pelo contrário, os defensores da raça pura e da perfeição humana obtida pela luta das espécies acelerada e artificial forneceram aos teóricos nazis a justificação para a barbaridade do genocídio do holocausto.
É através de uma perfeita integração nas diferentes sociedades, em respeito pelos direitos do outro que homens e mulheres se podem afirmar na sua individualidade e personalidade próprias. Para isso têm que se conhecer a si mesmos, o que só acontece com um desenvolvimento de conhecimentos e bases culturais sólidas, mas também com um contacto directo com outros, necessariamente diferentes. O papel da amizade, mesmo para além da família, surge naturalmente como tendo uma importância crucial para a obtenção de uma saudável integração social. Os amigos, não aqueles de construção rápida que surgem e vão mas aqueles com quem construímos amizade em tempos despreocupados, são muitas vezes, em determinados momentos da vida, aquele apoio sem o qual nos seria muito mais difícil sair de situações pessoais de dor e sofrimento. Tenho para mim que a actual inundação de ansiolíticos e anti-depressivos na nossa sociedade se deverá, em boa parte, a uma degradação claramente visível das redes sociais tradicionais que nos serviam de amparo nas dificuldades. A nossa organização social actual está a desumanizar a sociedade. Muitas pessoas trabalham a distâncias grandes de casa, correm durante todo o dia para obterem ordenados medíocres que não lhes trazem satisfação nem segurança económica e pessoal. A primeira vítima é o relacionamento familiar, logo depois a possibilidade da satisfação da conversa calma e despreocupada com amigos. Os raros momentos de relaxe são passados em frente do computador, promovendo assim o crescimento do isolamento pessoal, enganado agora pelas redes da Internet que se tornam numa prisão física e intelectual.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 de Dezembro de 2019

Eivør Pálsdóttir: Tròdlabùndin (Trøllabundin) – 10.08.13

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

INGLESES E EUROPEUS


Os resultados das eleições britânicas da passada quinta-feira vieram confirmar as tendências das últimas semanas, com a vitória do partido Conservador liderado por Boris Johnson e a derrota do partido Trabalhista de Jeremy Corbyn. Se alguma surpresa houve tem a ver com a dimensão da vitória dos conservadores que obtiveram o seu melhor resultado desde Margaret Tatcher garantindo uma maioria absoluta confortável de 365 lugares num total de 650, mais 39 do que os necessários para essa maioria. Notória foi também a pesada derrota dos trabalhistas que perderam 59 lugares, obtendo apenas 203, o pior resultado do partido desde a Segunda Guerra.
A generalidade dos portugueses terá ficado surpreendida pelos resultados dado que, durante a campanha a nossa comunicação social, em geral, apresentava Boris Jonhson como um palhaço e Jeremy Corbyn como uma pessoa respeitável em quem se podia confiar. Depois de conhecidos os resultados apareceram as mais desencontradas justificações para os mesmos, tentando desvalorizar o seu significado intrinsecamente político, com uma boa dose de hipocrisia. O nosso primeiro-Ministro veio mesmo explicar que os britânicos manifestaram «cansaço» com o processo do Brexit. Vale a pena relembrar que a democracia inglesa é a mais antiga e estável da Europa, que nestas eleições a taxa de participação foi de 67% (comparemos com o que se passa por cá) e que o Governo agora escolhido o foi para 4 anos, sendo o Brexit apenas uma das matérias da governação, ainda que muito importante e urgente. Estas posições têm dois problemas: em primeiro lugar tentam menorizar o eleitorado britânico que vai a eleições há muito tempo, devendo as suas escolha democráticas ser respeitadas, ainda que não concordemos com elas; acresce ainda que há uma grande probabilidade de esses comentários sofrerem um efeito de «boomerang» político sobre quem os faz imaginando que os portugueses também são tão tontos que não percebem as verdadeiras motivações que lhes estão subjacentes.
O eleitorado do Reino Unido rejeitou com muita força o caminho que lhe era proposto por Corbyn, com um programa político que fazia lembrar o esquerdismo dos anos 60/70 do século passado, ressuscitando a luta de classes e a intervenção profunda do Estado na vida económica e social. Este velho marxismo não tem nada a ver com a social-democracia do Norte da Europa, antes remetendo para a prática de países que, ao adoptarem esse caminho degradaram as suas economias e se empobreceram irremediavelmente. 
Lembrando aspectos do antigo trabalhismo, mas radicalizando-os, Corbyn tentou passar por cima da História do seu próprio país, fazendo por esquecer as razões dos sucessos eleitorais de Margaret Tatcher e da «Terceira Via» trabalhista que se lhes seguiram. Jeremy Corbyn teve sinuosas posições quanto à realização de eleições e as suas duvidosas (para dizer o mínimo) posições anti-semitas também não devem ter ajudado a afirmar uma posição de sensatez e equilíbrio. A sua vida política terá terminado neste acto eleitoral, tendo agora o Partido Trabalhista quatro anos pela frente para reformar toda a sua estratégia política para o país.
Boris Johnson é uma personalidade complexa. Conseguiu obter os favores do eleitorado e, pelo lado do Parlamento, tem uma vida facilitada pela frente. O seu maior adversário pode ser ele próprio e a sua personalidade. Possui uma formação intelectual de grande densidade, sendo o seu percurso académico prova disso mesmo. Contudo, ao mesmo tempo cai sistematicamente na tentação de mentir, manipular a realidade e fá-lo com o ar de quem tira o máximo divertimento pessoal disso.
É, agora, claro que o Brexit será uma realidade a curto prazo. Os britânicos assim o escolheram, tendo o direito de o fazer. Só podemos esperar que do lado do seu novo governo haja a consciência de que o Reino Unido já não é uma potência imperial e que deverá evitar ser uma marioneta nas mãos de Putin e Trump. Do lado da Europa, que infelizmente volta a ser continental, façamos votos de que a atitude de tentar castigar o país que sai seja substituída por uma atitude construtiva que permita encontrar os melhores laços para um relacionamento mutuamente proveitoso.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 de Dezembro de 2019

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

EUROPA, PASSADO E PRESENTE



Na próxima quinta-feira, 12 de Dezembro, os britânicos vão votar em eleições legislativas antecipadas, naquelas que serão as terceiras eleições em menos de 5 anos. Desde o referendo do Brexit de Junho de 2016 que o eleitorado britânico se tornou especializado em enganar previsões. Por outro lado, o sistema político britânico já não está dividido apenas em dois grandes partidos, havendo quatro partidos com grande expressão, a que acresce a questão de ser contra ou a favor do Brexit, que se sobrepõe às opções político-ideológicas clássicas. Contudo, ao que tudo indica neste momento, quem sairá vencedor deverá ser o partido Conservador e claro, o seu líder e actual primeiro-Ministro Boris Jonhson. O Brexit deverá ser, assim, uma realidade a curto prazo.
Não tenho grandes dúvidas de que, a ser assim, todos perderemos. Perderá o Reino Unido que rapidamente descobrirá aquilo que devia ser uma evidência anterior: os países que até agora acenaram com a vantagem de acordos bilaterais passarão a ser concorrentes ferozes na arena mundial. Pelo seu lado a União Europeia perderá uma das maiores economias e, fundamentalmente, verá abrir-se uma brecha pela qual mais países, por uma razão ou por outra, poderão ceder à tentação de ir atrás de promessas vãs de reconquista de soberania. Finalmente, e mais importante, perderão os cidadãos de ambos os lados que verão surgir diversos tipos de novas e antigas fronteiras dificilmente aceitáveis pelas novas gerações que já nasceram na União.
Por mais difícil que seja de entender o desejo de muitos britânicos de saída da União Europeia, essa posição não nos deve poder esquecer o que foi a História da Europa nos últimos cem anos, bem como do papel que nela aqueles desempenharam. Em Maio de 1940 as tropas nazis de Hitler invadiram os Países Baixos e a França, entrando em Paris em 14 de Junho. Parecia que nada podia fazer frente à barbárie alemã e, em Julho, Hitler ordenou que se preparasse a invasão da Grã-Bretanha. Para tal, era necessário anular previamente as defesas britânicas, pelo que os aviões alemães procederam a um bombardeamento massivo do sul de Inglaterra. E foi aí que os britânicos mostraram uma fibra notável, aguentando com os bombardeamentos, enquanto milhares de pilotos da RAF se encarniçavam contra os bombardeiros alemães, na que ficou conhecida por «Batalha de Inglaterra» que decorreu entre Junho e Outubro de 1940. O seu heroísmo foi tal que Churchill o descreveu como «nunca tantos deveram tanto a tão poucos» e a invasão das ilhas britânicas pelos exércitos alemães nunca aconteceu, facto essencial para a futura libertação da Europa do jugo nazi.
Relembro este momento da História recente da Europa porque, sem conhecermos o passado não percebemos o presente e não podemos preparar o futuro. Não por acaso, a paz europeia das últimas sete décadas coincide com uma união entre os países europeus, seja por motivos meramente económicos como foi a CEE, seja também com bases políticas como é hoje a União Europeia. A Grécia clássica é muitas vezes apontada como a casa da democracia mais antiga tendo os autores gregos estabelecido as bases filosóficas dessa experiência que, embora de curta duração, ainda hoje é estudada. 
Mas a Grécia antiga foi também palco de experiências que deviam ser sabidas para melhor percebermos como funcionam e podem acabar as uniões de países. As diversas ligas das cidades-estado funcionaram umas vezes em volta de uma Cidade proeminente, outras vezes como defesa contra Cidades hegemónicas. A organização interna dessas ligas adoptou diversas formas de maior ou menor integração que podia chegar a um governo quase federal. Uma dessas ligas, a de Epiro (300/170), tinha uma constituição federal, um conselho, regras tributárias conjuntas, uma divisa comum e liberdade de circulação individual.
O fim dessas ligas esteve normalmente ligado à sua divisão interna perante problemas externos. Nós, europeus de 2019, bem poderíamos estudar e conhecer o nosso passado longínquo, para não repetirmos erros passados. Mas temo que isso não aconteça, em boa parte por falta de cultura, mas também porque a política europeia é cada vez mais definida por burocratas e financeiros que de arte política pouco conhecem e de História muito menos.

Originalmente publicado no Diário de Coimbra em 9 de Dezembro de 2019