segunda-feira, 29 de abril de 2013

Mestre da vida: Mário Silva


Neste 25 de Abril um grupo de amigos teve a oportunidade de acompanhar Mestre Mário Silva no Pavilhão Centro de Portugal enquanto pintava um painel representativo de Coimbra. Oportunidade que é um privilégio: a possibilidade de ver Mário Silva fazer surgir do nada uma paisagem de Coimbra através de pinceladas fortes, bruscas, aparentemente desconexas, que por si só parecem não ter qualquer significado, é realmente uma experiência inesquecível.
Mário Silva afirma que nasceu artista e é isso mesmo que toda a sua vida demonstra. Artista maior da pintura, sim, representado em inúmeros museus e academias um pouco por todo o mundo. Mas Mário Silva é um Homem muito para além disso. Tomou a Liberdade como sua e nunca prescindiu dela, em todos aspectos da sua vida. Irreverente, por vezes mesmo iconoclasta derrubando tradições e convenções, o seu espírito nunca se vergou nem se deixou aprisionar, mesmo quando encerrado fisicamente entre paredes de forma arbitrária. Esse culto da Liberdade não o levou à atitude egoísta de ignorar ou menosprezar os seus semelhantes, como tantas vezes sucede com os grandes artistas. Basta ver o local que escolheu para viver, entre pescadores que o tratam como um dos seus, para perceber quão elevado é o seu sentido de Igualdade e como esse sentido orienta a sua relação com os demais. Mário Silva não enriqueceu com a pintura, o que até lhe teria sido fácil, dado o estatuto que alcançou a nível nacional e no estrangeiro. Não é pessoa que guarde para si, quando ao seu lado alguém tem necessidades. A sua generosidade releva de um espírito Fraterno em alto grau. Mário Silva não é dos que pregam uma coisa e praticam o contrário. A sua disponibilidade para participar nos mais diversos encontros e eventos é total, fazendo-o sempre de forma construtiva e trazendo sempre algo que melhora os outros em alguma coisa.
À medida que aplicava a tinta à sua maneira impetuosa e aparentemente anárquica, no grande painel ia-se formando uma paisagem urbana que todos sabemos ser Coimbra, embora não se pareça com nenhuma fotografia e saia das mãos de Mário Silva como a concretização daquilo que lhe habita o espírito. A representação geral é de Coimbra, não o sendo. Os pormenores da cidade estão lá, ainda que só as nossas próprias memórias pessoais, tal como provavelmente as dos pintor, os lá coloquem.
Um grande artista é assim mesmo. Em vez de reproduzir a realidade, mesmo que a seu modo, antes a destrói e desmonta, para a seguir a reconstruir integrando a sua própria visão. E assim nós, leigos, somos convidados pelo Artista a ver aquilo que nunca antes se nos tinha apresentado com clareza.
Obrigado, Mário Silva, não só pela Arte, mas pelo exemplo de vida e por nos dar a ver o que tantas vezes lá está e não somos capazes de ver.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 de Abril de 2013

segunda-feira, 22 de abril de 2013

UM PAÍS A PRETO E BRANCO



“A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de ...  abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.” – Do preâmbulo da Constituição da República Portuguesa.

As leis vêm quase sempre acompanhadas por um preâmbulo que explica o contexto do seu surgimento e objectivos a que se propõe e tem muitas vezes a função de servir de chave interpretativa do que fica escrito na Lei. O mesmo sucede com a nossa Constituição. A decisão do Tribunal Constitucional de declarar inconstitucionais quatro medidas do Orçamento Geral do Estado para este ano foi formalmente baseada na defesa do princípio da Igualdade, defendendo os direitos dos funcionários públicos perante os outros trabalhadores, mas não deixa de estar em consonância com a abertura do caminho para uma sociedade socialista, já que historicamente mais socialismo é igual a mais Estado e menos Iniciativa Privada. E parece-me que a maioria dos cidadãos se terá esquecido que a nossa Constituição, mesmo depois de todas as revisões que sofreu, ainda contém o preâmbulo que acima cito.
O processo deliberativo do Tribunal Constitucional que levou àquela decisão merece ser mais bem conhecido, até porque levou o Governo a ter que desencantar mais 1300 milhões de euros para restaurar o já por si difícil equilíbrio das contas do Estado. Ao contrário do que o seu nome poderá levar a crer, o Tribunal Constitucional é um órgão político. De facto, dez dos seus juízes são indicados pela Assembleia da República. Curiosamente, os outros três, que são cooptados, votaram todos contra a inconstitucionalidade das normas em questão, com excepção do Artº 117 referente à contribuição nos subsídios de desemprego e doença em que só um deles votou pela constitucionalidade. Dos dez juízes nomeados politicamente, os indicados pelo PS votaram em bloco pela inconstitucionalidade e os indicados pelo PSD dividiram-se. Em suma, tirando o Artº 117, o resultado foi sete contra cinco e uma “abstenção”. Tudo menos unanimidade na definição da tal inconstitucionalidade do tratamento “desigual” de funcionários públicos, havendo no entanto clareza cristalina num aspecto: todos os juízes do TC seriam prejudicados financeiramente, caso optassem pela constitucionalidade da retirada do subsídio de férias.
Se membros da maioria governamental andaram mal quando antes da decisão do Tribunal Constitucional tentaram de forma óbvia influenciar o sentido da decisão, muito mal andaram oposicionistas quando partiram logo para a consideração do Governo como ilegal exigindo o fim imediato da austeridade. Acontece que estamos a mais de metade do caminho definido no Memorando de Entendimento assinado com a Troika pelo governo anterior. É certo que a economia tarda a recuperar e o desemprego atinge níveis trágicos nunca antes vistos. Mas o aumento da produtividade nacional é um facto, bem como a descida do défice das contas públicas e, curiosamente, Portugal tem agora excedente de exportações sobre importações, o que não sucedia há décadas.
Em resultado da decisão do Tribunal Constitucional, analistas estrangeiros comentaram que Portugal tem a última constituição socialista da Europa. Mal eles sabem como têm razão, já que se conhecem as justificações da decisão, certamente não leram nunca o preâmbulo da Constituição que os esclareceria sobre o espírito que enforma a nossa lei fundamental. A tão falada reforma do Estado tem mesmo que começar por aqui, a sério, em vez de se andar a brincar às reformas de Freguesias.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Abril de 2013

segunda-feira, 15 de abril de 2013

COIMBRA NA SUA REGIÃO


A Orquestra Clássica do Centro voltou a Águeda no sábado passado. O público que encheu por completo o Cine Teatro daquela Cidade ficou entusiasmado com um concerto dedicado à interpretação de Aleluias de compositores como Mozart, Haydn, Mendelssohn e Vivaldi.
À OCC juntaram-se o excelente coro de S. João da Madeira e o virtuosismo das vozes de Margarida Reis, Brígida Silva e Cecília Fontes partilhando de forma intensa toda a alegria que transparece daquelas obras. Pessoalmente, sem querer ser injusto para com as outras obras, saliento a forma magistral como foi interpretado o Glória de António Vivaldi, um compositor tradicionalmente ligado apenas às suas “4estações”, mas que é cada vez mais reconhecido como uma das estrelas mais brilhantes do firmamento dos maiores compositores e que tem aqui um dos seus momentos altos.
Quer os responsáveis pela realização do Concerto promovido pela Misericórdia de Águeda, quer os espectadores que de Coimbra se deslocaram àquela Cidade foram unânimes nas considerações que fizeram à actuação da Orquestra: o nível atingido não fica nada a dever às melhores orquestras nacionais e estrangeiras. O actual maestro David Lloyd, além de um executante reconhecidamente brilhante do seu instrumento, a Viola, tem demonstrado uma competência excepcional na Direcção dos músicos da Orquestra, quer na preparação das peças, quer na interpretação durante os Concertos. O prazer dos
músicos profissionais da OCC em tocar sob a Direcção de David Lloyd é patente e transmite-se de imediato ao público, dando origem a uma intensa partilha de emoções como só a linguagem da música de qualidade consegue proporcionar.
Isto é Coimbra no seu melhor. Uma Orquestra sediada em Coimbra leva a toda a sua região Cultura ao seu nível mais alto, daquela forma simples que é sempre resultado de uma exigência permanente pela excelência, sem concessões ao facilitismo. Exactamente a atitude que Coimbra deveria adoptar em todas as áreas: colocar-se de forma natural e não arrogante à disposição de toda a Região, para com ela partilhar o que tem de melhor, assim subindo o nível médio, o que é do interesse de toda a Região
Claro que, para isso, Coimbra tem de reconhecer com clareza o que encerra de melhor em si mesma, também em termos culturais, o que exige uma ultrapassagem clara dos limites estreitos do nosso tradicionalismo que é necessário defender, mas não pode ocupar todo o espaço. Coimbra não pode ainda estar sujeita a caprichos pessoais, seja de quem for, contratando para aqui actuar orquestras de outras regiões, que não acrescentam um pingo de qualidade ao que cá existe e reduzindo o amor-próprio da Cidade, tal como sucedeu recentemente.
Caro leitor: espero que tenha ficado com pena de não ter ido a Águeda no sábado passado. Mas pode ultrapassar facilmente esse sentimento. A OCC vai interpretar este programa de Aleluias em Coimbra na próxima sexta-feira dia 19, no Mosteiro de Celas. Vá, verifique por si a verdade do que aqui escrevo e entusiasme-se com todas aquelas músicas lindíssimas e, em particular, com a espectacularidade singularmente bem moderna de Vivaldi.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Abril de 2013

segunda-feira, 8 de abril de 2013

“OS PORTUGUESES NÃO SABEM CONDUZIR”



Depois de um período pascal que este ano foi particularmente mortífero nas estradas portuguesas, o presidente do ACP fez o comentário que serve de título a esta crónica. A afirmação é uma evidência para toda a gente e não apenas pelos resultados letais dos inúmeros acidentes.
Basta circular pelas nossas estradas, ou mesmo pelas ruas das nossas cidades. É raro encontrar um automobilista que ligue o respectivo pisca quando muda de direcção, assim assinalando previamente a manobra aos outros utentes da estrada. Todos os dias nos acontece que um carro que circula à nossa frente pára de repente sem fazer qualquer sinal, por exemplo para largar um passageiro. Nas rotundas é um autêntico festival de asneiras: uns condutores fazem toda a rotunda pelo exterior; outros circulam pelo interior e quando pretendem sair atravessam as vias todas de seguida.
Na auto-estrada, muitos condutores seguem calma e placidamente pela via da esquerda. Assinalar previamente a mudança de via, para a direita ou para a esquerda, é uma atitude que se vê menos vezes do que um cometa. É frequente encontrar automobilistas que travam de repente na auto-estrada sem que se descortine qualquer razão para tal.
O estacionamento nas nossas cidades pratica-se sem quaisquer constrangimentos sobre os passeios, limitando ou mesmo impedindo a livre circulação de peões. A paragem de viaturas em segunda fila em ruas com traço contínuo, obrigando os outros condutores a passar por cima desse traço é uma situação que se vê todos os dias.
A circulação em claro excesso de velocidade no interior das cidades é igualmente uma constante. Todos os peões conhecem aquela situação de serem saudados pelos condutores que, de tão depressa que vão, não conseguem ou nem tentam parar antes da passadeira.
Encontramos faltas de segurança na circulação automóvel ditadas pelo absoluto desconhecimento das características técnicas dos veículos por parte da esmagadora maioria dos automobilistas, numa altura em que os carros dispõem de variados equipamentos que funcionam independentemente da vontade dos condutores. Equipamentos esses desenvolvidos para aumentar a segurança da circulação automóvel, mas que pressupõem um conhecimento mínimo da forma como funcionam, na falta do qual, os condutores poderão criar riscos muito maiores do que se não existissem. Só para dar um exemplo, a maioria dos automobilistas está convencida de que o ABS serve para parar em distância mais curta.
Aqui há uns anos, perguntaram a um embaixador britânico que estava de regresso ao seu país qual a maior diferença que tinha encontrado entre Portugal e o seu país; respondeu que no seu país os automobilistas travam quando o semáforo passa de verde para amarelo e aqui aceleram! Grande parte dos condutores portugueses comporta-se como tendo também comprado a estrada para si, quando compra o automóvel.
O cumprimento do Código da Estrada tornar-se-ia muito fácil com o simples cumprimento de regras de civilidade e boa educação. Pois! Mas de facto seria esperar muito que os portugueses fossem na estrada diferentes do que são no dia-a-dia.
Nota aos meus leitores que esperariam que hoje escrevesse sobre a actualidade política: este texto também é sobre política.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Abril de 2013

segunda-feira, 1 de abril de 2013

O NARRADOR PRESO NO LABIRINTO DA SUA NARRATIVA



O termo “narrativa” entrou subitamente como um furacão na linguagem comum. Dos dicionários aprendemos que uma narrativa é uma história contada por alguém, relatando um conjunto de acontecimentos, reais ou imaginários, com intervenção de uma ou mais personagens num espaço e num tempo determinados (Dic. Priberam de Língua Portuguesa). Em política, começou-se a chamar “narrativa” à interpretação da realidade feita pelos adversários, logo longe da realidade. Foi assim que, numa entrevista recente, um político que teve grande relevância até há pouco tempo, atribuiu essa designação de forma obsessiva a todas as intervenções que não lhe interessavam. Mesmo as perguntas feitas com intuito obviamente jornalístico, passaram a ser parte de determinada “narrativa” que pretenderia construir uma interpretação errada ou mesmo falsa do que tem acontecido no país nos últimos anos: a utilização da velha técnica de não responder a uma pergunta, antes interpretando o interesse do perguntador em formulá-la.
A tal narrativa dos jornalistas reflectiria apenas que os actuais detentores do poder político, teriam montado toda uma ficção sobre o que tem acontecido em Portugal primeiro, para tomarem o poder, e depois para procederem a uma sistemática e desejada destruição do país.
O autor desta tese, embora possa ter aprendido muita filosofia política em pouco tempo, no seu afã de proceder à sua vingança pessoal não se dá conta de várias coisas. Em primeiro lugar, ao classificar qualquer outra perspectiva da realidade como uma “narrativa”, está-se a colocar na posição de querer impor a todo o custo a sua própria “narrativa” que não passa disso mesmo: a sua narrativa. A introdução do relativismo exacerbado na análise política distorce a realidade, escondendo a verdade dos acontecimentos sob um monte de manipulações e misturas de mentiras com meias verdades. E a longo prazo isso não pode ser bom para ninguém, incluindo os próprios manipuladores.
Depois, todos conhecemos bem a tentação em reescrever a História. Isso tem sido feito ao longo dos tempos das mais diversas formas. Desde as crónicas antigas, até às memórias escritas pelos modernos líderes políticos no fim das suas vidas públicas, puxando pelos aspectos positivos e eliminando ou amenizando outros. Temos ainda os processos mais radicais, como fazia Estaline ao limpar das fotografias oficiais os camaradas caídos em desgraça.
Mas há algo mais perigoso para o próprio protagonista quando ele pretende ainda, e de forma evidente continuar a ser interveniente activo, cavalgando tudo e todos de forma brutal, incluindo aqueles que lhe sucederam politicamente. Vivemos numa sociedade aberta, e se alguns ainda têm medos ancestrais do poder ou de quem o possa vir a ter, a verdade tem hoje processos de vir ao de cima, sem contemplações. E quem pretende reescrever a História impondo as suas narrativas a toda a força, arrisca-se a ter um choque frontal e violento contra a realidade dos factos indesmentíveis e patentes à frente de toda a gente. A meu ver, é isso mesmo a que estamos todos a assistir neste momento. O que se vai suceder não será certamente muito bonito de se ver mas será a prova de que não é possível enganar toda a gente durante o tempo inteiro.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Abril de 2013