segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Música – Coimbra no seu melhor



Francisco Martins foi um médico e músico de Coimbra que nos deixou, para além da grande saudade da sua pessoa, uma obra musical que a todos encanta de que refiro, por mais conhecidas, as Primaveras 1 e 2.
Visando perpetuar a memória de Francisco Martins, mas também “promover valores musicais na área da composição, com a preocupação de incentivar a produção e dar a conhecer novas obras que enriqueçam o património bibliográfico musical”, a Orquestra Clássica do Centro criou o Prémio de Composição Francisco Martins, cuja segunda edição decorreu este ano depois de, no ano de 2016, ter sido agraciado, a título honorífico, o compositor natural de Coimbra Sérgio Azevedo. O concurso acolheu nove candidaturas, o que só por si diz bem do interesse que provocou no meio musical e, em particular, entre os compositores portugueses mas reflecte também o momento de grande dinamismo por que passa a música erudita em Portugal. Quando muitos de nós imaginamos que a composição deste tipo de música é coisa do passado, a realidade é que, antes pelo contrário, suscita o interesse de muitas pessoas, boa parte delas jovens, que se lhe dedicam com o maior cuidado e capacidade criativa, mesmo em Portugal.
O júri do Concurso era constituído por músicos de reconhecida competência, desde logo pelo Maestro titular da Orquestra José Eduardo Gomes e também pelos compositores Sérgio Azevedo e Luís Tinoco com créditos mais que firmados no panorama nacional da composição na área da música erudita. O júri seleccionou as obras originais de dois concorrentes, “GRAINS” de Jorge Filipe Pinto Ramos e “MOSAICO” de Luís Filipe Leal de Carvalho.
No passado dia 17 de Novembro, foi possível ouvir as duas obras num concerto pela Orquestra Clássica do Centro que teve lugar no auditório do Conservatório de Música de Coimbra tendo os músicos da orquestra e o público presente tido oportunidade de votar na obra que colheu a preferência, logo após a interpretação das mesmas. Ambas as obras, cada uma com a sua própria personalidade, são bem a prova da inspiração, mas também da capacidade técnica e profissionalismo dos compositores que negam, na prática, que a música erudita esteja já toda criada, havendo apenas espaço para a interpretação de obras de compositores do passado, mais ou menos consagrados. A música contemporânea pode exigir mais dos ouvintes, dos intérpretes e, acima de tudo, dos compositores, mas as peças finais deste concurso mostram bem o grande nível a que este tipo de composição chegou entre nós. Recordo aqui o saudoso Jorge Peixinho que, decerto, bem apreciaria o trabalho dos novos compositores portugueses.
Enquanto decorria a votação dos músicos, o público teve a oportunidade de ouvir a Dra. Isabel Santos Lopes, que sublinhou que "a música e a poesia são duas artes que podem estar em perfeita harmonia", evocar aspectos da vida do poeta conimbricense Camilo Pessanha e ler três dos seus poemas mais marcantes, dado que se assinalam este ano os 150 anos do seu nascimento.
Quer os músicos, quer o público escolheram a obra “MOSAICO” apresentada a concurso pelo compositor Luis Carvalho, que foi depois novamente interpretada, colhendo uma ovação entusiástica por parte do público presente. Esta obra, sendo grande contemporaneidade, contém uma harmonia intrínseca que a torna de fácil adesão por parte de quem ouve.
A prestação da Orquestra Clássica do Centro regida pelo Maestro José Eduardo Gomes demonstrou novamente o alto nível que atingiu, colocando a Cultura de Coimbra no que à música erudita diz respeito, ao nível do melhor que se faz em Portugal, apreciação essa que foi publicamente feita por Sérgio Azevedo e Luis Tinoco.
A capacidade de realização de um concurso desta natureza, que se reveste sempre de alguma complexidade, o sucesso no elevado número de obras originais entregues a concurso e o comprovado valor artístico das obras apresentadas neste concerto constituem um sucesso da OCC e uma mostra do que é, indiscutivelmente, COIMBRA NO SEU MELHOR.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Susana e os Velhos



Susana decidiu ir até ao jardim e tomar banho na piscina. A tarde estava quente e quase toda a gente tinha aproveitado para fazer uma sesta. Mandou as criadas para casa e pediu-lhes que fechassem a porta do jardim para poder estar à vontade enquanto se banhava. Mal imaginava que, escondidos num canto do jardim, dois velhos libidinosos a espreitavam. Eram dois homens importantes, visita habitual de sua casa convidados por Joaquim o seu marido, que tinham combinado entre si encontrar maneira de a possuir. Quando Susana acaba o seu banho e se prepara para regressar a casa, os dois homens saem-lhe ao caminho e ameaçam dizer ao seu marido que a tinham visto cometendo adultério com um jovem, razão por que tinha mandado as criadas embora, se não satisfizesse de imediato os seus desejos. Embora já fossem de alguma idade, eram homens robustos e bem capazes de violentar a mulher. Susana fica na situação de ter de escolher entre ceder ao desejo dos anciãos ou ver-se humilhada perante toda a comunidade. Resolve gritar, assim chamando a atenção dos restantes moradores da casa, família e criados. Perante os testemunhos dos velhos, Susana não consegue defender-se e é quase condenada quando um jovem chamado Daniel interrompe o julgamento propondo que os dois velhos prestem os seus testemunhos em separado. Interrogados sobre as concretas condições do sucedido, logo entram em contradição, acabando eles condenados e sendo Susana absolvida de todas as acusações.
Esta história não se passa nos nossos dias, mas sim no tempo em que os Judeus estavam em cativeiro na Babilónia, portanto no século VI AC e surge no Livro do Profeta Daniel. Foi motivo para pinturas famosas de artistas tão célebres como Rembrandt, Tintoretto, van Dyck ou Rubens, além de muitos outros, incluindo Artemisia Gentilechi. O quadro relativo ao tema desta grande pintora injustamente esquecida num mundo artístico povoado quase só por homens é, aliás, particularmente expressivo, mostrando claramente a violência do assédio poderoso dos dois homens e a expressão realista de repúdio da mulher que reflecte, talvez, a violação de que a própria pintora foi vítima, enquanto jovem. É possível apreciar várias das pinturas sobre este tema no Museu do Prado, em Madrid, sendo as de Tintoretto e de Rubens muito conhecidas e impressionantes pelo detalhe minucioso dos ambientes representados.

Embora a época a que se refere tenha mais de vinte cinco séculos, há muitos aspectos da fábula de Susana e os Velhos que se mantêm actuais, como todos os dias podemos verificar nos jornais. O voyerismo, a violência, a mentira e mesmo a chantagem aparecem ligados ao sexo hoje, tal como os velhos as usaram há tantos anos para tentar alcançar o seu objecto de desejo. Os casos de abuso sexual, normalmente de jovens mulheres de alguma forma dependentes, espantam o mundo pelo seu número, mas também pela notoriedade dos abusadores. No mundo do cinema, mas também na política aos mais diversos níveis e, ao que se vai conhecendo em diversos países, a herança da libertação sexual das décadas de 60 e 70 do século passado parece ter produzido em muita gente uma grande confusão entre sedução e assédio. E, um ambiente em que o relacionamento entre as pessoas, incluindo a nível sexual, passou a ser caracterizado por uma maior liberdade, acabou por proporcionar um terreno propício para a actuação de gente com notórias taras que se sente à vontade para arrastar na sua vida depravada pessoas com grande dificuldade em se defender, o que já está mesmo a colocar em causa as liberdades individuais que tão difíceis foram de conseguir. Por isso, trazer para os nossos dias as atitudes de Susana e de Daniel perante os dois velhos parece fazer todo o sentido porque hoje como ontem é preciso fazer frente à mentira, à chantagem e à violência por mais poderosa que seja a sua fonte.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Cultura elitista



Apesar de toda a evolução social das últimas dezenas de anos, volta não volta ainda é possível ouvir alguém queixar-se de haver demasiada cultura elitista. A questão do elitismo na cultura é muito antiga. Por definição, a criação artística acompanha sempre a vanguarda das sociedades, pelo que não é susceptível de ser imediatamente percebida e muito menos geradora de sentimentos de afecto por toda a gente.
Mas as acusações de elitismo na cultura não vêm desse aspecto vanguardista das diversas formas de arte e sim de uma posição, a que chamarei populista, de achar que se deve dar ao “povo” aquilo de que supostamente gosta e não aquilo de que as ditas “elites cultas” gostam. Para ser breve e directo, ao povo deve ser dado Quim Barreiros e não Freitas Branco, citando apenas portugueses.
Durante séculos, para se ouvir música, era necessária a deslocação a salas de concertos, o que só estava ao alcance de poucos. Hoje em dia, a música, todos os estilos de música, quer ela seja boa ou seja má que deve ser esse o único critério de distinção, está em toda a parte e acompanha-nos quase em permanência. Se a contemplação directa de pinturas ou esculturas só é possível indo aos museus há, no entanto, processos de admirar todas essas obras de arte através de livros, filmes e outros meios ao alcance de todos, permitindo um conhecimento e formação de gosto e sensibilidade. A literatura está ao alcance de todos desde há séculos, a partir do momento em que a tipografia permitiu a reprodução fácil e barata de livros e, essencialmente, desde que a Liberdade permitiu o acesso de todos a qualquer obra escrita, seja ela qual for.
Infelizmente, ainda é muito vulgar confundir cultura com acumulação de conhecimentos, daí uma veneração pelo academismo, que é particularmente evidente na nossa cidade. Na realidade, a Cultura não tem nada a ver com isso e sim com o desenvolvimento de sensibilidade, de capacidade de perceber e tentar alcançar o belo, nas suas mais diversas manifestações. O belo anda muitas vezes escondido atrás de realidades diversas e criações difíceis de compreender. 

Como escreveu Fernando Pessoa, através da personalidade de Álvaro de Campos, “O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo; O que há é pouca gente para dar por isso”. Por isso se costuma dizer que só se ama aquilo que se conhece. Quem vive na ignorância, nunca poderá afirmar que gosta de Shakespeare, Dante ou Camões; nem de Bach, Puccini ou Stravinsky; ou de Miguel Ângelo, Caravaggio, ou Picasso. Uma verdadeira Educação é muito mais do que a transmissão de conhecimentos ou, como se dizia antigamente instrução que, literalmente, quer dizer encher de palha.
Um povo mantido na ignorância não desenvolve critérios de exigência e é muito mais fácil de enganar pelos governantes ou supostos líderes. Quando os que deviam agir na sociedade em prol da Cultura e, pelo contrário, protestam contra a existência daquilo a chamam cultura elitista, deliberadamente escondem que os bilhetes para espectáculos de música erudita, por exemplo, são sistematicamente muito mais baratos do que os bilhetes de futebol, para não falar dos concertos ou festivais de música moderna sempre cheios apesar do custo elevadíssimo dos ingressos.
Os meios que hoje possibilitam o acesso generalizado à informação e aos produtos culturais são os mesmos que patrocinam uma sociedade de espectáculo que, progressivamente, vai abafando a Cultura. Aquilo a que ainda chamamos informação é-o cada vez menos, substituída por publicidade encapotada, levando a que os cidadãos sejam cada vez mais clientes de algo de que nem sequer tomam consciência.
Ninguém está contra as mais diversas formas de expressão artística. Concretamente, o património cultural de um povo, por mais simples que seja a sua manifestação, deve ser respeitado e protegido, olhado não só como base do que veio a seguir, mas também como testemunho da época em que floresceu. Mas a Humanidade nunca teve mais motivos para ser respeitada e amada do que quando os grandes artistas produziram as suas obras maiores. Tentar retirar a partes da população a possibilidade de usufruir desses grandes momentos é, não só manifestação de populismo, mas demonstra também desrespeito para com o semelhante.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Rússia: um interregno de 70 anos




Começou em Novembro de 1917, faz agora cem anos, quando reinava o fraco e incapaz Nicolau II que viria a ser o derradeiro czar da Rússia. Terminou em Dezembro de 1991 quando Mikhail Gorbachev, último líder da União Soviética, transferiu o poder para o primeiro presidente russo, Boris Yeltsin.

Entre 1917 e 1991, a União Soviética foi a primeira e mais importante experiência de realização do socialismo. Quando a Alemanha ajudou Lenine a sair do seu exílio na Suíça e a dirigir-se até Petrogrado tentando retirar a Rússia da guerra, colaborou de forma decisiva com a eclosão da Revolução Russa que viria a influenciar o século XX quase até ao seu fim.

Após a sua chegada a Petrogrado em Abril de 1917, Lenine junta-se aos bolcheviques e sistematicamente promove a destruição de qualquer hipótese de estabelecimento de uma democracia parlamentar, minando os sucessivos governos provisórios de Kerensky. Em 7 de Novembro de 1917 eclode a chamada “revolução de Outubro” assim chamada dado que na altura ainda vigorava na Rússia o calendário Juliano. No dia seguinte foi formado um governo presidido por Lenine saído do Congresso dos Sovietes e em Janeiro de 1918 é dissolvida a Assembleia Constituinte, tendo os comunistas tomado todo o poder.

Desde 1917 até 1991, após Lenine que morreu em 1924, a União Soviética foi dirigida sucessivamente, excluindo algumas lideranças curtas e provisórias, por Joseph Stalin, Nikita Khrushchev, Leonid Brezhnev, Yuri Andropov, Konstantin Chernenko e, finalmente, por Mikhail Gorbachev. De todas as lideranças, a de Stalin ficou na História pela sua duração desde 1922 até à sua morte em Março de 1953, mas sobretudo pela forma como marcou a experiência do socialismo real. Foi sob a sua liderança que a URSS defrontou a invasão nazi da II Grande Guerra, numa luta terrível que se saldou na derrota da Alemanha, mas com mais de vinte milhões de mortos do lado soviético. Com Stalin a repressão comunista atingiu patamares inimagináveis já que, se com Lenine se matavam não comunistas para implantar o novo regime pelo terror, na era estalinista nem os próprios comunistas estavam a salvo.

Nos anos setenta, mas sobretudo nos oitenta, ficou patente a incapacidade da URSS em acompanhar o desenvolvimento económico e tecnológico do Ocidente. A pobreza generalizada não podia mais ser escondida e até a famosa e real democratização da cultura, bandeira dos países comunistas, entrava em colapso, com muitos artistas a fugir para o Ocidente, fugindo às directivas partidárias sobre a sua criatividade.

Quando Mikhail Gorbachev chegou ao poder em Março de 1985 tentou levar a cabo as reformas que, no seu entender, seriam necessárias para revitalizar o regime, dando início às famosas Glasnost e Perestroika. Gorbachev, apesar de ter feito carreira dentro do partido Comunista, não colocou o dogmatismo marxista e a ideologia soviética à frente da sua formação moral e isso viria a tornar-se fatal para ele como líder e para o próprio regime. Gorbachov era o paradigma do chamado “homem soviético” sem gostos burgueses e acreditando completamente nas virtudes do socialismo idealista o que, na realidade, não tinha nada a ver com o regime. A abertura política e a liberdade de expressão trazidas pela Glasnost libertaram as forças que, depois de reprimidas durante tantos anos se julgaria já não existirem, e a situação política tornou-se incontrolável, ditando o fim da URSS em Dezembro de 1991.

Com a implosão da URSS veio também o fim da Guerra Fria, o desmontar do mito do socialismo real e uma nova ordem mundial, ainda em definição. A Rússia é hoje, para o bem e para o mal, governada por um Presidente de uma forma que em nada fica a dever ao poder dos antigos Czares. A ironia de o fim da URSS ter sido ditado por aquele que foi provavelmente o seu único líder que acreditava verdadeiramente no sistema e que apenas o queria aperfeiçoar deveria fazer-nos pensar. É que, num mundo capitalista, assistimos hoje a um presidente americano que é, não um político, mas um capitalista inculto e narcisista. E que, com a sua atitude disruptiva, bem pode vir a ser o Gorbachev dos Estados Unidos da América que toda a vida conhecemos, apesar do complexo sistema de “check and balances” daquele país.