segunda-feira, 27 de maio de 2019

ESTA CRÓNICA NÃO É SOBRE “JOE” BERARDO


Metade do país ficou muito escandalizada com a prestação do Sr. José Manuel Berardo numa comissão na Assembleia da República. A outra metade diz-se chocada e pede mesmo que lhe sejam retiradas as condecorações que em tempos os presidentes da República Ramalho Eanes e Jorge Sampaio lhe atribuíram.
Na realidade, o Sr. José Manuel Berardo é aqui apenas a ponta visível de um iceberg, que se tornou demasiado visível na comissão parlamentar de inquérito à gestão da Caixa Geral de Depósitos. Seja pela personalidade própria do senhor, seja porque está à vontade para se portar como bem quiser, seja onde for, mesmo na casa da Democracia por entender que tem os políticos na mão, percebe-se que o chocante para grande parte da classe política foi a forma da participação, quando o que verdadeiramente importa é o seu conteúdo.
E o conteúdo, verdadeiramente, não é novidade para ninguém. Trata-se de mostrar o ambiente político-económico que dominou Portugal sensivelmente entre os anos 2005 e 2011 com dois pólos situados, respectivamente, na presidência do Conselho de Ministros e na sede do BES. Estes dois pólos estavam, aliás, tão ligados entre si que até um ministro, no caso o da Economia (et pour cause,,,) ganharia em simultâneo pelos dois lados, pelo menos até desrespeitar a Assembleia da República (em plenário) ao fazer corninhos a um Deputado e assim perdoando, no desrespeito, todos os Berardos que se lhe seguissem.
Os casos e as personagens ligadas a tudo o que se passou nesse tempo são tantos, que a dificuldade é a da escolha, dentro das linhas disponíveis.
A OPA sobre a PT lançada pela SONAE em 2006 foi a primeira grande batalha que à primeira vista seria financeira numa pura base de capitalismo mas que, na realidade, constituiu uma defesa de um certo “capitalismo de estado” perante o perigo de fuga de poder. Aqui se juntaram Salgado, Bava e Granadeiro à Caixa e a Sócrates numa dita “luta contra a destruição da PT”, numa conjugação de interesses que, em grande parte, constituem hoje o cerne da “Operação Marquês”. Berardo saiu da AG que ditou o fim da OPA a ser aplaudido pelos trabalhadores da empresa como herói. Tudo o que se seguiu foi mau demais para ser verdade, com a venda da VIVO à cabeça.

É hoje pacífico ter havido uma verdadeira tomada de poder dentro do maior banco privado português, o BCP. Essa operação foi meticulosamente preparada, havendo fundadas suspeitas de participação do próprio Banco de Portugal no complot. Vários investidores foram “convidados” pela CGD a tomarem posições accionistas relevantes naquele banco, com financiamento para a operação dado pela Caixa a 100%, tendo como garantia apenas as próprias acções compradas. No caso do Sr. José Manuel Berardo, o dinheiro emprestado pela Caixa foram cerca de 400 milhões de Euros, a que se juntaram mais quase 600 milhões do BES e do próprio BCP. Depois disto, aquelas acções do BCP passaram a valer pouco mais de 100 milhões, assim se percebendo o actual sentimento do Sr. Berardo sobre a operação. Entretanto, os administradores da CGD Santos Ferreira e Armando Vara que lhe tinha emprestado o dinheiro tinham-se passado para a administração do BCP, vá lá saber-se por que artes do demónio
O que verdadeiramente importa é que tudo isto se saldou numa perda de valor para a economia portuguesa como não há memória desde as nacionalizações do 11 de Março de 75 e que os portugueses pagam com os seus impostos. A empresa portuguesa mais valiosa, que era a PT, desapareceu, a Cimpor está nas mãos de um fundo das forças armadas turcas depois de ter andado pela célebre Camargo brasileira, o BCP passou por uma crise que quase o fez desaparecer, o grupo GES/BES desapareceu, a ONGOING implodiu, etc. etc. etc.
O Sr. José Manuel Berardo foi apenas um peão no meio de todo um conjunto de golpes palacianos que, ao tirar a sua fatia do bolo, em vez de ficar com a prenda das mais-valias do dinheiro que lhe meteram nas mãos, ficou apenas com a fava das dívidas do quase completo desaparecimento do valor das acções que o financiaram para comprar. É por isso que esta crónica não é sobre ele, que foi apenas o espertalhão a quem desta vez correu tudo mal e que anda apenas a tentar safar o que é seu, da maneira que sabe.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Maio 2019

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Eu, Pedro, Duque de Coimbra (texto completo)


Estamos a 20 de Maio de 1449. Chegámos à ribeira de Alfarrobeira, às portas de Lisboa, e vejo a força do exército do Rei D. Afonso V, meu sobrinho e genro, que nos aguarda armado para a batalha. Tenho agora a certeza de que este será o último dia da minha vida. O pequeno exército que reuni para me acompanhar nesta viagem a Lisboa para tentar chegar à fala com o Rei não vai ter a mínima hipótese contra tamanha força e é evidente que o Rei se decidiu pelo partido do meu meio-irmão Afonso, Duque de Bragança, de quem vejo o estandarte bem enquadrado. Desta vez, nem a minha querida filha Rainha Isabel conseguiu suster os ímpetos guerreiros do seu marido. Ao não autorizar o Duque de Bragança a passar com o seu exército de 3.000 homens pelos domínios do meu ducado de Coimbra quando se dirigia para Lisboa há poucas semanas marquei a minha posição como senhor das minhas terras mas percebo que cavei definitivamente um fosso intransponível para a possibilidade de acordo com o Duque Afonso.
Dizem que antes de morrer nos lembramos de tudo o que nos sucedeu ao longo da vida. Será por isso que, ao ver as preparações do ataque do exército do Rei, com tristeza me vêm agora à mente tantas recordações.
Lembro como foram alegres e tranquilos os tempos de brincadeiras com os meus irmãos, principalmente o Duarte com apenas mais um ano que eu mesmo e o pequenino João com as suas travessuras. Do Pai, o Rei João, recordo o carinho com que desde pequenos nos tratou e a preocupação que teve em que eu e os meus irmãos tivéssemos uma educação cuidada e uma formação cultural que nos distinguisse dos demais. Quando éramos adolescentes enviou-nos mesmo, a mim, ao Duarte e ao Henrique para Inglaterra, onde aprendemos muitas coisas e a falar francês, a língua da corte inglesa.
Recordo a doçura de minha Mãe, a Rainha Filipa, para com todos os seus filhos. E de como compreendia o seu papel nestes nossos tempos e como conhecia bem o íntimo de todos nós, rapazes e raparigas. Mesmo estando já tão doente com essa maldita peste que tanto nos aflige, mandou fazer três espadas que entregou aos filhos mais velhos antes da viagem para Ceuta, cada uma delas com diferentes funções dentro das regras da cavalaria. Ao Duarte que seria Rei por ser o mais velho, entregou a espada da Justiça, ao Henrique encomendou todos os senhores, cavaleiros e escudeiros do reino e a mim próprio me encomendou as donas e donzelas por cuidado.
Com as espadas de minha Mãe ali mesmo em Ceuta fomos os três armados cavaleiros depois da conquista da cidade africana, em 21 de Agosto de 1415. Infelizmente, a Rainha Filipa tinha morrido no dia anterior à nossa partida para África.
Quando regressámos de Ceuta, o Rei João fez de mim Duque de Coimbra e de meu irmão Henrique Duque de Viseu numa festa que deu brado. Éramos os dois únicos duques do Reino já que Duarte era destinado a ser Rei. Os meus domínios eram extensos, abrangendo terras de Coimbra, Águeda e Montemor-o-Velho, tendo sido em Coimbra que estabeleci a minha residência, enorme honra visto ter sido a primeira capital do Reino, onde tinham nascido tantos reis e onde se encontra sepultado o meu longínquo Avô Afonso Henriques, o primeiro de todos. Nem esqueço que foi nas Cortes realizadas em Coimbra que meu Pai foi aclamado Rei de Portugal, em 6 de Abril de 1385 com o apoio de João das Regras e de Nuno Álvares Pereira. Ser Duque de Coimbra encheu-me realmente de orgulho e toda a minha vida fiz o que pude pela Cidade e seus habitantes.
Tudo o que em jovem me tinham ensinado e o cuidado com o governo dos meus domínios do ducado de Coimbra levaram-me a escrever a Virtuosa Benfeitoria, tarefa em que Frei João da Verba me deu prestimosa ajuda. Espero bem que, depois de me ir, possa ainda servir de guia a reis e senhores nas suas governanças, percebendo como as nossas sociedades se encontram estruturadas pelas benfeitorias que cada um recebe do elo superior da cadeia, desde Deus até ao mais humilde servo.
E as minhas memórias continuam a projectar-se com clareza e rapidez na minha mente. Vem-me à lembrança que me pus a viajar pela Europa, e como durante três anos, entre 1425 e 1428, conheci terras e gentes tão diferentes. Houve até quem dissesse que percorri As Sete Partidas. E devo dizer que o caso não era para menos. De Coimbra fui até Paris, seguindo depois para Inglaterra onde, no meio de grandes festas e magníficas recepções, o meu tio Henrique IV me investiu cavaleiro da Ordem da Jarreteira. Passei à Flandres e, tomando consciência dos diversos atrasos do meu país, de Bruges escrevi uma carta a meu irmão Duarte dando-lhe conselhos para quando fosse Rei. Entre outras ideias para a boa governação, recordei-lhe a má instrução generalizada do clero português e propus-lhe a criação de Colégios na Universidade de Lisboa, à semelhança de Oxford e de Paris. Passei pela Alemanha e fui a Viena, onde com os meus homens ajudei o Imperador Segismundo nas suas guerras contra os turcos com tanto sucesso que me investiu no domínio da Marca Trevisiana com o título de Marquês de Treviso. Depois da paz, segui para Veneza e aí tive a oportunidade de ficar alojado no mais belo palácio que em toda a minha vida me foi dado visitar e onde me ofereceram festas com centenas de pessoas, incluindo belas mulheres com tais trajes e jóias resplandecentes como não imaginava existirem. Claro que da Serenissima passei a Roma, onde o Papa Martinho V me ofereceu uma sagrada relíquia do mártir S. Sebastião que trouxe para Portugal e levei para a Igreja de Santa Maria do Mourão em Tentúgal, nos meus domínios de Montemor-o-Velho. A minha paragem seguinte, antes do regresso a Portugal, foi na cidade ducal de Barcelona. Aí tratei do meu casamento com Isabel, condessa de Urgel, filha do conde Jaime II de Urgel e da infanta Isabel de Aragão, por quem me apaixonei. Infelizmente, o meu irmão Duarte acertou também pela mesma altura o seu casamento com Leonor, filha do Rei de Aragão Fernando I, conhecido por de Antequera, e que era também bisneta do rei Pedro I de Portugal e de Inês de Castro por ser neta da filha deles, Beatriz de Portugal. Como o pai da minha adorada Isabel não tinha aceite a escolha de Fernando de Antequera como Rei de Aragão e por isso foi preso durante muitos anos, as relações entre Isabel e Leonor mulher de meu irmão Duarte nunca foram as melhores.
Lembro a subida do Duarte ao trono em 1433 e de como tantas esperanças pusemos no seu reinado, porque nunca Portugal havia tido um rei tão culto e preocupado com o bem-estar dos seus súbditos. Infelizmente, a peste levou-o apenas cinco anos depois. No seu reinado tivemos a maior tragédia das nossas vidas. O nosso Rei deixou-se levar pela sede de glória juvenil do nosso irmão mais novo Fernando que, apoiado pelo Henrique, o convenceram a preparar um ataque a Tânger para conquistar essa cidade, à semelhança do que tínhamos feito em Ceuta. Eu e o nosso irmão João tudo fizemos para os demover dessa louca ideia, mas nada conseguimos. Eram muitos os que, com espírito guerreiro antigo, queriam a conquista do Norte de África mouro, em vez do que eu e o João defendíamos, que era tentar navegar para Sul, pela costa africana desconhecida. E a derrota em Tânger, em Setembro de 1437, ditou a triste sorte do Fernando que ficou refém dos mouros que exigiram a devolução de Ceuta em troca da sua libertação. Como sofri nesses anos em que defendi, sem sucesso, a devolução de Ceuta que só nos trazia prejuízos de toda a ordem, até à morte do Fernando em 1437.
A morte do Rei D. Duarte em 1438 foi apenas o início das minhas maiores atribulações. O seu filho Afonso, o primeiro Príncipe de Portugal e não apenas filho primogénito herdeiro, era demasiado novo para governar. O falecido Rei tinha dado instruções para que a viúva Rainha D. Leonor fosse regente até à maioridade do Príncipe, mas os meus irmãos Henrique e João, bem como muitos concelhos como o de Lisboa, concordaram comigo em não a encontrar capaz de exercer o cargo. E calhou-me em sorte, por ser o mais velho Tio do Príncipe Afonso, ser escolhido como Regente nas Cortes de Lisboa de Dezembro de 1439.

Leonor tinha apoiantes poderosos, dos quais o que mais se bateu contra a minha escolha como Regente foi o Conde de Barcelos Afonso, meu meio-irmão, que tinha dez anos quando o nosso Pai D. João se casou em 1387 com minha Mãe, Filipa de Lencastre. O Rei D. João sempre tratou Afonso como filho e armou-o cavaleiro em 1398 com 21 anos, depois da conquista de Tui, ainda durante as guerras com Castela. O conde de Barcelos casou em 1401 com Beatriz, filha do Condestável e grande amigo e apoiante de nosso Pai, D. Nuno Álvares Pereira. Recordo os esforços que desenvolvi, durante a minha regência, para anular as divergências com Afonso, e fi-lo mesmo Duque de Bragança em 1442, tornando-o no nobre mais importante e mais rico de todo o Reino.
Muitas coisas fiz e muitas mais tentei fazer durante a minha regência. Consegui mandar terminar a compilação das Ordenações Afonsinas que vinham já do reinado de D. Duarte e que ficaram prontas em 1446. Grande satisfação me deu tal facto, porque o reino muito precisava de leis como aquelas que os romanos tinham e que tão esquecidas andavam.
Não me esqueci do meu ducado e estudei a criação de uma nova Universidade em Coimbra. Em 1443 publiquei mesmo um diploma pelo qual, em nome do Príncipe Afonso, decretei o Estudo de Coimbra custeado pelas minhas rendas e sob a minha protecção. Cheguei até a fazer escritura de doação de rendas para o efeito, em 1446.
Tive sempre em mente as desgraças que as guerras com os mouros do Norte de África nos trouxeram depois da conquista de Ceuta. Sempre me pareceu mais avisado seguir pela costa africana, como meu irmão Henrique propunha. Por isso tratei de levar gente a viver nos Açores e na Madeira tratando de lhes conceder regalias. Henrique bem me dizia que o arquipélago dos Açores eram muito importantes porque as naus, no seu regresso da costa africana, tinham que passar por lá para apanharem bons ventos. E essas viagens iam cada vez mais longe, tendo mesmo atingido o que chamaram de terras da Guiné. Cheguei mesmo a conceder a Henrique, em 1443, a posse das terras para lá do cabo Bojador que tão grandes pavores infligia aos navegadores até Gil Eanes o dobrar, mas acautelei que, depois da sua morte, viessem à posse da casa real.
Assim que o Príncipe Afonso atingiu a sua maioridade, de imediato dei por fim a regência em seu nome e lhe entreguei o trono. Foi no ano passado e já parece que foi há uma eternidade. O Duque de Bragança aproveitou bem estes meses para mais uma vez intrigar junto do Rei e convencê-lo de que me tornei um traidor, mesmo depois de tudo quanto fiz para lhe entregar o reino em paz e prosperidade.
Por fim, recordo os meus mais queridos. A minha adorada Duquesa de Coimbra, que comigo veio desde Balaguer ,na Catalunha, para me encher de felicidade. Os meus seis filhos que tanto acarinhei e que sempre se mostraram rapazes e raparigas atentos do seu tempo, conscienciosos do seu lugar, e capazes de escolherem os seus caminhos. Desde o mais velho Pedro de Coimbra já com 20 anos e seguro das suas capacidades militares e de organização, passando pela Rainha Isabel de Portugal, até à pequena Filipa, ainda com doze anos e já gostando tanto de tratar de crianças pequenas. Tenho a certeza de que irão sofrer depois do dia de hoje e é isso o que mais me dói perante a morte certa. Que D. Afonso V se apiede deles e não os transforme em mártires em virtude do pai.
Já ouço os clarins de Afonso V a dar ordem de combate.
Meu querido Álvaro Vaz de Almeida Conde de Abranches, meu valido e amigo de sempre. O juramento que fizemos na Igreja de S. Tiago, na nossa Coimbra, vai agora ser cumprido. Vamos para o combate final, morreremos certamente ambos, mas morremos com dignidade, lutando pela Lealdade e pela Verdade.

Nota: texto completo do ensaio sobre o Primeiro Duque de Coimbra, Dom Pedro . Este ensaio foi submetido à edição 2018 do Prémio Municipal Eng. Adriano Lucas, tendo sido desclassificado, não sendo por isso analisado pelo júri, dado "não ter capa identificadora do autor (pseudónimo) e título"

segunda-feira, 20 de maio de 2019

EU, PEDRO, DUQUE DE COIMBRA - III


Leonor tinha apoiantes poderosos, dos quais o que mais se bateu contra a minha escolha como Regente foi o Conde de Barcelos Afonso, meu meio-irmão, que tinha dez anos quando o nosso Pai D. João se casou em 1387 com minha Mãe, Filipa de Lencastre. O Rei D. João sempre tratou Afonso como filho e armou-o cavaleiro em 1398 com 21 anos, depois da conquista de Tui, ainda durante as guerras com Castela. O conde de Barcelos casou em 1401 com Beatriz, filha do condestável e grande amigo e apoiante de nosso Pai, D. Nuno Álvares Pereira. Recordo os esforços que desenvolvi, durante a minha regência, para anular as divergências com Afonso, e fi-lo mesmo Duque de Bragança em 1442, tornando-o no nobre mais importante e mais rico de todo o Reino.
Muitas coisas fiz e muitas mais tentei fazer durante a minha regência. Consegui mandar terminar a compilação das Ordenações Afonsinas que vinham já do reinado de D. Duarte e que ficaram prontas em 1446. Grande satisfação me deu tal facto, porque o reino muito precisava de leis como aquelas que os romanos tinham e que tão esquecidas andavam.
Não me esqueci do meu ducado e estudei a criação de uma nova Universidade em Coimbra. Em 1443 publiquei mesmo um diploma pelo qual, em nome do Príncipe Afonso, decretei o Estudo de Coimbra custeado pelas minhas rendas e sob a minha protecção. Cheguei até a fazer escritura de doação de rendas para o efeito, em 1446.
Tive sempre em mente as desgraças que as guerras com os mouros do Norte de África nos trouxeram depois da conquista de Ceuta. Sempre me pareceu mais avisado seguir pela costa africana, como meu irmão Henrique propunha. Por isso tratei de levar gente a viver nos Açores e na Madeira tratando de lhes conceder regalias. Henrique bem me dizia que o arquipélago dos Açores eram muito importantes porque as naus, no seu regresso da costa africana, tinham que passar por lá para apanharem bons ventos. E essas viagens iam cada vez mais longe, tendo mesmo atingido o que chamaram de terras da Guiné. Cheguei mesmo a conceder a Henrique, em 1443, a posse das terras para lá do cabo Bojador que tão grandes pavores infligia aos navegadores até Gil Eanes o dobrar, mas acautelei que, depois da sua morte, viessem à posse da casa real.
Assim que o Príncipe Afonso atingiu a sua maioridade, de imediato dei por fim a regência em seu nome e lhe entreguei o trono. Foi no ano passado e já parece que foi há uma eternidade. O Duque de Bragança aproveitou bem estes meses para mais uma vez intrigar junto do Rei e convencê-lo de que me tornei um traidor, mesmo depois de tudo quanto fiz para lhe entregar o reino em paz e prosperidade.
Por fim, recordo os meus mais queridos. A minha adorada Duquesa de Coimbra, que comigo veio desde Balaguer ,na Catalunha, para me encher de felicidade. Os meus seis filhos que tanto acarinhei e que sempre se mostraram rapazes e raparigas atentos do seu tempo, conscienciosos do seu lugar, e capazes de escolherem os seus caminhos. Desde o mais velho Pedro de Coimbra já com 20 anos e seguro das suas capacidades militares e de organização, passando pela Rainha Isabel de Portugal, até à pequena Filipa, ainda com doze anos e já gostando tanto de tratar de crianças pequenas. Tenho a certeza de que irão sofrer depois do dia de hoje e é isso o que mais me dói perante a morte certa. Que D. Afonso V se apiede deles e não os transforme em mártires em virtude do pai.
Já ouço os clarins de Afonso V a dar ordem de combate.
Meu querido Álvaro Vaz de Almeida Conde de Abranches, meu valido e amigo de sempre. O juramento que fizemos na Igreja de S. Tiago, na nossa Coimbra, vai agora ser cumprido. Vamos para o combate final, morreremos certamente ambos, mas morremos com dignidade, lutando pela Lealdade e pela Verdade.

(Por obra do acaso, esta terceira e última parte do ensaio sobre a vida de Dom Pedro, Duque de Coimbra, é publicada no Diário de Coimbra precisamente no dia em que passam 570 anos sobre a sua morte em Alfarrobeira)
Publicado originalmente no Diário de Coimbra, em 20 de Maio de 2019.