segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Crónica de viagem: Vá ao norte cá dentro.

Embora quem observe as promoções dos diferentes organismos de turismo quase nem dê por isso, há um norte português a visitar, para além do Porto e do Douro, sem qualquer desprimor para estas regiões que, evidentemente, merecem bem ser visitadas e conhecidas.
Claro que o sul de Portugal tem atractivos muito ligados ao calor, às praias e ao Verão, razões mais que suficientes para que as estradas para essa zona do país apresentem nesta altura o movimento que se sabe. Mas o norte tem, além do mais, todo o substrato cultural e social que nos explica como país, como José Mattoso explica e descreve na sua "Identificação de um País".
Percorrer o norte desde Viana do Castelo até ao Gerês é toda uma peregrinação pelo nosso passado e pela nossa identidade, felizmente ainda bem visíveis na paisagem e que as gentes com as suas vivências mantêm bem presentes.
Viana é hoje uma cidade que atrai muitos turistas, grande parte deles da Galiza, possuindo infraestruturas modernas, como por exemplo estacionamento central, que facilitam a visita ao centro da Cidade.
Guimarães, com todo o seu quase culto a D. Afonso Henriques, conseguiu aliar um notório desenvolvimento económico a uma recuperação notável do centro histórico que à noite apresenta uma permanente animação cultural variada e moderna. As ruas estão imaculadamente limpas e é bem interessante que até os empregados de restaurante apresentem na sua roupa referências ao primeiro rei e à classificação como património mundial da UNESCO. Cabe aqui referir que, ao contrário de cultivar rivalidades estéreis, Coimbra e Guimarães poderiam ambas ganhar através da exploração das complementaridades historicas evidentes.
Mas o Norte tem uma zona pouco divulgada, com um caracter único e belezas raras: o Gerês e as Terras de Bouro. O Minho apresenta-se aqui com toda a sua pujança de verde e de vida, a que se alia a força bruta de uma natureza indomável. O gigantesco monólito de granito que alberga o antigo castelo e que domina a Póvoa de Lanhoso é símbolo da dureza destas terras que se reflecte na personalidade das gentes, afáveis mas sólidas nas suas maneiras de pensar e de ser.


 

O Parque Natural da Peneda-Gerês é uma permanente surpresa para os sentidos. Passear pelo seu interior, seja pelas estradas e caminhos, seja pelos trilhos pedestres ou a cavalo, permite encontrar locais paradisíacos e paisagens deslumbrantes. Desde a beleza selvagem da barragem de Vilarinho das Furnas até à povoação do Gerês com os desportos náuticos, a variedade é total. As Caldas do Gerês surgem no meio de uma vegetação frondosa, apelando às memórias dos tempos em que as águas curativas chamavam gentes de muitos lados, algo que hoje renasce com características dos tempos modernos.
As diversas quedas de água são impressionantes e de grande beleza. A cascata de Picães obriga a uma caminhada por trilhos de montanha até se poder atingir o local onde as águas caem de grande altura, permitindo um banho retemperador na piscina natural. As cataratas do Arado desenvolvem-se numa grande extensão através das penedias pela serra abaixo. Em toda a região é possível observar animais vivendo de forma selvagem.
O turismo encontra-se organizado entre nós, desde os anos sessenta do século XX, essencialmente à volta das praias e do Sul. O Norte de Portugal apresenta características únicas, do ponto de vista de paisagem, s. A oferta é enorme e de qualidade, baseada não em grandes hotéis, mas em casas de turismo rural que se encontram em todo o lado, permitindo uma interacção com os residentes locais que enriquece os visitantes do ponto de vista cultural, para além da actividade turística típica.
Parafraseando um célebre publicitário dos tais anos sessenta do século passado, caro leitor, vá ao Norte, cá dentro.




segunda-feira, 17 de agosto de 2015

As mulheres, grandes vítimas da guerra

Uma das últimas novidades do auto-denominado Estado Islâmico dá conta da justificação religiosa encontrada por aquela gente para uma das maiores barbaridades que praticam com regularidade, a chamada “teologia da violação”. Já era conhecida a prática da venda de mulheres e meninas para exploração sexual pelos combatentes islâmicos, mas o que veio agora a público pelos testemunhos de algumas sobreviventes ultrapassa o que se pudesse imaginar e tem que ser divulgado e denunciado. De acordo com esses testemunhos em primeira mão, a violação das mulheres adquiriu uma dimensão sistemática e organizada que a torna numa acção central das tácticas dos jihadistas, fazendo mesmo lembrar a organização nazi para extermínio dos judeus. Os islamitas do DAESH criaram uma rede de casas especializadas onde as mulheres são aprisionadas, com salas para a sua inspecção e marcação. Existe ainda uma rede de transportes para levar as mulheres aos combatentes que lhes foram destinados, tendo mesmo sido elaborado um manual de instruções para as violações, incluindo a justificação teológica para esses actos, descrevendo-os como espiritualmente benéficos. Há relatos de meninas violadas de forma horrenda, que descrevem como os islamitas rezam antes e depois daquelas acções, tidas como aceites pelo Corão. A existência de mulheres escravizadas como objectos sexuais tem mesmo sido usada como propaganda pelos islamitas, para chamar novos jovens combatentes, pelo que não é algo que escondam, antes pelo contrário, é algo que faz parte intrínseca da organização social do chamado Estado Islâmico.
A guerra tem sido, ao longo da História, uma razão para a prática de violações sistemáticas de mulheres, pelo que o que se passa actualmente no dito Estado Islâmico não é, infelizmente, caso único.
Na antiguidade e na idade média, o fim das guerras significava normalmente o saque das terras e cidades conquistadas que constituía o pagamento aos soldados vencedores, incluindo a escravização e a passagem pelo fio da espada das populações aí residentes, bem como a violação das mulheres.
Mais recentemente, na Segunda Guerra Mundial o exército japonês aprisionou centenas de milhares de mulheres coreanas e chinesas, levando-as para bordéis onde foram feitas escravas exclusivamente para satisfação dos desejos sexuais dos soldados japoneses. 
Chamavam-lhes eufemisticamente “mulheres de conforto”. Esta vergonha conhecida mas calada durante muito tempo, não motivou ainda qualquer pedido de perdão por parte dos governantes japoneses, que apenas reconhecem ter o Japão tomado algumas atitudes impróprias naquela guerra. Tendo na semana passada ocorrido o 70º aniversário da capitulação japonesa, ainda não foi desta vez que as muitas mulheres abusadas repetidamente pelos soldados japoneses, muitas delas ainda vivas e aguardando por tal, puderam ouvir um simples “pedimos perdão” para poderem morrer mais pacificadas.Devemos ainda lembrar o caso da guerra na Bósnia nos anos 90 do século passado em que a violação sistemática de mulheres, acompanhada pela morte de toda a população masculina, foi deliberadamente usada para limpeza étnica, tendo os responsáveis sido levados perante o TPI. Os casos de violações sistemáticas de mulheres nos conflitos armados em África, designadamente na República Democrática do Congo e na Serra Leoa e mais recentemente na Nigéria estão aí para mostrar que este não é um problema localizado.
As instituições internacionais têm defendido que, nos últimos anos, a violação sistemática de mulheres como resultado do fim dos conflitos armados tem vindo a diminuir, não sendo já a “norma” o que, sendo evidentemente positivo, não diminui a gravidade dos casos concretos. Trata-se de algo inaceitável em pleno século XXI, à luz das próprias normas internacionais vigentes que prevêem tribunais penais internacionais para este tipo de crimes, pelo que não se percebe que ainda não tenha sido pedida a sua constituição para os responsáveis do dito Estado Islâmico. A grotesca justificação religiosa utilizada pelos islamitas para os seus actos, que anula as mulheres como Pessoas e as torna simples objectos de prazer dos homens, só vem agravar todo o contexto de violações sistemáticas que estão neste mesmo momento a ser levadas a cabo de forma organizada.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Irá a Rússia sobreviver a Putin?



De acordo com notícias veiculadas por agências russas ligadas ao Kremlin, há poucos dias o presidente Putin chamou o embaixador Turco em Moscovo e transmitiu-lhe um aviso solene sobre o que entende ser o apoio turco aos rebeldes jihadistas do chamado Estado Islâmico (ISIS) na Síria, país onde a Rússia possui a sua única base militar no mar Mediterrânio. De acordo com essas notícias, nesse encontro que não terá sido nada amistoso, o presidente russo reafirmou o apoio do seu país ao presidente Sírio Bashar al-Assad, tendo inclusivamente comparado o presidente Turco Erdogan, a quem chamou ditador, e os seus aliados sauditas a, nem mais nem menos que Hitler, ameaçando fazer da Síria uma grande Estalinegrado.
As ameaças externas do presidente russo não são uma novidade, embora não deixe de ser irónico que venha apelidar de ditador o presidente de outro país que, não certamente por acaso, pertence à NATO. Na realidade, nos últimos tempos a vida não tem corrido de feição a Vladimir Putin. Na sequência da queda do regime soviético, a Rússia enfrentou a possibilidade real de desmembramento do seu próprio território, para além do afastamento de boa parte dos países do ex-Pacto de Varsóvia que, assim que puderam, fugiram e foram ligar-se à União Europeia ou mesmo à Aliança Atlântica. Nesses tempos, Boris Yeltsin juntou os cacos e tentou limitar as avarias até onde fosse possível. Quanto aos países independentes, não havia muito a fazer. No respeitante às diversas nações integradas na Rússia como a Sibéria, o Ural ou a Karélia que reivindicaram a sua soberania, Yeltsin conseguiu mantê-las ligadas à Mãe Rússia através da formação de uma Federação, dando às diversas regiões bastante soberania. A magna questão das armas nucleares espalhadas pelo território da antiga União Soviética teve que ser resolvida com apoio internacional, deslocando o armamento da Ucrânia e do Kazaquistão para a Rússia. Neste caso, houve mesmo um acordo assinado pela Rússia, EUA e Inglaterra, mediante o qual era garantida a integridade territorial da Ucrânia em troca da deslocação das armas nucleares para a Rússia.

Putin resolveu desfazer tudo isso. De Federação, há muito tempo que não se ouve falar. Quanto à Ucrânia, como se sabe, tratou de anexar a Crimeia e levou a guerra à parte oriental do país. Faz agora um ano, os guerrilheiros pró-russos abateram mesmo um avião civil com um míssil, causando centenas de mortos; há poucas semanas Moscovo impediu pelo seu veto no Conselho de Segurança a criação de um tribunal para tratar do abate do avião, ficando definitivamente à vista o seu interesse no caso. Mesmo a Tchetchenia está actualmente em relativo sossego através da relação pessoal entre Putin e o líder local Kadyrov, mantido através de corrupção generalizada no país e de uma troca de interesses mútuos que desaparecerão de imediato se e quando Putin estiver fora da equação.
A anexação da Crimeia trouxe problemas acrescidos a Putin. As sanções internacionais, em conjunto com a descida internacional dos produtos petrolíferos, trouxeram graves dificuldades à economia russa já de si frágil em face da sua organização oligárquica. A resposta do presidente Russo foi fomentar um sentimento generalizado contra o Ocidente, acompanhado de ameaças contra a Nato e contra os países bálticos. A Rússia proibiu ainda a importação de produtos originários dos países que apoiam as sanções económicas, incluindo produtos médicos, aparelhos de raios-X e agora também de preservativos, com a ideia de substituir esses produtos por outros fabricados no país.
O tipo de liderança praticada por Putin pode dar resultado durante algum tempo, dado que é acompanhada de uma forte mão de ferro. Mas, quer seja ainda durante a sua presidência ou logo depois, algo importante vai acontecer na Rússia, disso não tenhamos dúvidas. Se o império Czarista desapareceu com a rapidez que se sabe, o regime comunista com toda a sua organização centralizada implodiu também de um dia para o outro. O Ocidente deve ter estes factos na memória e perceber que, apesar de tudo, a Rússia é um grande país e, quanto mais não seja por prudência e pragmatismo, é de toda a conveniência internacional que o continue a ser e que não se desmembre em numerosos países totalmente desintegrados da ordem internacional e sem memória organizativa própria. E, respondendo à pergunta do título desta crónica, ajudar para que a Rússia sobreviva a Putin.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 Agosto 2015

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A doença que alastra



A Síria, tal como a conhecemos durante muitos anos, é um país que já não existe. Actualmente, já nem sequer pode ser considerado como um país, por não ter território definido, governo que governe, nem qualquer sombra de soberania, para além de não haver paz em lado nenhum para os seus habitantes, que não se podem sequer chamar cidadãos. Aquilo que começou na chamada “primavera Árabe” resvalou para um conflito militar inter-Islão entre sunitas e xiitas com uma violência inaudita. Na Síria, anteriormente um país multicultural e multiétnico, mas bastante ligado ao Irão, convergiram todos medos e todos os ódios da região, movimentando alianças regionais e mundiais, desde a Arábia Saudita e Qatar contra o Irão, Rússia e China contra Estados Unidos e Europa, sem esquecer Israel e a Turquia devido ao Hezbollah e aos Curdos. O avanço do xiismo, que sempre foi minoritário, um pouco por todo o mundo muçulmano colocou os principais países sunitas como a Arábia Saudita e seus aliados em alerta pelo medo que têm do Irão xiita, que consideram como o seu inimigo principal, mais ainda que o próprio Israel.
Deste caldo saíram as condições para que nascesse algo ainda pior, o chamado “Estado Islâmico”. Depois de terem aproveitado as deficiências e falhas graves do Iraque após a saída das forças americanas, onde originalmente lutaram para criar um califado nas zonas de maioria sunita no Iraque, os jihadistas avançaram pela Síria, ocupando grande parte do seu território a saque.

 O seu objectivo final é agora recriar o antigo califado, exercendo a sua autoridade sobre todos os muçulmanos do mundo. O objectivo imediato passa pela criação de um Estado muçulmano cujo território será constituído pela zonas sunitas da Síria e do Iraque, o que já estará quase alcançado. As reacções internacionais têm primado pela ineficácia, já que se restringem a acções de força aérea sem qualquer colocação de exércitos no terreno. De facto, o historial do médio-oriente aconselha à maior prudência nas acções militares, porque os aliados de hoje serão certamente os inimigos de amanhã e é impossível conhecer as alianças subterrâneas entre os diversos países, famílias e orientações religiosas que funcionam a cada momento, ditadas pela religião mas também, ou sobretudo, pelo poder do petróleo.
Mas o problema não está circunscrito à Síria e ao Iraque, bem pelo contrário. Na realidade, o terror da autoria de fundamentalistas islâmicos tem sido levado praticamente a todo o lado, não se circunscrevendo à área daquilo a que chamam Califado.
Na Europa recordam-se, entre outros, os atentados nos comboios em Madrid em Março de 2004 que provocaram 191 mortos, em Londres em Julho de 2005 com 52 mortos, em Toulouse em Março de 2012 com 4 mortos, o ataque à revista Charlie Hebdo com 12 mortos em Janeiro de 2015. Sem esquecer os mortíferos atentados islamitas anteriores em Nova Iorque e.Bombaim.
Em África, todo o Norte se encontra em chamas devido aos extremistas muçulmanos. Desde a Tunísia em que turistas são chacinados na praia, até ao Egipto onde a guerra no Sinai é aberta, passando pela Líbia onde as praias são utilizadas pelos jihadistas para mortandades filmadas e mostradas ao mundo inteiro. 
Mas a África sub-sariana experimenta também os horrores da guerra trazida pelos extremistas muçulmanos. Os países situados nas margens do lago Chade, a Nigéria, o Chade, o Níger e os Camarões têm sofrido horrores indescritíveis causados pelos islamitas do Boko Haram. A Somália é palco de frequentes ataques jihadistas que atacam directamente as forças armadas do país. No Quénia, os terroristas islâmicos entraram numa Universidade e foram perguntando a quem encontravam se era cristão, matando de imediato quem respondesse afirmativamente e deixando assim 147 mortos para trás.
Na Índia, em Bombaim, atentados dos jihadistas islâmicos provocaram quase duzentos mortos em Novembro de 2008.
Verifica-se que o jihadismo islâmico encontra terreno propício para a sua macabra actuação em países sem Estado central forte ou mesmo minimamente organizado e em países em que os detentores de poder pouco mais fazem do que canalizar as riquezas dos seus países para as suas próprias contas bancárias, gerando pobreza generalizada e forte insatisfação dos povos.
Olhando para o mapa actual da actividade do jihadismo islâmico, não podemos deixar de nos assustar e perguntar qual a saída para a situação que é visível não ser já resolúvel com acções militares localizadas. E impressiona a aparente passividade do resto do mundo e a completa incapacidade de resposta das instâncias internacionais, como as Nações Unidas.