terça-feira, 22 de julho de 2025

Civilidade ou educação

 

Ouvimos frequentemente referir a necessidade de civismo no comportamento dos concidadãos. De facto, o civismo é necessário para todos nós, mas é insuficiente, já que se refere às atitudes perante a sociedade ou o Estado, como votar ou participar em actividades comunitárias. O seu exercício é objecto do ensino nas escolas, para além do que se aprende em casa com a família. Já o relacionamento directo entre as diversas pessoas tem a ver com civilidade, algo que tradicionalmente se aprende em casa, mas que deverá igualmente ser objecto de atenção cuidada nas escolas, devendo claramente fazer parte da educação pessoal. A civilidade inclui cumprimentar regularmente as pessoas, pedir desculpas, ceder naturalmente passagem, em resumo tratar os outros com cortesia e consideração.

Longe de mim dizer que actualmente há mais ou menos civilidade e que “no meu tempo é que era bom”, até porque o meu tempo é tanto o de há 50 ou 60 anos, como é o de hoje. As circunstâncias sociais mudaram radicalmente e o acesso à fruição de tantas actividades que dantes eram elitistas é hoje possível a mais camadas da população, o que é de saudar e apoiar. O inter-relacionamento entre pessoas de diferentes origens é também muito mais fácil e democrático.

Contudo há, por vezes, situações em que a maior liberdade para agir em sociedade se confunde com exercício de direitos sem atender aos direitos dos outros e surge claramente a falta de civilidade, que não chega a ser falta de educação, mas que anda lá perto.

Um exemplo é o que se verifica em ginásios, equipamentos que grande parte da população utiliza, já que se divulgou a ideia correcta de que uma boa forma física é algo que contribui, e muito, para o bem-estar geral das pessoas. A frequência dos ginásios substitui, em boa parte, a prática de desporto que, a partir de certa altura se torna difícil de fazer pelas mais diversas razões. Tem ainda a vantagem de cada pessoa como que jogar contra si própria, sem contactos físicos com outros. Os exercícios são praticados de forma individual e podem ser calibrados em função das capacidades físicas pessoais.

Claro que há outros desportos em que o praticante evolui de forma inteiramente pessoal sendo o sucesso medido apenas pelos valores que atinge pessoalmente, independentemente dos outros praticantes. Um exemplo é o Golfe em que o resultado do praticante, ainda que vá de buraco em buraco com um parceiro, apenas depende de si próprio e do número de tacadas com que consegue meter a bola no buraco depois da saída. Claro que o golfe exige mais disponibilidade de tempo para a sua prática e todos sabemos como o tempo é dinheiro, pelo que a sua prática se torna cara. Em Coimbra torna-se quase impossível praticá-lo uma vez que não existe, nas nossas proximidades, qualquer campo de golfe com pelo menos 9 buracos. Os mais próximos são em Viseu, em Espinho e em Óbidos.

Devo confessar que, contudo, o golfe caiu nesta crónica por outra razão específica e tem a ver com as regras desse desporto. Na realidade, as regras, embora possam à primeira vista parecer complexas, mais não são do que normas de civilidade. Fundamentalmente, visam estabelecer equidade nas hipóteses de mais ou menos sucesso e de marcar o respeito pelos outros praticantes, perante as situações com que se deparem, em função das condições em que a bola se encontra depois de cada tacada.

Nos ginásios há evidentemente regulamentos próprios de cada um. Mas, infelizmente, são muito comuns as situações de clara incivilidade. Por exemplo, praticantes que ocupam em simultâneo dois aparelhos, deixando a toalha num enquanto utilizam outro, ou que resolvem não abandonar o aparelho depois do exercício ficando a usar o Facebook ou algo semelhante no telemóvel. São diversas as situações que até não necessitariam de regulamento para serem evitadas, mas que causam mal-estar nos outros praticantes que, esses sim por pura boa-educação nem reclamam ficando em desvantagem relativa por perderem tempo à espera de que outros resolvam finalmente deixar o lugar de que abusam. A civilidade faz mesmo falta, mesmo em locais e circunstâncias em que se poderia pensar não ser precisa.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 Julho 2025 

Coimbra no seu melhor: António Travassos

 

Há uns 25 anos, Coimbra começou a surgir com frequência nos jornais e televisões em notícias de intervenções cirúrgicas oftalmológicas que constituíam novidade mundial, realizadas com muito sucesso. O responsável por essas notícias era o cirurgião António Travassos que assim trazia o seu recém-construído Centro Cirúrgico de Coimbra para a ribalta da Medicina, na área da Oftalmologia, mas não só.

O Dr. António Travassos é um alentejano que desde criança pensou vir a ser engenheiro mecânico, tal era o seu gosto por máquinas, as mais variadas. Mas, no seu percurso académico, alguém descobriu a sua habilidade nata para lidar com corpos de animais. E acabou por seguir medicina. Mas nunca perdeu a sua maneira muito própria de observar os órgãos do corpo humano como máquinas que também são. Especializando-se em cirurgia oftalmológica que praticou com afinco numa universidade americana, desenvolveu técnicas próprias que aplicou em dezenas de milhares de cirurgias.

Exerceu medicina nos Hospitais da Universidade de Coimbra mas a sua sede de independência, que lhe permitisse os voos que almejava, acabou por levá-lo a criar o seu próprio hospital especializado. Dada a sua formação, mas também a sua maneira de ser muito própria, imaginou na sua cabeça todo o complexo hospitalar que viria a ser o Centro Cirúrgico de Coimbra.

Foi assim que, no início deste século, Coimbra, Portugal e o mundo ficaram a saber que em Coimbra havia um oftalmologista que atendia pessoas que, depois de anteriores cirurgias mal sucedidas  umas, desenganadas por diagnósticos desfavoráveis outras, desesperavam por encontrar alguém que lhes devolvesse a visão. Doentes portugueses, mas de todo o mundo, passaram a procurar o Dr. Travassos em Coimbra, sabendo que nunca descansa enquanto não encontra uma solução para os problemas que se lhe colocam. Por isso mesmo desenvolveu técnicas próprias que envolvem um perfeito conhecimento fisiológico dos órgãos da vista, mas também uma capacidade extrema de utilização da técnica mais sofisticada que exista em cada momento. E as notícias referiam celebridades que vêm a Coimbra, seja de automóvel, comboio ou mesmo de helicóptero sem que, no entanto, o Dr. Travassos faça qualquer distinção nos cuidados médicos que disponibiliza.

O humanismo no acompanhamento dos doentes é uma marca que distingue este hospital, mostrando a diferença que deve existir entre utentes e doentes. Mas quem vai àquela unidade hospitalar pode ainda vislumbrar outras características do seu fundador. O seu apurado sentido estético leva-o a, para além dos gostos pessoais pela cirurgia e pela mecânica, ter igualmente desenvolvido um forte instinto artístico que é bem visível no Centro Cirúrgico. Os doentes estão permanentemente num ambiente artístico que se desdobra em telas de pintura ou esculturas que se adicionam harmoniosamente às excelentes instalações que foram completamente imaginadas e passadas à obra pelo Dr. Travassos.

Não há muitos casos em que alguém extremamente competente e inovador na sua área profissional seja igualmente um empreendedor capaz de construir as instalações onde possa desenvolver a sua actividade. Mas o Dr. Travassos não descansa e está sempre um passo à frente na procura do futuro. E anunciou recentemente grandes transformações no seu Centro Cirúrgico já que, nas suas palavras, “A medicina que praticamos já não é apenas feita de bisturis e estetoscópios – é feita de inteligência artificial, algoritmos, machine learning, robótica, sensores, dados em tempo real e, fundamentalmente, por profissionais competentes e honestos.”

Motivos mais que suficientes para vermos que “Coimbra no seu melhor” passa mesmo por aqui e por António Travassos para quem, e citando de novo, “É-se Médico quando percebemos que a grande obra de arte é a Natureza, mas também o ser Humano que ajudamos”.

Publicado originalmente non Diário de Coimbra em  14 Julho 2025

sábado, 5 de julho de 2025

SOBRE “RAÇAS PURAS”

 

Quando ouço falar em manter a “portugalidade” ou defender as nossas características únicas (e, eventualmente, superiores) não posso deixar de me lembrar do significado histórico dessas posições. As justificações imediatas para essas atitudes têm variado ao longo dos tempos, conforme as circunstâncias, mas nos nossos dias apelam à ignorância e muitas vezes à chamada à superfície de medos ancestrais há muito enterrados na evolução da ciência.

Há pouco menos de cem anos o partido nazi utilizou documentações falsas como os “Protocolos dos Sábios de Sião”, para além de pretensas características próprias dos judeus para levar a cabo perseguições rácicas que terminaram com o extermínio de seis milhões de homens, mulheres e crianças. Para além dos judeus, pessoas com deficiências físicas ou problemas mentais ou mesmo homossexuais foram motivo das mais abjectas perseguições e experiências com o fim de proteger uma assim chamada raça ariana, tida como superior. Infelizmente, a eugenia prolongou-se ainda durante anos depois da guerra em diversos países do mundo.

Os portugueses devem ter consciência do que sucedeu no nosso país no início do sec. XVI. Depois de séculos em que judeus e mouros viveram em paz e completa harmonia social em Portugal, o casamento do Rei D. Manuel com Isabel, a filha dos Reis Católicos de Espanha, marcou uma mudança significativa. Contrariando a anterior tradição de tolerância religiosa, o Monarca aceitou as exigências dos Reis Católicos para a “purificação” de Portugal através da expulsão dos infiéis (mouros e judeus) como já sucedia em Castela. Nasceram aí os chamados “cristãos-novos”, infame e hipócrita invenção que viria ter trágicos resultados. De facto, em 1506 cerca de 2.000 “cristãos-novos foram vítimas de um massacre em Lisboa, acusados de trazerem a peste negra. Para piorar a situação, D. João III viria a pedir ao Papa a introdução da Inquisição, o que sucedeu em 1536 originando a emigração de muitos judeus portugueses que formaram comunidades sefarditas desde Veneza a Nova Iorque, passando por Amesterdão, Antuérpia e muitas outras cidades em países mais tolerantes.

A origem e as migrações do “homem moderno” de quem TODOS nós descendemos têm sido objecto de estudo e de actualizações nos últimos anos à medida que vão sendo descobertos novos restos humanos cada vez mais antigos e ainda pelo desenvolvimento da ciência da Genética. Algo que parece seguro é que a espécie humana terá tido origem comum no Leste de África.

O território que é hoje Portugal foi recebendo populações vindas do continente europeu desde o Neolítico há cerca de 7.000 anos que trouxeram a agricultura, com todas as consequências civilizacionais daí decorrentes. Vários povos antigos habitaram na península como os Lusitanos ou os Iberos. Mas muitos outros povos passaram por cá, sendo já bem documentados os fenícios, romanos, os chamados “bárbaros” celtas e os Árabes.

Os portugueses são o resultado de toda esta miscelânea, a que se vieram juntar os escravos trazidos por romanos, mouros e depois na altura dos Descobrimentos. De notar que a frequência de linhagens subsarianas atinge no Norte de Portugal o valor de 3%, mas no Centro de 6% e no Sul de 11%. A escravatura existiu desde 1444 quando os primeiros escravos negros foram desembarcados em Lagos, até ao sec. XVIII quando Portugal a aboliu na Metrópole. A Genética mostra-nos de que forma a variedade de povos foi introduzindo as suas características no que é o nosso actual património genético.

Perante este enquadramento histórico é, no mínimo, estranho que apareça quem queira defender uma denominada “portugalidade” contra a entrada de imigrantes que vêm procurar uma vida digna que não conseguem nos seus países de origem. Muito para além da economia, dos valores éticos e da simples bondade, o conhecimento da nossa História deveria orientar a forma com recebemos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  30 de Junho de 2025