sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Portugal, um país a sonhar acordado

 

Passam este mês 471 anos sobre a data de nascimento do Rei. D. Sebastião que viria a morrer na batalha de Alcácer Quibir em 4 de Agosto de 1578. A tradição histórica atribuiu-lhe o cognome de “o Desejado” e “o Encoberto”, o que já por si indicia o sebastianismo que se desenvolveu em Portugal após o seu desaparecimento. Grande parte do povo não acreditou na sua morte na batalha fatídica, com esperança no seu regresso para resolver os problemas do país. Esse movimento profético e messiânico nunca chegou a desaparecer completamente, tendo-se manifestado por diversas formas ao longo dos tempos, sempre como uma solução que, de forma quase mágica, nos tiraria de dificuldades na realidade por nós próprios criadas.

As “Trovas messiânicas” de um sapateiro de Trancoso chamado Gonçalo Bandarra, da primeira metade do sec. XVI foram, curiosamente, o ponto de partida para esse movimento messiânico que se desenvolveria em torno do regresso de D. Sebastião. No sec. XVII o Padre António Vieira deu um impulso ao espírito messiânico de Portugal, formulando a tese do Quinto Império. Para ele o destino de Portugal, na senda das profecias de Bandarra, seria corporizar o “Quinto Império”, mas um império espiritual que traria paz e justiça ao mundo. O próprio Fernando Pessoa viria a integrar o chamado “quinto império” cultural e espiritual na sua obra poética, na “Mensagem”. O messianismo, para além de uma crença de carácter popular, corporizou um sentimento das próprias elites culturais.

Felizmente, existe hoje uma parte de Portugal, não dependente do Estado, que foge ao sebastianismo e investe de forma responsável e exigente, criando riqueza e emprego bem pago. Mas ao lado, sonhar com um futuro grandioso, sem trabalhar para o conseguir, parece continuar a ser uma pecha de muitos portugueses, aos mais diversos níveis, como o indiciam vários sinais: o elevadíssimo número de compradores de raspadinhas e jogadores compulsivos do Euromilhões que, em vez de tentar poupar, gastam o que têm e o que não têm; a forma como políticos relevantes falam na necessidade de gastar todo o PRR em vez de exigir que seja bem gasto. Aliás, só um desfasamento grave entre a realidade e um sentimento de riqueza onírica pode explicar que, tendo entrado na CEE em 1986 e recebido centenas de milhões de euros em apoios financeiros desde então, a riqueza de Portugal não ultrapasse ainda hoje os 83% da média europeia. E o nível de pobreza entre os portugueses é ainda tão elevado e difícil de compreender que um estimado amigo me comentava há poucas semanas que “entre nós, a pobreza parece ser mais um traço genético, de tal modo é sentida por tantos, quase inelutavelmente; parece que os restantes apenas lutam para não ser pobres também.”

Se me parece evidente que o grau de pobreza é resultado de políticas públicas, não pode deixar de ser essa mesma pobreza que, em grande parte, é responsável pela continuidade de hábitos e crenças que já há muito deviam estar no caixote de lixo da História.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  13 de Janeiro de 2025


segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

UM ANO QUE COMEÇA

 

A História ensina-nos que há momentos específicos em que uma descontinuidade súbita arrasta a sociedade para uma direcção completamente diversa da que fora seguida até então. Mas mesmo esses pontos de inflexão séria são consequência do percurso anterior, embora as forças que levam ao seu surgimento sejam muitas vezes pouco perceptíveis, tal como as correntes subaquáticas invisíveis à superfície que quando chegam à costa rebentam com uma força insuspeitável. De facto, quem olha para os movimentos sociais observando apenas a espuma superficial, é muitas vezes surpreendido pela violência de fracturas repentinas que se desenvolvem de forma quase espontânea e que tudo alteram em muito pouco tempo. Nunca me esqueci de, quando andava no liceu, estudar a Revolução Francesa e a suas causas imediatas e longínquas. Tal como a vida me proporcionou assistir ao vivo ao 25 de Abril que fundou o nosso regime democrático, algo de que a quase totalidade da população portuguesa não desconfiaria nos dias anteriores. Tratou-se de uma alteração profunda da realidade induzida por um determinado facto concreto, mas ampliada por condições profundas de cuja existência não se suspeitaria.

Serve tudo isto para justificar uma visão muito própria da realidade actual que é muito mais complexa do que a espuma dos telejornais, desde o “caso das gémeas” ao “vencimento do Rosalino”. A votação extraordinária do partido Chega, ao contrário do que se costuma dizer, não se deve a um “crescimento da direita”, já que não tem nada a ver com conservadorismo ou democracia cristã do centro-direita. É outra coisa que se deve a movimentos subterrâneos fortíssimos que se desenvolvem em todo o mundo de rejeição de um novo modelo capitalista que não proporciona um crescimento económico semelhante ao do sec. passado. Temos de perceber o que verdadeiramente significam o Brexit, a vitória de Trump, o surgimento de partidos como a AfD na Alemanha e outros pela Europa fora. Isto obriga a não “meter a cabeça na areia” relativamente aos verdadeiros problemas, mas não dando terreno ao populismo que se aproveita daquele fenómeno de ressentimento generalizado.

Em Portugal o ano de 2025 vai trazer eleições autárquicas, importantes para todos nós porque traduzem a escolha de quem dirige a “coisa pública” com proximidade. Que não nos deixemos embarcar em campeonatos de duração de “fogos de artifício” e que sejamos exigentes relativamente àquilo que verdadeiramente interessa ao futuro da Cidade são os meus votos.

Vamos igualmente assistir à preparação da eleição presidencial que acontecerá no início de 2026. Aliás, essa preparação já começou. E, mais uma vez, deveremos ter muita atenção aos movimentos sociais profundos que, vindos de vários lados, poderão desembocar nos resultados dessa eleição, para que depois não se venha com a conversa (e desculpa) da surpresa.

Para todos os leitores os meus votos de um bom ano de 2025 com saúde e com muita atenção ao que verdadeiramente interessa.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Janeiro de 2025

UM ANO QUE TERMINA

 

Nesta época de passagem de ano, cronista que se preze não pode fugir a fazer uma resenha comentada do ano que finda e uma previsão do que deverá acontecer no ano que está prestes a começar.

Fugindo um pouco à regra, dedicarei esta crónica apenas ao ano que vai e a próxima às expectativas para o que novo ano quem vem.

Em 2024 o mundo continuou na sua procura de uma nova ordem que se seguirá inevitavelmente ao caos internacional que se vive desde o fim da chamada Guerra Fria. Na realidade, a herdeira do que restou do império soviético, a Federação Russa, sob a presidência de Putin que tenta organizar a nova ordem mundial à sua maneira, no fundo tentando reconstruir o que desabou em 1991. enquanto tenta destruir a União Europeia seguindo a velha táctica de dividir para reinar. Mimetizando por completo as justificações de Hitler para invadir os países vizinhos, começou por atacar directamente a Ucrânia em Fevereiro de 2022 que, contra todas as expectativas, resistiu e continua heroicamente a resistir. Até quando não se sabe, porque a eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA trouxe interrogações sobre a continuação do necessário apoio de armamento à Ucrânia.

Ao ataque terrorista do Hamas em Outubro de 2023 Israel respondeu com a destruição da Faixa de Gaza que continua e já fez dezenas de milhares de vítimas inocentes e muitos mais refugiados. A seguir Israel virou-se para o Hezbollah no Líbano que decapitou enquanto anulava grande parte da sua capacidade ofensiva. Como consequência, o regime Sírio de Bashar al-Assad caiu não se sabendo ainda que rumo irá seguir.

Perto do fim do ano foi a vez de o caos atingir Moçambique, nosso país irmão, onde a realização de eleições por muitos consideradas fraudulentas deu origem a tumultos que ainda continuam havendo já pilhagens generalizadas e centenas de mortos a registar.

Na nossa União Europeia verificaram-se problemas económicos graves, nomeadamente na Alemanha e em França, em paralelo com desinteligências graves entre países, em boa parte consequência das intervenções mais ou menos subterrâneas de Putin.

Entre nós, à maioria absoluta do PS com António Costa sucedeu uma AR sem maioria, com uma vitória mínima da AD que formou governo e um Chega que cresceu até eleger 50 deputados. A discussão sobre o Orçamento de Estado para 2025, em vez de negociação séria, mais pareceu uma encenação de fraca qualidade e mau gosto. Foi notória a inexistência de vontade de ir para eleições por parte de todos os partidos da oposição, por diferentes razões. Portugal passa por uma certa estabilidade que mais parece uma paz (política) podre que, no entanto, corta cerce toda e qualquer vontade que possa existir para introduzir as reformas fundamentais que todos sentem ser necessárias, mas certamente impopulares em termos eleitorais.

Sente-se que 2024 foi um ano de transição, mas não se percebe ainda para onde, quer em Portugal, quer no resto do mundo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Dezembro de 2024