quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Europa numa encruzilhada

 A atitude de Trump ao ligar directamente a Putin colocando como adquiridos alguns dos principais objectivos russos que deram origem à invasão da Ucrânia, faz agora três anos, deveria fazer pensar todos aqueles que acusavam os falcões americanos e europeus de serem responsáveis por aquela invasão. Tratar-se-ia, segundo eles, de mais uma cedência política dos países ocidentais à indústria de armamento americana e europeia. Putin não teria nada a ver com isso, estando apenas a tratar dos interesses russos. Interesses legítimos que abrangeriam a integração do território ucraniano, georgiano, etc. na sua soberania, de onde nunca teriam saído, não tivesse ocorrido a pior tragédia do sec. XX, como Putin classifica o fim da União Soviética. Quem assim pensava deve agora estar um pouco baralhado ao ver os EUA pela mão de Trump a passarem para o seu lado e a abandonarem a Ucrânia. Para Trump trata-se de um puro negócio, enquanto para Putin os objectivos são estratégicos e visam desfazer a União Europeia para a Rússia poder reinar no Leste europeu a seu belo prazer como aconteceu até 1989.

No seu primeiro mandato Trump fez muito barulho, mas na realidade pouco incomodou a ordem internacional estabelecida, apenas obrigando os parceiros da NATO a gastar um pouco mais nas despesas da Aliança algo, aliás, perfeitamente compreensível. Agora não se sabe ainda para onde irá Trump em concreto. Mas teme-se o pior, isto é, que a ordem estabelecida nos últimos 80 anos seja estilhaçada. Deve-se recordar que na Segunda Grande Guerra os EUA vieram salvar a Europa do jugo nazi, mas só o fizeram depois de Hitler lhes ter declarado guerra em 11 de Dezembro de 1941, entusiasmado com o sucesso do ataque japonês a Pearl Harbour ocorrido quatro dias antes. O isolacionismo dos EUA não é novidade, é mesmo uma normalidade que decorre da sua dimensão.

A Europa está num ponto de viragem exigente e tem de se preparar para decisões difíceis, mas importantes. Se considera, como deve ser, que a Ucrânia é um país europeu tem de se preparar para enfrentar a Rússia política, económica e militarmente. Com os EUA de fora a tratar dos negócios terá de ser a Europa a abrir a porta da União à Ucrânia e a preparar a sua entrada na NATO ou na nova aliança de defesa sem os EUA que, com alguma probabilidade, surgirá a curto prazo. Se mostrar fraqueza, acontecerá certamente a repetição dos anos 1937/38 em que os líderes europeus imaginavam poder conter Hitler com conversações enquanto aquele já preparava a Alemanha para a guerra e perseguia e enviava para campos de concentração quem quer que lhe manifestasse a mínima oposição. Claro que o ideal seria aguardar pelo fim do mandato de Trump, mas nem se sabe se o seu sucessor será mais sensato do que ele, nem Putin tem idade para aguardar muito mais tempo pelo ressurgimento do Império Russo por que almeja.

Apesar de Aldous Huxley ter escrito “que os homens não aprendem muito com as lições da História é a mais importante de todas as lições que a História tem para ensinar”, para alguma coisa o conhecimento da História nos servirá. E, nós europeus, temos uma História já tão longa que nunca a podemos perder de vista nas nossas opções.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Fevereiro de 2025

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Alterar a “Lei dos Solos” à boleia da falta de habitação

 

Se há característica (diria defeito) que é geralmente atribuída aos portugueses é a sua incapacidade de planeamento. No que diz respeito à ocupação do território, isso é particularmente evidente.

Tal deve-se a diversos factores, mas sobretudo à falta crónica de ordenamento do território durante muitas dezenas de anos, sobretudo a partir da década de 60 do século XX, quando o desenvolvimento do país se começou a acentuar. Como, por essa altura, se inventou a figura do loteamento sem que antes ou simultaneamente se desenvolvessem planos de urbanização, o desastre urbanístico espalhou-se pelo território nacional.

A situação atingiu tais proporções que o poder político nacional não teve outro remédio, na passagem dos anos 80 para os anos 90, senão obrigar os municípios a adoptar um instrumento de planeamento do território mínimo, os chamados Planos Directores Municipais (PDM’s). Digo obrigar com toda a propriedade, porque o Governo de então teve de ameaçar os municípios que não tivessem PDM aprovado até uma determinada data com corte das transferências financeiras do Estado

Nos PDM’s preveem-se determinadas áreas de protecção onde não se deve construir, como Reserva Agrícola ou Reserva Ecológica. Essas áreas são determinadas tecnicamente e não politicamente e percebe-se porquê: entre outras situações, todos nos lembramos daquelas tragédias em que habitações legais são destruídas porque construídas em zonas de cheia ou mesmo junto a rios e ribeiras, quando há chuvas mais fortes, tantas vezes com perda de vidas.

Recentemente o Governo publicou um Dec. Lei, entretanto entrado em vigor dado que a AR deliberou pela sua não revogação, que permite lotear solos rústicos, transformando-os em urbanos, onde portanto se poderá construir. O motivo apontado para esta alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial a que se tem chamado “nova lei dos solos” é a necessidade de responder à gritante falta de habitação.

Embora se justifique com motivos, à primeira vista racionais, trata-se de um ataque ao planeamento do território que, daqui a uns anos será apontado como outro erro urbanístico como tantos do passado recente e já nada haverá a fazer. Na realidade, a área em que já é autorizado construir é mais que suficiente e o argumento do preço também não colhe: estamos num mercado livre e aberto e nada impede a valorização dos terrenos com utilização entretanto alterada. Acresce que serão necessárias mais infraestruturas que irão onerar permanentemente as despesas correntes dos municípios.

Se há, como se percebe, um problema de oferta de habitação em certas zonas do país, em particular as áreas metropolitanas, que o Estado o assuma e encontre soluções fortes e capazes e não remendos que comprometem as gerações futuras e a sustentabilidade urbana. Como, por exemplo, adoptar a figura da “expropriação sistemática” que permitiu há décadas o desenvolvimento de Lisboa de uma forma que ainda hoje é um exemplo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Fevereiro de 2025

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Do mal absoluto

Assinalou-se na semana passada o Dia Internacional das Vítimas do Holocausto com uma cerimónia no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau em que participaram alguns dos últimos sobreviventes, já que a libertação do campo pelo exército soviético ocorreu há oitenta anos. Dos cerca de seis milhões de judeus vítimas do nazismo, estima-se que mais de um milhão foram assassinados em Aushwitz.

Devo dizer que nunca me atrevi a visitar nenhum dos campos de concentração nazis, embora tenha amigos próximos que o fizeram e comigo partilharam a extrema impressão que lhes causou essa visita. Talvez por isso mesmo nunca o tenha feito até porque, sendo português e beirão, sei perfeitamente que alguma ascendência judaica certamente terei.

Já por várias vezes abordei o nazismo, as suas origens, a sua ideologia e as trágicas consequências para a humanidade que daí vieram. Não é fácil entender como seres humanos levaram a cabo tais barbaridades, só tendo uma classificação para tal, como sendo o “mal absoluto”, que chega a não ter explicação. A filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt debruçou-se sobre esta questão tendo aventado uma explicação algo perturbadora e mesmo assustadora para o que se passou na Alemanha nos anos 30 e 40 durante o nazismo. Ao acompanhar o julgamento de Eichmann, Hannah Arendt concluiu que, em determinadas condições de massificação social, as pessoas comuns podem desenvolver uma indiferença moral que lhes permite fazer coisas em obediência a ordens, que em condições normais achariam impensáveis, quanto mais realizáveis por elas próprias. Daí a sua expressão “a banalidade do mal”, que se tornou célebre, mas que a própria comunidade judaica teve dificuldade em aceitar, por se poder confundir com uma desculpabilização do mal praticado e consequente desresponsabilização dos perpetradores da barbaridade que se conhece

O Holocausto deve ser sistematicamente recordado, porque o que sai da memória pode ser facilmente apagado da História. E é evidente o regresso e difusão do antissemitismo, havendo mesmo muitas pessoas que negam a existência do Holocausto. Bem andou o Gen. Eisenhower quando organizou uma visita ao campo de concentração de Gotha. Além de chamar jornalistas e fotógrafos para reportarem ao mundo inteiro a realidade dos campos de concentração nazis, obrigou os civis alemães moradores dos arredores a testemunharem com os seus próprios olhos o que o regime alemão ali tinha feito. Como explicação para obrigar a ver, cheirar e ouvir testemunhos vívidos, Eisenhower afirmou ter a certeza de que, dentro de poucos anos, haveria muita gente a negar que aquele horror tivesse realmente acontecido. E, como se vê hoje, tinha inteira razão.

Quer se concorde ou não com a tese de Arendt parece ser certo que a existência de determinadas circunstâncias sociais que promovem o medo generalizado condiciona gravemente as escolhas pessoais que envolvam algum risco imediato. Daí a obedecer cegamente a ordens ilegítimas e imorais vai um passo que, demasiadas vezes, se verifica ser fácil de dar.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  3 de Fevereiro de 2025

 

Reféns, Sr. Presidente? A sério?

 No meio das centenas de “ordens executivas” que equivalem a decretos presidenciais e que foram a marca da sua tomada de posse, o novo Presidente dos EUA assinou um decreto a perdoar pessoas condenadas em tribunal pelo ataque de 6 de Janeiro de 2021 ao Capitólio. Como justificação, adiantou que essas pessoas, a quem chamou reféns, apenas protestavam contra a suposta viciação das eleições presidenciais de 2020, nas quais Trump perdeu contra Biden. Recordo que em todos os Estados na altura referenciados por Trump como locais de batota nos resultados se concluiu judicialmente não ter ocorrido nada disso, tendo as eleições sido limpas. E, no entanto, o novo Presidente americano continua a usar esse argumento, agora para libertar os criminosos que fizeram o que todos nós assistimos em directo pela TV durante horas: um assalto violento ao Capitólio, destruindo o que lhes apeteceu, agredindo polícias e quem se lhes opusesse e provocando mesmo várias mortes.

Acredito que, no meio dos múltiplos decretos presidenciais, esta ordem tenha passado relativamente despercebida e mesmo tida como irrelevante perante a importância política, social e económica de todo o pacote que corresponde a um verdadeiro comportamento disruptivo para com o passado recente. Mas esta decisão, só por si, basta para definir por completo a personalidade do novo. Expõe o entendimento de que está autorizado a exercer o poder para praticar tudo o que lhe parecer defender os seus interesses.

Não vou abordar os temas de política exclusivamente interna dos EUA, já que Donald Trump ganhou as eleições de forma absoluta e tem, portanto, toda a legitimidade para aplicar as políticas que anunciou na sua campanha.

Mas, como europeu, há alguns aspectos que não posso deixar de abordar. Desde logo, Trump mostrou, no seu discurso, que a Europa é para si uma inexistência, ao não se lhe referir uma única vez. Anunciou ainda o estabelecimento de tarifas sobre os produtos europeus exportados para os EUA, queixando-se de que os europeus não compram os carros americanos, enquanto os carros europeus são bem vendidos na América. Como ele muito bem sabe, sendo empresário, ninguém é obrigado a comprar algo mau tendo ao lado uma boa alternativa e isso é a base da economia de mercado que promove a inovação e a qualidade. As tarifas têm o resultado contrário ao que ele anuncia como sendo garantido. E quem pagará tudo isso serão os consumidores americanos.

No meio de tudo isto há, no entanto, várias conclusões a tirar e com consequências sérias para os europeus, que não podem ser escamoteadas pelos nossos responsáveis políticos. A sociedade liberal, como a conhecíamos, vai ser colocada seriamente em causa e desta vez não é pelos seus velhos inimigos, os comunistas. A Europa vai deixar de ter o guarda-chuva americano na defesa e vai ter de olhar para o resto do mundo de forma adulta e responsável. E vai ter de se organizar, já não como uma super-burocracia, mas como uma entidade autónoma e responsável, política, económica e militarmente.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Janeiro de 2025

domingo, 26 de janeiro de 2025

Saúde em Coimbra

 

Terminado o primeiro milhar de crónicas desta série, dê-se continuidade à sequência, que novo milhar não será, de certeza. E não deverá haver melhor forma de o fazer do que dedicando estas linhas à nossa cidade, de forma independente e liberdade de opinião, que a tal obriga o respeito pelos leitores.

Para quem, há muitos anos, segue com alguma atenção a evolução da nossa cidade nos mais diversos aspectos, é evidente haver uma área cuja importância local ultrapassa a sua natureza intrínseca, reflectindo-se em vários outros sectores. Refiro-me à área da Saúde, nomeadamente às diversas instalações do sector pública/SNS em Coimbra. Para se ter uma ideia da sua importância local, e de acordo com a informação disponibilizada no seu site, das oito unidades hospitalares da ULS Coimbra, seis localizam-se na nossa cidade. A ULS de Coimbra tem mais de 10.000 trabalhadores, incluindo mais de 2.200 médicos e 3.700 enfermeiros, entre muitos outros profissionais de saúde. O número de laboratórios de investigação clínica avançada é igualmente muito importante, sendo que um cada dez médicos especialistas é doutorado. Para além da oferta do SNS, existem em Coimbra vários hospitais privados que, na sua maioria, vieram substituir as antigas clínicas e consultórios médicos.

Como é fácil de perceber, num concelho com cerca de 150 mil habitantes, a importância de um sector desta dimensão é crucial, com implicações a montante e a jusante no emprego, mobilidade e economia em geral. Juntamente com o ensino superior universitário e politécnico a Saúde é, de facto, uma das áreas críticas para a sustentabilidade de Coimbra.

Por todas estas razões, as recentes afirmações do responsável máximo pela ULS de Coimbra acerca de eventuais ameaças ao hospital universitário ou à ULS de Coimbra não puderam deixar de trazer perplexidade e preocupação. A acusação de «triste sina a de uma entidade pública que está refém de interesses particulares em detrimento do interesse da comunidade», acrescentando ainda a “dualidade do biscate no serviço público e o foco no consultório privado” é suficientemente clara e grave para não ter consequências, até por vir de quem vem. De facto, em primeiro lugar, cabe a quem gere evitar e mesmo impedir as tais situações de biscate nos hospitais. Aliás, a denúncia de situações destas deixa-nos a todos com os cabelos em pé: o SNS é tão importante e significa uma tão grande parte dos nossos impostos que as torna absolutamente inaceitáveis. Por outro lado, não se vê como os antigos HUC poderão deixar de ser hospital universitário, ao lado do S. Maria em Lisboa e do S. João no Porto, constituídos em Centros Académicos e Clínicos. Até porque, anualmente, mais de mil alunos do mestrado integrado de medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra recebem formação clínica na ULS de Coimbra.

Mas que algo de estranho se passará na ULS de Coimbra, isso parece ser evidente. E a importância das instituições do SNS em Coimbra é tão grande para a cidade que se espera que Autarquia, Universidade e ULS deem as mãos no interesse de Coimbra, também no que toca da defesa do Ensino Clínico superior.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Janeiro de 2025