A Mesa de Lisboa do
Santo Ofício condenou em 15 de Fevereiro de 1820 uma mulher de Leiria a
reconhecer e pedir perdão por escrito pelas suas faltas de fé que tinha
transmitido em confissão ao sacerdote o qual, como tantas vezes aconteceu, a denunciou
à Inquisição. Terá sido esta a última sentença ditada pela Inquisição, em
Portugal. Por sua vez, a última condenação por judaísmo tinha acontecido em
Abril de 1805. Nesse mesmo ano um padre foi condenado por ateísmo. Em 1773
ocorreu em Goa o que foi provavelmente o último auto da fé da Inquisição
portuguesa em que dois homens e uma mulher foram condenados à morte por
gentilidade.
A 31 de Março de 1821, passaram agora duzentos
anos, na sequência da revolução liberal as Cortes Constituintes aprovaram o
decreto que extinguia finalmente a Inquisição, tendo Manuel Fernandes Tomás
considerado que a razão para a extinção se devia a «ser incompatível com um
país de homens livres». Com alguma ironia histórica a proposta para a extinção
deveu-se ao deputado Francisco Simões Margiocchi que em 1797, enquanto
estudante de Coimbra, havia sido denunciado ao Santo Ofício pelo intendente
Pina Manique, por partilhar escritos contra a Inquisição.
A Inquisição tinha-se estabelecido em Portugal
285 anos antes, em 1536, pela mão do rei D. João III, promulgada pelo Papa
Paulo III depois de tentativas falhadas nesse sentido durante algumas dezenas
de anos. A Inquisição tinha sido fundada em Espanha em 1478, país de onde os
judeus começaram por ser expulsos, tendo muitos deles vindo para Portugal. A
vontade do rei D. Manuel de desposar a Infanta D. Isabel filha dos Reis
Católicos levou-o a pedir a instituição da Inquisição em Portugal, embora tal
só tenha vindo a suceder durante o reinado do sucessor. Mas foi ainda durante o
reinado de D. Manuel que a primeira perseguição aos judeus começou a sério em
Portugal quando em Abril de 1506 foram massacrados em Lisboa centenas de judeus
convertidos na chamada «matança da Páscoa». O ambiente estava criado e nem a
reacção de D. Manuel ordenando a execução dos três frades que tinham dado
início à violência popular acalmou os ímpetos anti-judaicos.
A verdade é que os efeitos do novo Tribunal do
Santo Ofício que agregava interesses da coroa e religiosos fizeram-se sentir
logo muito rapidamente depois da sua criação. O primeiro auto da fé da história
da Inquisição portuguesa ocorreu logo em 1540 em Lisboa, sendo executados dois
homens. Em 1537 a Universidade foi definitivamente transferida para Coimbra e quando
em 1541foi criado o tribunal da Inquisição em Coimbra, o reitor da Universidade,
o frade dominicano Bernardo da Cruz, foi nomeado presidente da mesa, no que
constituiu o início de uma longa e profunda colaboração entre as duas
entidades.
Além das mesas distribuídas pelo território, em
Évora (a primeira), Lisboa, Coimbra, Lamego e Porto, a Inquisição passou a ter na
década de 60 do século XVI, sob a direcção do cardeal Infante D. Henrique irmão
de D. João III, uma intrincada rede por todo o país, constituída pelos
«familiares» leigos do Santo Ofício que gozavam de vários privilégios pela sua
actividade e ainda os clérigos designados por comissários que representavam
localmente o tribunal.
Durante os 285 anos da sua existência a
Inquisição portuguesa sentenciou um total de mais de 45.300 processos, dos
quais 10.388 em Coimbra. Das quase 30.000 pessoas condenadas, terão sido
queimadas vivas cerca de 1.175.
As mentiras e falsas acusações provocadas por
invejas e inimizades pessoais encontraram terreno fértil com a Inquisição em
que a defesa dos acusados era praticamente impossível. O caso de Damião de Góis
será paradigmático. Figura maior do renascimento português, conviveu de perto
com Erasmo, foi embaixador de D. João III e escreveu a crónica de D. Manuel I.
Pois, mesmo assim, foi vítima de denúncia e acabou preso para toda a vida,
abandonado em condições miseráveis que lhe afectaram gravemente a saúde e lhe
ditaram a morte. Saliento este caso, porque é demonstrativo de como mesmo a
cultura e a inteligência de pouco valiam perante acusações falsas e caluniosas,
misturando invejas, inimizades, interesses políticos e outros.
Penso ser pacífico supor que uma duração de
quase três séculos de um ambiente social corroído pelo medo, pela traição e
pela delação não sucedeu sem que tal tivesse consequências profundas e
persistentes na nossa sociedade e mesmo numa certa maneira de estar e ser dos
portugueses. Suspeito mesmo que ainda hoje se poderão detectar entre nós traços
de alguma submissão acompanhada de inveja e matreirice que ajudam a que não nos
afirmemos como podíamos e devíamos no mundo. Tal como é perfeitamente visível
que, mesmo em ambientes com alguma religiosidade, é raro que algum
anti-clericalismo deixe de estar presente.
Lembrar o que foi a Inquisição entre nós é importante, não só para
conhecermos a História de Portugal, mas também para melhor entendermos o que
somos hoje. Recomendo vivamente a leitura da «História da Inquisição
Portuguesa» da autoria de José Pedro Paiva (Universidade de Coimbra) e Giuseppe
Marcocci onde colhi algumas preciosas, e provadamente correctas, informações
sobre a acção do Santo Ofício no nosso país.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra, em 5 de Abril de 2021
Imagens recolhidas na internet