segunda-feira, 17 de novembro de 2025

“BRANDOS” COSTUMES do sec. XIX

 

Portugal é um país muito antigo. Tal significa uma unidade territorial ao longo do tempo, mas também do seu povo e suas características. E, se há alguma delas que é possível de verificar com constância durante os séculos é que se à superfície parecemos muito pacíficos, na realidade há sempre alguma violência à espera de surgir. O mito do “povo de brandos costumes” não passa disso mesmo, um mito que pode servir os interesses de alguém quando lhe interessa. Mesmo na actualidade isso é verdade, aconselho a leitura dos romances de Rómulo de Carvalho para o perceber.

O sec. XX português foi muito consequência do que se passou no seculo anterior, nomeadamente no que respeita ao enormíssimo atraso social e económico com que começou. O trágico fim da Monarquia e tudo o que se passou nas primeiras décadas da República, de que a célebre “formiga branca” ficou como símbolo, são a cabal demonstração do que acima fica dito quanto a violência.

O sec. XIX português começou com as Invasões Francesas. A forma como Portugal reagiu foi impressionante, principalmente no que diz respeito à actuação do povo ao longo dos percursos das tropas francesas. Os habitantes das aldeias não tinham qualquer hipótese contra os treinados militares franceses de forma que adoptaram a guerrilha como forma de resistência. Mas a forma como o fizeram foi de uma violência para além de tudo o que podemos imaginar, o que aliás deixava os generais franceses furiosos reagindo com grande brutalidade na qual se distinguiu o Gen. Loison, o famoso “maneta”.

Às Invasões Francesas seguiu-se a guerra civil entre liberais e absolutistas. Nem é necessário descrever aqui a hecatombe de desespero e sofrimento que essa guerra trouxe a Portugal, ainda destruído em grande parte pelas Invasões Francesas. A violenta luta fratricida entre liberais e miguelistas teve, finalmente, o seu fim com a assinatura da Convenção de Évora-Monte em Maio de 1834 que ditou a derrota dos absolutistas e a saída para o exílio de D. Miguel. Contudo, os exércitos constituídos em boa parte por grupos de civis armados designados por “corpos auxiliares” não desarmaram por completo depois de assinada a paz. Ainda em 1846 se verificaria a Revolta da Maria da Fonte e a Guerra da Patuleia entre 1846 e 1847. Depois da Convenção os exércitos teoricamente desfeitos deram origem a bandos armados que se dedicaram a aterrorizar as populações do interior do país, especialmente nas Beiras, assaltando e matando pessoas com o maior dos à-vontades.

Lembro-me bem da minha Avó do concelho da Covilhã me contar as histórias que tinha ouvido em criança sobre as actividades do Zé do Telhado e do João Brandão que aterrorizaram as populações durante anos. João Brandão que, depois da guerra civil, chegou a ser nomeado pelo Governador Civil de Coimbra sob ordens do Governo, para acções policiais num território onde era mais conhecido como “terror da Beira”, usando esse poder para praticar mais uns tantos assassinatos.

Para que os “brandos costumes” não sejam um mito, importante é que a organização social e política seja capaz de evitar que o contrário seja a norma.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Novembro 2025 

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

SOBREVIVER NA SOCIEDADE MODERNA

 

A circunstância de ter vivido quase toda a segunda metade do sec. XX e este primeiro quarto do sec. XXI proporcionou-me experienciar aquela que penso ser uma era única na História da humanidade. Desde logo, pela revolução tecnológica.

Quando prestei serviço na Marinha ainda tive de aprender a “tirar o ponto” pela posição dos astros usando o sextante e consultando as tabelas do almirantado: ainda não havia GPS, algo que hoje todos nós usamos diariamente para nos localizarmos geograficamente com uma precisão incrível. O telefone era um aparelho que se tinha no corredor à entrada da casa: nada a ver com os computadores de bolso a que chamamos telemóvel com que falamos para qualquer parte do mundo com som e imagem. Dizem que dentro de pouco tempo, ao atendermos o telefone falaremos com uma imagem halográfica a 3D de quem fala connosco. Quando comecei a trabalhar, para comunicar textos à distância havia uma coisa chamada telex; pouco tempo depois chegou o revolucionário fax a que sucedeu o fantástico e.mail de hoje.

Já há algum tempo que, de forma ainda subterrânea, somos acompanhados e mesmo dirigidos pela IA (inteligência artificial) que hoje surge à luz do dia como o futuro dos nossos relacionamentos e mesmo organização do trabalho. Se o leitor pensa que o Chatgpt é o máximo, experimente elaborar um relatório com o Perplexity AI.

Poder-se-ia pensar que todas estas ferramentas nos tornariam a vida mais fácil e simples. Nada de mais errado. São evidentes as vantagens do actual desenvolvimento tecnológico ao nosso dispor pessoal. Mas a dependência da internet e, em particular, das redes sociais está a tornar-se uma pandemia com consequências no desenvolvimento pessoal a partir das mais tenras idades, no relacionamento inter-pessoal e numa falta cada vez maior de espaços de liberdade.

A vida profissional atinge hoje níveis de exigência que eu próprio não cheguei a conhecer, mas de que tomo conhecimento com grande preocupação. A determinados níveis profissionais a tecnologia elimina horários de trabalho, condiciona as horas livres diárias, de fim de semana e mesmo de férias. A nova possibilidade de encontrar soluções rápidas e eficazes para as questões profissionais conduz a uma exigência crescente numa necessidade de inclusão cada vez maior. O que leva a que o necessário descanso fique para trás, quando não deixa mesmo de existir, com consequências pessoais inevitáveis. Os sinais de exaustão vão surgindo, o próprio corpo vai emitindo sinais, mas o ritmo que se atingiu é muito difícil de se abandonar e o próprio abrandamento aparece como uma falha pessoal.

Nos últimos dias tive dois exemplos concretos de pessoas que sentiram chegar ao limite antes do burnout e que tornaram público este problema dos nossos dias. A pianista Maria João Pires anunciou ter terminado a sua carreira notável e excepcional. A outra tocou-me pessoalmente de uma forma muito forte, dado que se passou com alguém muito próximo. Que, de forma muito corajosa e como aviso, tornou pública a sua experiência em https://observador.pt/opiniao/burnout-da-arte-de-errar/.

 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 Novembro 2025 

 

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

OS PARTIDOS E O REGIME

 

O regime democrático pressupõe a possibilidade de afirmação de diversas visões do mundo e consequentes propostas para a gestão da coisa pública, aos diversos níveis. Em conjugação com a liberdade de associação, surgem assim os partidos que agregam cidadãos que partilham essas visões. Desde a Assembleia Nacional Constituinte durante a Revolução Francesa que se tornou tradição classificar os partidos entre esquerda e direita, que foi assim que os então jacobinos e girondinos se sentaram naquela assembleia.

A existência das diversas opções veiculadas pelos partidos que concorrem entre si em liberdade é mesmo uma das diferenças fundamentais da democracia relativamente às ditaduras. Mesmo quando estas têm aquilo a chamam “partido”, basta este ser único para que os cidadãos não o sejam verdadeiramente, porque não têm liberdade para se associar e sujeitar as suas opções à vontade popular.

No início do regime democrático formaram-se vários partidos de acordo com as suas opções ideológicas, então dentro dos limites definidos pelos militares do MFA, já que as novas instituições civis ainda não estavam constituídas. Da oposição ilegal ao anterior regime vieram o PCP e o PS e da sociedade civil surgiram o PPD e o CDS. Havia ainda alguns (bastantes) partidos de extrema-esquerda trotskista mas que nunca se afirmaram verdadeiramente do ponto de vista eleitoral.

As circunstâncias do corte socio-político desse momento ditaram que os dirigentes partidários de então se tivessem todos formado quer politica, quer profissionalmente durante o regime anterior, o que significou uma capacidade de afirmação e mesmo de luta que os tornava de excepcional qualidade. Olhando à distância de 50 anos impressiona que o país tenha tido Sá Carneiro, Álvaro Cunhal, Mário Soares, Salgado Zenha, Freitas do Amaral ou Amaro da Costa todos em simultâneo na cena política.

Ninguém espera que um escol deste calibre esteja permanentemente à frente dos partidos. Mas cair no oposto também não é aceitável. O que se verifica é que, ao longos das últimas décadas, os dirigentes partidários têm surgido de dentro das máquinas partidárias, sem que tenham tido antes uma vida profissional ou cultural, o que quer que lhes transmitisse uma mundividência minimamente aceitável.

Pelas mais diversas razões as elites do país, que as há e de grande relevo, ou não são atraídas pela política ou são mesmo segregadas pela mediocridade que sempre existe em todas as instituições e os partidos não são excepção.

Se em tantas áreas temos gente de superior qualidade, porque é que isto sucede na política, que deveria ser a mais nobre das actividades, por tratar do bem comum e definir decisivamente o futuro colectivo?

São os partidos que se devem regenerar por dentro abandonando práticas que minam a democracia interna. E estabelecerem critérios de exigência ética que evitem situações que vergonham toda uma geração como a que assistimos hoje em Tribunal com um ex-primeiro ministro. Enquanto isso não suceder, o país assistirá à degradação da política, deixando o terreno livre aos mais diversos populismos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Novembro de 2025