sábado, 5 de julho de 2025

SOBRE “RAÇAS PURAS”

 

Quando ouço falar em manter a “portugalidade” ou defender as nossas características únicas (e, eventualmente, superiores) não posso deixar de me lembrar do significado histórico dessas posições. As justificações imediatas para essas atitudes têm variado ao longo dos tempos, conforme as circunstâncias, mas nos nossos dias apelam à ignorância e muitas vezes à chamada à superfície de medos ancestrais há muito enterrados na evolução da ciência.

Há pouco menos de cem anos o partido nazi utilizou documentações falsas como os “Protocolos dos Sábios de Sião”, para além de pretensas características próprias dos judeus para levar a cabo perseguições rácicas que terminaram com o extermínio de seis milhões de homens, mulheres e crianças. Para além dos judeus, pessoas com deficiências físicas ou problemas mentais ou mesmo homossexuais foram motivo das mais abjectas perseguições e experiências com o fim de proteger uma assim chamada raça ariana, tida como superior. Infelizmente, a eugenia prolongou-se ainda durante anos depois da guerra em diversos países do mundo.

Os portugueses devem ter consciência do que sucedeu no nosso país no início do sec. XVI. Depois de séculos em que judeus e mouros viveram em paz e completa harmonia social em Portugal, o casamento do Rei D. Manuel com Isabel, a filha dos Reis Católicos de Espanha, marcou uma mudança significativa. Contrariando a anterior tradição de tolerância religiosa, o Monarca aceitou as exigências dos Reis Católicos para a “purificação” de Portugal através da expulsão dos infiéis (mouros e judeus) como já sucedia em Castela. Nasceram aí os chamados “cristãos-novos”, infame e hipócrita invenção que viria ter trágicos resultados. De facto, em 1506 cerca de 2.000 “cristãos-novos foram vítimas de um massacre em Lisboa, acusados de trazerem a peste negra. Para piorar a situação, D. João III viria a pedir ao Papa a introdução da Inquisição, o que sucedeu em 1536 originando a emigração de muitos judeus portugueses que formaram comunidades sefarditas desde Veneza a Nova Iorque, passando por Amesterdão, Antuérpia e muitas outras cidades em países mais tolerantes.

A origem e as migrações do “homem moderno” de quem TODOS nós descendemos têm sido objecto de estudo e de actualizações nos últimos anos à medida que vão sendo descobertos novos restos humanos cada vez mais antigos e ainda pelo desenvolvimento da ciência da Genética. Algo que parece seguro é que a espécie humana terá tido origem comum no Leste de África.

O território que é hoje Portugal foi recebendo populações vindas do continente europeu desde o Neolítico há cerca de 7.000 anos que trouxeram a agricultura, com todas as consequências civilizacionais daí decorrentes. Vários povos antigos habitaram na península como os Lusitanos ou os Iberos. Mas muitos outros povos passaram por cá, sendo já bem documentados os fenícios, romanos, os chamados “bárbaros” celtas e os Árabes.

Os portugueses são o resultado de toda esta miscelânea, a que se vieram juntar os escravos trazidos por romanos, mouros e depois na altura dos Descobrimentos. De notar que a frequência de linhagens subsarianas atinge no Norte de Portugal o valor de 3%, mas no Centro de 6% e no Sul de 11%. A escravatura existiu desde 1444 quando os primeiros escravos negros foram desembarcados em Lagos, até ao sec. XVIII quando Portugal a aboliu na Metrópole. A Genética mostra-nos de que forma a variedade de povos foi introduzindo as suas características no que é o nosso actual património genético.

Perante este enquadramento histórico é, no mínimo, estranho que apareça quem queira defender uma denominada “portugalidade” contra a entrada de imigrantes que vêm procurar uma vida digna que não conseguem nos seus países de origem. Muito para além da economia, dos valores éticos e da simples bondade, o conhecimento da nossa História deveria orientar a forma com recebemos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  30 de Junho de 2025

segunda-feira, 23 de junho de 2025

POBREZA QUE NOS ENVERGONHA

 A publicação anual do relatório sobre “POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL EM PORTUGAL” devia ser de leitura obrigatória a todos os que de alguma forma ocupam o espaço público para falar dos problemas estruturais do nosso país. Assim se livrariam os portugueses de afirmações demagógicas e populistas, já que não há como conhecer a realidade dos números concretos para se debaterem estes assuntos.

Portugal tem evoluído nesta matéria, sendo hoje a situação melhor do que há uns anos. Contudo, ainda ficamos muito mal nas comparações com os nossos parceiros da União Europeia, havendo um longo caminho a trilhar. Uma certeza me parece evidente: só o crescimento económico sustentado poderá criar condições para a erradicação deste flagelo, que muitos consideram endémico, da pobreza em Portugal.

Olhando para os números do Relatório 2024 agora publicado, que se refere à situação no ano imediatamente anterior, um valor geral chama desde logo a atenção: em Portugal “a taxa de risco de pobreza ou exclusão social situa-se nos 20,1%, correspondendo a 2,1 milhões de pessoas” não se verificando uma alteração significativa relativamente ao ano anterior, ainda assim com um aumento de 20.000 pessoas nessa situação.

Para se perceber melhor o significado do que estou a falar, devo indicar ainda o que é a taxa de risco de pobreza ou pobreza monetária: “corresponde à proporção de pessoas com rendimentos monetários líquidos por adulto equivalente inferiores a 7.095€ euros/ano ou 591€ euros/mês”. Esta taxa é calculada a partir da definição anual da linha de pobreza, ou seja, da população cujo rendimento monetário é inferior a 60% do rendimento mediano disponível, após transferências sociais. Pois, em Portugal, essa taxa é de 17%, número aterrador que significa quase 1,8 milhões de pessoas nessa situação, tendo-se verificado um aumento de 85 mil pessoas relativamente ao ano anterior. Note-se que esta taxa de risco de pobreza se verifica após as transferências sociais pelo que, não contando com todas essas transferências do Estado, o seu valor cresceria para 21,2%.

A análise dos grupos sociais indica-nos que, em primeiro lugar, surgem as situações de desemprego que são quase 60%, seguidas pelos arrendatários com renda reduzida, as pessoas fora do mercado de trabalho, as famílias monoparentais com crianças dependentes, as famílias unipessoais com mais de 65 anos e, finalmente, a população estrangeira de nacionalidade extracomunitária que representa 28,6%.

Globalmente 4,9% da população portuguesa vive em situação de privação material e social severa.

Tendo neste momento responsabilidades de Direcção no Banco Alimentar Contra a Fome de Coimbra não posso deixar de acrescentar que esta situação de pobreza em Portugal tem ainda outra consequência: muitos portugueses têm dificuldade em colocar na mesa a comida necessária para toda a família, assim como prescindem de comprar medicamentos. Tal como muitos imigrantes que trouxeram família se veem aflitos para alimentar os filhos com os magros salários e as despesas com alojamento, sendo tão merecedores da nossa atenção como os portugueses na mesma situação.

Não posso deixar de referir um aspecto positivo na evolução deste problema da pobreza em Portugal, dado que a nossa redução da taxa de pobreza foi o dobro da média europeia, situando-nos actualmente abaixo da média europeia que é de 21,3%, contra os nossos 20,1%.

Os resultados das campanhas de recolha de alimentos dos Bancos Alimentares provam que os portugueses estão bem conscientes deste problema e estão solidários com os quase 1,8 milhões de concidadãos em situação de pobreza. Mas não é suficiente. Portugal tem tem de criar riqueza suficiente para que a situação de pobreza de tantas pessoas, que nos devia envergonhar a todos, seja reduzida a um nível mais aceitável e passível de solução através das prestações sociais.

 Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 de Junho de 2025

segunda-feira, 9 de junho de 2025

FROM RUSSIA... WITH WAR

 

Dentro de poucas semanas passam três anos e meio sobre a brutal invasão russa da Ucrânia. O insucesso da tentativa de conquista imediata da capital ucraniana devido à heroica e inesperada resistência do país invadido levou a uma guerra que ainda hoje perdura. Para justificar o ataque à Ucrânia Vladimir Putin usou argumentos que parece terem sido integralmente tirados do arsenal de mentiras de que Hitler se socorreu para iniciar a II Guerra Mundial. Basicamente, a invasão russa seria necessária atendendo aos perigos que se abateriam sobre a Rússia por causa da vontade ucraniana de integrar a União Europeia e a NATO. Como se estas instituições constituíssem algum perigo para a Rússia para além de, num caso mostrarem a falência da economia russa sob Putin e, no outro, de garantir definitivamente a segurança ucraniana face a qualquer ataque de outro país incluindo, claro, a Rússia.

Na realidade, a Federação Russa pretende reconstruir o império fundado por Pedro I a partir de 1721 que teve o seu fim com a Revolução Russa em 1917. Império que, sob outra capa designada URSS, foi ainda ampliado depois da II Guerra Mundial com a formação do pacto de Varsóvia que, como Churchill previu no seu famoso discurso de 1946 em Fulton no Missouri, dividiu a Europa com uma “cortina de ferro” desde Stetin no Báltico até Trieste no Adriático. Putin tem afirmado repetidamente que o fim da URSS foi a maior tragédia sofrida pela Rússia no sec. XX, demonstrando não ter qualquer respeito pelos tratados internacionais que se seguiram à dissolução da URSS e formação dos novos países que assim conseguiram a sua independência. É por isso que o sucesso russo na Ucrânia significaria de imediato o mesmo procedimento para com os países bálticos, pelo menos, que Putin considera como sendo historicamente parte da Rússia.

Putin tem um óbvio fascínio pelo passado russo que considera grandioso, incluindo o infame período da União Soviética simbolizado pela liderança de Estaline. Não é por acaso que, nos últimos tempos tem erigido novas estátuas ao “paizinho dos povos”, enquanto vai anulando as referências às perseguições políticas desse tempo, tendo mesmo encerrado o ”museu do Gulag” com argumentos vagamente técnicos. Assim se tenta reescrever a História como Estaline fazia sistematicamente. Putin começou a sua vida profissional como oficial da polícia política soviética KGB tendo abandonado essa carreira com o fim da URSS. Talvez estes factos justifiquem de alguma maneira o evidente apoio que os comunistas portugueses dão a Putin; fariam talvez melhor imaginar que se em Portugal sucedesse o mesmo que na Rússia pós-comunista, teríamos hoje um antigo oficial da PIDE a governar-nos anos a fio depois de a Constituição ser alterada para acolher os mandatos que entendesse ter.

A nostalgia de Putin pelo passado comunista e pelo poder czarista, associada a um desprezo pela cultura e modo de vida ocidentais formam uma mistura explosiva que é ainda mais perigosa porque a Rússia herdou o poderio nuclear da época soviética.

A presidência americana de Donald Trump só veio acentuar este perigo porque o presidente americano se recusa em falar em invasão da Ucrânia referindo sempre “os dois países em guerra”, assim colocando Rússia e Ucrânia (invasor e invadido) no mesmo plano de responsabilidade. Um dia conheceremos a razão da evidente incapacidade de Trump se afirmar perante Putin.

A Europa parece ter finalmente acordado depois do recuo americano no apoio militar à Ucrânia. Perante um poder belicista apoiado por países ditatoriais como a Coreia do Norte e China, cabe a nós, europeus, tratar da nossa defesa. O que se passou há quase cem anos em que ingénuos líderes imaginaram que esse tipo de países se parava com conferências não pode voltar a suceder. Porque o resultado foi uma guerra horrorosa que só terminou depois da aniquilação da tirania e a morte de muitas dezenas de milhões de pessoas.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 9 de Junho de 2025 

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Mudanças eleitorais…e não só

 

No sábado anterior às recentes eleições, numa reunião de amigos, opinei ter a convicção (que não espectativa, entenda-se) de que, pelo andar da carruagem, o CHEGA deveria ultrapassar em breve o PS, afirmação que recebeu a discordância imediata de quem a ouviu. Na verdade, não me passava pela cabeça que isso viesse a acontecer logo no dia seguinte. E aconteceu: pela vontade popular, o CHEGA é agora o segundo partido do sistema político português, tendo elegido 60 deputados, portanto mais dez que nas eleições de 2024. O PS que tinha 78 deputados passou para 58 e a AD obteve mais 11, passando a ter 91. Sintomaticamente, o BE perdeu quatro deputados passando a uma representação simbólica de um lugar, enquanto o PCP/CDU continuou o seu lento definhar perdendo mais um lugar, mantendo apenas 3.

Trata-se de uma situação política completamente nova, tendo-se a ideia de que a comparação com o que aconteceu com o PRD, partido eanista dos anos oitenta, não tem sentido. Mas isso só será comprovado nas eleições autárquicas do próximo mês de Setembro. A AD, só por si, tem mais deputados que a esquerda toda junta, incluindo o Partido Socialista, mas isso só significa uma queda generalizada e forte da esquerda como não tinha acontecido antes. A sua percentagem de 31,8% não é de molde a embandeirar em arco porque está muito longe de uma maioria absoluta, embora disponha de mais 31 deputados que a segunda força do parlamento.

O PS liderado por Pedro Nuno Santos teve uma queda estrondosa que significa obviamente uma clara rejeição da sua proposta política pelo eleitorado. Nesta eleição perdeu mais de 370 mil votos, a acrescentar aos quase 490 mil perdidos em 2024, num total de 860 mil votos num ano e pouco de liderança política.

Quando foram anunciadas estas eleições escrevi nestas linhas que, no início do próximo ano Portugal será completamente diferente. Essa mudança, ditada pelas circunstâncias e pelas escolhas democráticas, já começou. Daqui a três meses teremos as eleições autárquicas, sendo previsível que o Chega ganhe diversas câmaras, essencialmente a sul do país, que ainda há bem pouco tempo era dominado pela esquerda. O PS terá aqui uma oportunidade decisiva para estancar a queda e tentar aguentar alguma da sua importância no nosso sistema político. Só isso justifica a substituição imediata da sua liderança, sem que faça uma verdadeira avaliação política do sucedido, a fim de entender as causas profundas da sua actual situação. E em pouco mais de seis meses teremos a eleição do novo Presidente da República. É para mim claro que estas substituições não são apenas de protagonistas antes significam uma alteração significativa que vem do fundo dos sentimentos e vontades dos portugueses, quer cada um de nós goste ou não.

E, agora, olhemos para Coimbra. O nosso círculo eleitoral foi daqueles em que menos cresceu o partido Chega que, embora crescendo, ficou em terceiro lugar com 18,4% contra a AD com 34,4% e o PS com 27,4%. Em consequência, a AD “roubou” um deputado ao PS, tendo obtido lugares e o PS dois, o mesmo número que o Chega. De notar que no distrito, o PS apenas foi maioritário no concelho de Soure, tendo a AD vencido em todos os outros.

Já no concelho de Coimbra, a atenção aos números tem o sal da proximidade das eleições autárquicas. Nesta eleição a AD teve 26.652 votos contra 26.916 nas últimas autárquicas. O PS teve agora 24.193 contra 21.312 e o Chega obteve 11.514 quando nas autárquicas tinha obtido 1.914. A Iniciativa Liberal e o Livre surgiram com cerca de 4.500 votos cada. Já o BE perdeu mais de 3.000 votos e a CDU perdeu 250.

Sabemos que se trata de eleições diferentes, mas a sua proximidade no tempo implica claramente que haja interpenetrações nas escolhas dos eleitores. Os números indicam que as eleições autárquicas em Coimbra não estão ainda decididas, longe disso, sendo apenas de prever, com segurança, que a CDU sairá do Executivo municipal enquanto o Chega entrará com alguma força. As implicações disso na vitória são ainda imprevisíveis. Dependerão muito da composição das listas, mas sobretudo da percepção dos eleitores sobre a capacidade relativa de recuperar alguma da antiga importância nacional e, sobretudo, do papel regional de Coimbra: deve ser capital regional ou apenas um dos polos da região?

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 2 de Junho de 2025