segunda-feira, 17 de março de 2025

Donald Trump no mundo

 Ainda não passaram dois meses sobre a tomada de posse de Donald Trump para o actual mandato de Presidente dos EUA, que é o seu segundo e o mundo como o conhecíamos parece já ter desaparecido. Ainda não podemos perceber bem como ficará, mas desde já podemos detectar as novas linhas de força de definição do futuro, que são de molde a não nos deixar muito tranquilos, antes pelo contrário.

Internamente, as questões da imigração preencheram as capas dos jornais, mas por pouco tempo. O que tem chamado mais a atenção nem tem sido propriamente Trump mas sim a quem ele deu enormes poderes para levar a cabo a sua política de contenção de despesas federais, ou seja, Elon Musk. A forma algo violenta como ele tem levado à prática as orientações do Presidente levanta muitas questões sobre a diferença entre a acção política e a gestão de empresas, principalmente quando estas se encaixam nas novas e gigantescas tecnológicas. Desde logo, a forma como estas empresas globais agem no mundo empresarial aproveitando toda a inovação científica das Universidades para gerar novos negócios a que praticamente ninguém consegue fugir e a forma, digamos fora da caixa, como tratam os seus recursos humanos sem respeito pelas regras habituais levantam muitas preocupações. Os empresários deste sector rapidamente chegaram á situação de homens mais ricos do mundo, sejam Musk da Tesla, a SpaceX e a X(ex-Twitter) ou Jeff Bezos da Amazon e da Blue Origin, entre outros. Para além dos enormes lucros gerados pelas suas empresas globais, muitos destes empreendedores receberam também milhares de milhões de dólares de dinheiro público nos EUA nos últimos anos em contratos com o Estado. É o caso de Elon Musk que, nos últimos 20 anos terá recebido 38 mil milhões de dólares do Estado americano. Introduzir um empresário deste calibre na governação é confundir interesses empresariais com políticos e só pode dar mau resultado. Está sempre presente o perigo do que podemos chamar “tecno-fascismo”. Não nos devemos esquecer dos exemplos históricos como Visconti mostrou de forma trágica no seu “Os Malditos”.

Já externamente, Donald Trump fez uma entrada que só se pode classificar como de partir a louça toda. Está a substituir um mundo de alianças que se estabilizaram depois da II Grande Guerra por um mundo que notoriamente deseja que seja tripolar incluindo os EUA, a China e a Rússia. Faz lembrar um pouco o mundo que existia há mais de cem anos, antes do eclodir da I Grande Guerra que, precisamente, acabou com os impérios que até então dividiam o mundo entre si. Claro que, de forma notória e mesmo ostensiva, Trump não conta com a Europa para a sua forma de ver a nova organização mundial. E é nesta perspectiva que se encontra explicação para toda a actividade de Trump a nível internacional.

Desde logo, a guerra na Ucrânia é um espinho nesta perspectiva, devendo ser-lhe dado um fim imediato, ainda que à custa da soberania daquele país. Os provocatórios comentários sobre a Groenlândia e sobre o Canadá como 51º Estado americano vão no mesmo sentido imperialista.

A política de tarifas à importação de produtos pelos EUA vai também nesta direcção de pretensa defesa da economia americana perante um mundo que ele vê como de exploradores do bem-estar americano. Trump já percebeu e reconheceu que, pelo menos no imediato, serão os consumidores americanos a pagar por essas tarifas implicando alguma inflacção e mesmo recessão. Mas o nacionalismo exacerbado e o desejo de dominar o comércio mundial levam à adopção, até agora errática, da política antiga e ultrapassada de tarifas.

No fundo, Donald Trump sabe que a China é o seu verdadeiro adversário pela sua dimensão e crescimento económico e militar dos últimos anos. Tudo o resto lhe servirá para aplainar o terreno e deixar a América a sós perante a China no futuro. O que não nos deverá deixar descansados.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Março de 2025

quinta-feira, 13 de março de 2025

CEGUEIRA


No Museu de Capodimonte, em Nápoles, Itália, é possível admirar-se uma tela da autoria de Pieter Bruegel, o Velho, pintada em 1568 chamada “A Parábola dos Cegos”.

A tela mostra um cego a guiar outros cegos, sendo o destino certo de todos eles a queda em qualquer vala ou mesmo abismo. Pretende representar uma parábola contada por Jesus Cristo que aparece no Evangelho de S. Mateus: “Deixai-os. São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala”. Trata-se de uma metáfora que, de forma evidente, demonstra o erro comum de seguir pessoas ignorantes de qualquer assunto, no fim ficando todos a perder.

Na actual situação política do país não é possível deixar de se lembrar o quadro de Bruegel, tal é a demonstração de incapacidade demonstrada pelos nossos dirigentes políticos.

Claro que a situação não é nova. Fazendo um resumo do destino dos nossos primeiro-ministros desde o fim dos governos de Cavaco Silva, último a cumprir integralmente todas as legislaturas para que foi eleito, tivemos sucessivamente: Guterres que se foi embora para fugir “ao pântano político”; Durão Barroso que saiu para a Comissão Europeia; Santana Lopes que foi mandado embora pelo Presidente Sampaio; Sócrates que saiu depois de chamar a Troica e a braços com o mais grave processo judicial da Democracia; A Passos Coelho que cumpriu a legislatura até ao fim, seguiu-se António Costa que se demitiu depois de episódios ainda hoje mal contados e acabou por ir para a União Europeia; agora vamos ter Montenegro que sai pela mal explicada questão da micro-empresa familiar pouco mais de um ano depois de iniciar funções.

Não deve haver ninguém que não consiga detectar traços comuns em todas estas situações que se referem a questões pessoais e não a políticas concretas da governação. Há um padrão que já parece mais estar a transformar-se em norma, pela cegueira dos líderes políticos podendo criar as condições para que seja a própria Democracia a ficar em causa. Até hoje a pertença à União Europeia tem servido de escudo, mas como se vê em cada vez mais países europeus, a Democracia pode muito facilmente ser destruída por dentro, através de eleições.

De qualquer forma em todas estas situações é o país que fica a perder com a quebra de credibilidade dos políticos, mais parecendo que o país vive apesar da política.

Nestes dias é claramente perceptível que boa parte dos líderes partidários tremem com medo das eleições. Esquecem-se de que, como alguém disse antes, “em democracia, líder que tem medo de eleições ou não é democrata, ou não é líder”. A gestão sôfrega da questão da empresa da família do primeiro-Ministro que foi muito mal conduzida por este acabou por ter consequências não desejadas por nenhum líder da oposição, excepto Ventura que assim viu a oportunidade de fazer esquecer os casos que atormentaram o Chega nos últimos meses.

A moção de confiança amanhã votada pelo Parlamento, que muito provavelmente será rejeitada, implica eleições a muito curto prazo. Ou muito me engano, ou o Parlamento que delas sair terá alterações muito significativas e trará muitos amargos de boca a alguns partidos, principalmente os mais pequenos.

Não se pode saber quais serão as consequências nas próximas eleições autárquicas e presidenciais de toda esta situação, mas que daqui a um ano o país estará muito diferente, disso não tenho dúvidas. Contudo de uma coisa estou certo: se formos cegos a ser conduzidos por cegos como se pode ver no célebre quadro de Pieter Bruegel, o Velho, melhor não estaremos certamente. Mas se os líderes dos partidos do centro abrirem os olhos e forem, finalmente, sérios, então serão capazes de se unir para o essencial, respeitando as suas diferenças. E o futuro colectivo será melhor, sem esta espécie de insanidade em que estamos mergulhados, em que cada partido vota a sua moção e reprova as dos outros.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 Março 2025

 

 

segunda-feira, 3 de março de 2025

Ser peão, na Cidade

 Viver numa cidade tem claras vantagens relativamente a fazê-lo numa povoação de pequena dimensão, dada a existência de uma rede de infraestruturas importante. As cidades oferecem ainda uma variedade de serviços cuja existência próxima facilita a vida dos seus habitantes, para além de proporcionarem mais e melhor emprego.

Coimbra pode bem servir de exemplo prático para esta afirmação. Ultimamente tem vindo para o espaço público o conceito de “cidade de 15 minutos” como um ideal alcançável. E possível. Basicamente trata-se de um conceito de ambiente urbano em que todas as necessidades diárias dos residentes possam ser respondidas a uma curta distância a pé ou de bicicleta. O que nos remete para a mobilidade urbana, a pé, de bicicleta e os outros modos, públicos e privados.

Quanto às deslocações a pé, muito há a dizer do que se passa na nossa cidade. Pois que não se pode pretender fomentar o andar a pé na rua sem se garantir as necessárias condições de conforto e segurança já que, em termos rodoviários, os peões são utilizadores vulneráveis.

Os passeios devem, em primeiro lugar, ter os pavimentos em bom estado e serem dotados de um revestimento uniforme. Se a chamada “calçadinha à portuguesa” é atrativa e muitas vezes uma obra de arte, só o é quando tem desenhos a duas cores e não quando é apenas executada com pedras de calcário; neste caso, na maior parte das vezes é mais adequado e eficiente encontrar outras alternativas de pavimento, mais resistente e confortável. Por outro lado, a largura dos passeios deve permitir, não só a passagem de peões nos dois sentidos, como ter espaço para a passagem de carrinhos de bébé e mesmo cadeiras de rodas, isto é, deve ser inclusiva. Se estas características são exigíveis em passeios novos, nos antigos há que estudar bem a colocação de árvores, mas também de postes de iluminação e mesmo de sinais de trânsito. Tudo isto exige um trabalho permanente de adaptação dos passeios de acordo com estas exigências, para além da reparação pontual dos pisos.

Mas andar a pé na cidade obriga necessariamente a situações de conflito com outros meios de transporte. É o caso das passagens para peões, onde tantas vezes se verificam acidentes graves em que a vítima é sempre o peão. Por esse motivo devem ser bem localizadas e estar em perfeitas condições de visibilidade e com sinalização adequada.

Há casos especiais de passagens para peões que merecem também um tratamento especial. As passagens para peões localizadas junto das escolas devem ter iluminação própria e adequada, para além de ser considerada a sua dotação de sinalização luminosa (semáforos) que deverão ter ainda alerta de velocidade instantânea excessiva. Não será preciso identificar aqui quais os locais onde esta actuação deverá ter lugar, já indo atrasada muitos anos. Nesta situação estão igualmente instalações de saúde, onde a colocação destes sistemas é urgente, como é o caso do novo Centro de Saúde da Av. Fernão de Magalhães. Ultimamente decorre uma acção de adaptação de passagens de peões às normas de inclinação máxima e substituição de pavimento por outro adaptado a invisuais, o que se saúda. Mas é preciso muito mais e, essencialmente, de forma sistemática. O estacionamento na via pública, ainda que represente alguma receita, não pode ser autorizado se não deixar qualquer espaço para os peões como sucede na Rua Martins de Carvalho por trás do Mercado D. Pedro V numa situação diária perfeitamente vergonhosa, com os peões a protegerem-se com dificuldade entre os carros estacionados.

Penso não restarem dúvidas sobre quem deve ser mais protegido na via pública, que são os peões, embora seja evidente que, na prática, são os veículos automóveis os mais favorecidos pelas entidades responsáveis, basta ver o que se gasta nos pavimentos nas ruas e comparar com os passeios. Seja a cidade ou não “de 15 minutos”, muita coisa tem de ser alterada para dar aos peões o lugar que lhes é devido na via pública

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Março de 2025

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Uns e outros

 Tornou-se um lugar-comum, embora frequentemente usada por populistas, a afirmação de que há, em Portugal, uma Justiça para ricos e outra para pobres. Infelizmente, a realidade aí está para o provar, com uma frequência maior do que seria aceitável.

Uma das diversas causas para que essa percepção seja demasiadas vezes coincidente com a realidade tem a ver com as prescrições que, normalmente, só acontecem em casos conspícuos pelas personalidades ou instituições em causa que se destacam pelo poder político ou económico.

Há poucos dias tomou-se conhecimento de uma decisão do tribunal da Relação de Lisboa que libertou os 11 maiores bancos que operam em Portugal de pagarem coimas que, no total, somariam quase 225 milhões de euros. A aplicação das coimas deveu-se à Autoridade da Concorrência, tendo os bancos recorrido para os tribunais, daí esta decisão da Relação de Lisboa. A decisão da Autoridade da Concorrência deveu-se a uma situação de cartelização dos bancos, que teriam trocado entre si informação sensível entre 2002 e 2013, com vantagens para os bancos e claro prejuízo para os clientes da banca. De acordo com a Relação o caso é para arquivar, embora ainda se vislumbrem eventuais possibilidades de recurso por parte da Autoridade da Concorrência e da Procuradoria. De notar que os bancos com maiores coimas seriam a CGD e o BCP. Qual a razão apontada pela Relação para esta decisão? Mais uma vez a prescrição do processo. A decisão não foi unânime, mas o principal está à vista. A matéria de facto estava provada, o que falhou foi o procedimento judicial que não permitiu decisão a tempo para punir os infractores.

A garantia de existência de uma sã e livre concorrência é fundamental para dar aos simples cidadãos a possibilidade de verdadeira escolha com garantia de que não está a ser enganado nos preços que lhe são apresentados nos diversos produtos ou serviços que tem de comprar. Tal como a ASAE é fundamental para que o bife no prato tenha garantia de qualidade numa economia tão complexa como é a actual, o papel da Autoridade da Concorrência defende-nos de más práticas e das mais diversas cartelizações, num tempo em que até a inteligência artificial ajuda os prevaricadores. Mas não só. A concorrência é a base da inovação e consequente crescimento sustentado da economia.

Se empresas com a responsabilidade dos bancos, de cuja actividade ninguém pode hoje fugir entram pelos caminhos detectados pela Autoridade da Concorrência e conseguem escapar às consequências, algo vai muito mal e tem de ser corrigido. A Lei da Concorrência data de 2012 e já sofreu quatro alterações desde então. Contudo, raros são os casos levados pela Autoridade a Tribunal que terminam com a condenação dos acusados. Este, da banca, será apenas mais um. Sem colocar em causa a sua independência, será que a Autoridade constrói bem os processos? Dispõe da capacidade técnica e humana para analisar e levar a bom termo os processos numa área tão complexa e de difícil? A legislação do processo penal e a própria organização dos tribunais está adaptada a estes tempos em que o dinheiro dá a volta à Terra em milésimos de segundo em volumes extraordinários?

Vivemos tempos extraordinários em que as televisões nos mostram todas as tragédias em directo, em que governantes não podem ter tido vida económica antes de chegarem ao poder e em que o candidato militar à presidência parece estar ainda no PREC em que se imaginava que o lugar político puro (e, claro, inexistente) estava entre o socialismo e a social-democracia, seja lá o que forem nos nossos dias.

A Justiça é o último reduto da Democracia e o que defende a sociedade das mais diversas malfeitorias. Mas quem faz as leis aplicadas pelos tribunais é o poder político na sua vertente legislativa. Poder este que reside na Assembleia da República. Vale a pena pensar nisto.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Fevereiro de 2025

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Europa numa encruzilhada

 A atitude de Trump ao ligar directamente a Putin colocando como adquiridos alguns dos principais objectivos russos que deram origem à invasão da Ucrânia, faz agora três anos, deveria fazer pensar todos aqueles que acusavam os falcões americanos e europeus de serem responsáveis por aquela invasão. Tratar-se-ia, segundo eles, de mais uma cedência política dos países ocidentais à indústria de armamento americana e europeia. Putin não teria nada a ver com isso, estando apenas a tratar dos interesses russos. Interesses legítimos que abrangeriam a integração do território ucraniano, georgiano, etc. na sua soberania, de onde nunca teriam saído, não tivesse ocorrido a pior tragédia do sec. XX, como Putin classifica o fim da União Soviética. Quem assim pensava deve agora estar um pouco baralhado ao ver os EUA pela mão de Trump a passarem para o seu lado e a abandonarem a Ucrânia. Para Trump trata-se de um puro negócio, enquanto para Putin os objectivos são estratégicos e visam desfazer a União Europeia para a Rússia poder reinar no Leste europeu a seu belo prazer como aconteceu até 1989.

No seu primeiro mandato Trump fez muito barulho, mas na realidade pouco incomodou a ordem internacional estabelecida, apenas obrigando os parceiros da NATO a gastar um pouco mais nas despesas da Aliança algo, aliás, perfeitamente compreensível. Agora não se sabe ainda para onde irá Trump em concreto. Mas teme-se o pior, isto é, que a ordem estabelecida nos últimos 80 anos seja estilhaçada. Deve-se recordar que na Segunda Grande Guerra os EUA vieram salvar a Europa do jugo nazi, mas só o fizeram depois de Hitler lhes ter declarado guerra em 11 de Dezembro de 1941, entusiasmado com o sucesso do ataque japonês a Pearl Harbour ocorrido quatro dias antes. O isolacionismo dos EUA não é novidade, é mesmo uma normalidade que decorre da sua dimensão.

A Europa está num ponto de viragem exigente e tem de se preparar para decisões difíceis, mas importantes. Se considera, como deve ser, que a Ucrânia é um país europeu tem de se preparar para enfrentar a Rússia política, económica e militarmente. Com os EUA de fora a tratar dos negócios terá de ser a Europa a abrir a porta da União à Ucrânia e a preparar a sua entrada na NATO ou na nova aliança de defesa sem os EUA que, com alguma probabilidade, surgirá a curto prazo. Se mostrar fraqueza, acontecerá certamente a repetição dos anos 1937/38 em que os líderes europeus imaginavam poder conter Hitler com conversações enquanto aquele já preparava a Alemanha para a guerra e perseguia e enviava para campos de concentração quem quer que lhe manifestasse a mínima oposição. Claro que o ideal seria aguardar pelo fim do mandato de Trump, mas nem se sabe se o seu sucessor será mais sensato do que ele, nem Putin tem idade para aguardar muito mais tempo pelo ressurgimento do Império Russo por que almeja.

Apesar de Aldous Huxley ter escrito “que os homens não aprendem muito com as lições da História é a mais importante de todas as lições que a História tem para ensinar”, para alguma coisa o conhecimento da História nos servirá. E, nós europeus, temos uma História já tão longa que nunca a podemos perder de vista nas nossas opções.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Fevereiro de 2025

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Alterar a “Lei dos Solos” à boleia da falta de habitação

 

Se há característica (diria defeito) que é geralmente atribuída aos portugueses é a sua incapacidade de planeamento. No que diz respeito à ocupação do território, isso é particularmente evidente.

Tal deve-se a diversos factores, mas sobretudo à falta crónica de ordenamento do território durante muitas dezenas de anos, sobretudo a partir da década de 60 do século XX, quando o desenvolvimento do país se começou a acentuar. Como, por essa altura, se inventou a figura do loteamento sem que antes ou simultaneamente se desenvolvessem planos de urbanização, o desastre urbanístico espalhou-se pelo território nacional.

A situação atingiu tais proporções que o poder político nacional não teve outro remédio, na passagem dos anos 80 para os anos 90, senão obrigar os municípios a adoptar um instrumento de planeamento do território mínimo, os chamados Planos Directores Municipais (PDM’s). Digo obrigar com toda a propriedade, porque o Governo de então teve de ameaçar os municípios que não tivessem PDM aprovado até uma determinada data com corte das transferências financeiras do Estado

Nos PDM’s preveem-se determinadas áreas de protecção onde não se deve construir, como Reserva Agrícola ou Reserva Ecológica. Essas áreas são determinadas tecnicamente e não politicamente e percebe-se porquê: entre outras situações, todos nos lembramos daquelas tragédias em que habitações legais são destruídas porque construídas em zonas de cheia ou mesmo junto a rios e ribeiras, quando há chuvas mais fortes, tantas vezes com perda de vidas.

Recentemente o Governo publicou um Dec. Lei, entretanto entrado em vigor dado que a AR deliberou pela sua não revogação, que permite lotear solos rústicos, transformando-os em urbanos, onde portanto se poderá construir. O motivo apontado para esta alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial a que se tem chamado “nova lei dos solos” é a necessidade de responder à gritante falta de habitação.

Embora se justifique com motivos, à primeira vista racionais, trata-se de um ataque ao planeamento do território que, daqui a uns anos será apontado como outro erro urbanístico como tantos do passado recente e já nada haverá a fazer. Na realidade, a área em que já é autorizado construir é mais que suficiente e o argumento do preço também não colhe: estamos num mercado livre e aberto e nada impede a valorização dos terrenos com utilização entretanto alterada. Acresce que serão necessárias mais infraestruturas que irão onerar permanentemente as despesas correntes dos municípios.

Se há, como se percebe, um problema de oferta de habitação em certas zonas do país, em particular as áreas metropolitanas, que o Estado o assuma e encontre soluções fortes e capazes e não remendos que comprometem as gerações futuras e a sustentabilidade urbana. Como, por exemplo, adoptar a figura da “expropriação sistemática” que permitiu há décadas o desenvolvimento de Lisboa de uma forma que ainda hoje é um exemplo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Fevereiro de 2025