terça-feira, 5 de agosto de 2025

Coimbra no seu melhor: a Bluepharma

 

Nos anos 90 costumava estar estacionado no Aeródromo de Coimbra um pequeno avião monomotor. Era o meio de transporte usado pelo administrador alemão da unidade de produção de Aspirina da farmacêutica Bayer situada em S. Martinho do Bispo. Com a família a residir em Cascais, ele próprio pilotava o avião para vir trabalhar em Coimbra e no fim de semana voar para casa, de forma mais rápida e segura.

Por volta da mudança de século a Bayer decidiu alterar a sua política fabril e, em consequência, fechar a pequena fábrica em Coimbra. Pareceria que a parca indústria farmacêutica de Coimbra iria sofrer um rude golpe. Mas, surpreendentemente, o arrojo, a capacidade de iniciativa e de empreendedorismo de alguns jovens alterou o rumo da História. Paulo Barradas agregou a si Sérgio Simões, Isolina Mesquita vinda da Bayer e Miguel Silvestre para propor à Bayer a compra da fábrica, mantendo os seus funcionários. Assim nasceu a Bluepharma que iniciou as suas actividades em 2001, com 58 colaboradores. Em contrapartida, a Bayer comprometia-se a adquirir a produção das Aspirinas aqui produzidas durante sete anos, garantindo assim um período de adaptação. Contudo, a visão empreendedora destes gestores levou a que menos de três anos depois a Bluepharma já não estivesse dependente dessa garantia de compra dos seus produtos. E, a partir daí, o crescimento da Bluepharma é algo de impressionante, mas que na realidade só surpreende quem não conhecer os seus gestores. A fábrica original cresceu, em 2023 foi inaugurada uma nova unidade industrial em Eiras, que representou um investimento de trinta milhões de euros, para produção de formas sólidas orais potentes, tendo em vista essencialmente o tratamento de cancros. A Bluepharma prepara ainda um novo investimento que será o “Coimbra Life Sciences Park” a instalar em Cernache onde, em tempos existiu a cerâmica Poceram, tendo já garantido boa parte do capital a investir, num total de mais de cem milhões de euros.

Tudo isto em pouco mais de vinte anos. O número de trabalhadores passou dos 58 iniciais para mais de 700. Mais impressionante, destes, 67% têm graus de formação superior (licenciatura, mestrado ou doutoramento). A Bluepharma produz medicamentos próprios e para terceiros, procede à investigação, desenvolvimento e registo de novos medicamentos e ainda fabrica e comercializa medicamentos genéricos. Nesta última área, uma função importante é o desenvolvimento do processo produtivo dos genéricos já que, se a fórmula da molécula se torna pública, a maneira de obter o medicamento comercializável com segurança não o é. A Bluepharma é hoje um grupo farmacêutico com vinte empresas que já está na Europa, em África e nos EUA. Em 2022 exportou 89% da sua produção para mais de 40 países.

Há ainda um aspecto deste sucesso empresarial que não tem sido devidamente relevado. Na realidade, Coimbra já teve uma área industrial importante, nomeadamente nas áreas da alimentação, cerveja e cerâmica. Tudo isso desapareceu, levado pelas circunstâncias históricas. Nos últimos anos tem-se desenvolvido em Coimbra toda uma área extremamente sofisticada ligada ao software, com várias empresas a marcar cartas a nível mesmo mundial. Mas a desmaterialização da economia tem um aspecto socialmente fragilizante. Nós somos feitos de matéria, precisamos de nos alimentar, de vestir, de nos deslocarmos, de ter onde nos abrigar e de nos tratar quando doentes. Tudo isto precisa de produção industrial e mesmo de agricultura. A informatização é cada vez mais necessária para nos facilitar a vida e até ajudar à produção de bens. Mas não nos substitui nem faz desaparecer a necessidade de produção industrial.

A Bluepharma é a prova de que Coimbra tem capacidade para ultrapassar dificuldades circunstanciais, mesmo económicas e políticas e de se reinventar. A junção da ambição do empreendedorismo com o conhecimento técnico e científico e total independência dos poderes políticos pode ser a chave para o sucesso industrial, mesmo num tempo em que os serviços parecem ser o único factor económico de sucesso. 

 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Agosto de 2025 

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Portugal, salvador da Europa

 

Em meados do sec. XIV o poeta Petrarca perguntava-se como “no futuro alguém poderia acreditar que tivesse havido um tempo em que a Terra tivesse estado bem perto de ficar sem habitantes”. A seguir a anos seguidos de fome, a Peste Negra foi devastadora no Oriente, mas também na Europa. Estima-se que a pandemia, cujo pico foi atingido entre 1347 e 1351 tenha ceifado entre 75 e 200 milhões de vidas. Dos 75 milhões de europeus da altura morreram 25. Por exemplo, em três meses morreram 100.000 habitantes de Florença. Também a China viu a sua população de 120 milhões reduzida a metade.

Para os lados do Oriente, Tamerlão conquistava desde Esmirna à Índia, provocando cerca de 17 milhões de mortos da forma mais selvática que imaginar se possa. Morreu em 1405, mas a influência mongol manteve-se na Índia durante séculos. Em 29 de Maio de 1453 o exército otomano comandado pelo sultão Mehmed II conquistou a cidade de Constantinopla. Nessa batalha foram pela primeira vez utilizadas armas de fogo portáteis, as percursoras das espingardas. Curiosamente, uma armada de apoio ao Imperador Constantino XI com grande apoio do Rei D. Afonso V chegou depois da queda da capital do império romano do oriente. Esta data é hoje por muitos considerada o fim da Idade Média e o início da chamada Idade Moderna.

Por todos estes motivos no século XV a Europa, já enfraquecida pelas lutas internas da Guerra dos Cem Anos, encontrava-se entalada entre o desconhecido oceano Alântico a ocidente e pelo império Otomano a Oriente. Sem poder contar com as antigas rotas comerciais com a China, a Europa .A pressão otomana era impressionante, tal era a vontade de entrar pela Europa dentro.

Foi então que um pequeno país na altura com menos de um milhão de habitantes fez o mais improvável dos feitos da História. Localizado no extremo ocidental do continente europeu, como que entrando pelo Atlântico adentro, o reino de Portugal forneceu à Europa a válvula de escape de que necessitava. Em 21 de Agosto de 1415 D. João I com os seus filhos e um exército poderoso surpreenderam os marroquinos e tomaram Ceuta, no que se pode considerar o início da expansão ultramarina portuguesa. Num conjunto inédito na nossa História, de liderança, descobertas na área da navegação incluindo cartografia e desenvolvimento de novos navios e métodos de navegação, logo na década seguinte foram descobertos e povoados os arquipélagos da Madeira e dos Açores. Em 1434 Gil Eanes passa o Cabo Bojador, até então considerado o “fim do mundo”. Em 1498 Vasco da Gama chega a Calecute na Índia, abrindo uma nova rota entre a Europa e o extremo Oriente. Crucial foi o papel de D. João II, conhecido como “O Príncipe Perfeito”, mas a quem a poderosa Rainha Isabel, a Católica, chamava simplesmente “O Homem”, assim dizendo tudo sobre o rei com quem assinou o Tratado de Tordesilhas.

Estava criado um mundo novo, com novas ligações entre a Europa e o extremo Oriente livres das antiquíssimas guerras do médio e próximo oriente.

O papel de Portugal foi absolutamente decisivo nesta construção de um novo mundo e devemos ter orgulho no papel europeu que desempenhámos. Longe dos nacionalismos e pretensas motivações apenas religiosas, mas também sem termos de pedir desculpa seja pelo que for.

A visão da nossa História tem pecado por se virar muito para dentro, esquecendo a visão global. E a realidade é que se torna muito mais fácil compreendermos o nosso passado glorioso se conhecermos o contexto global da época. Só no fim do sec. XX abandonámos o Império, tendo sido os últimos europeus a fazê-lo tendo sido os primeiros a construí-lo. E não devemos ter vergonha do que se passou, incluindo erros que os houve, mas antes ter consciência clara de que a Europa de hoje é um resultado de uma História, na qual tivemos um papel absolutamente decisivo.


Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 Julho 2025

terça-feira, 22 de julho de 2025

Civilidade ou educação

 

Ouvimos frequentemente referir a necessidade de civismo no comportamento dos concidadãos. De facto, o civismo é necessário para todos nós, mas é insuficiente, já que se refere às atitudes perante a sociedade ou o Estado, como votar ou participar em actividades comunitárias. O seu exercício é objecto do ensino nas escolas, para além do que se aprende em casa com a família. Já o relacionamento directo entre as diversas pessoas tem a ver com civilidade, algo que tradicionalmente se aprende em casa, mas que deverá igualmente ser objecto de atenção cuidada nas escolas, devendo claramente fazer parte da educação pessoal. A civilidade inclui cumprimentar regularmente as pessoas, pedir desculpas, ceder naturalmente passagem, em resumo tratar os outros com cortesia e consideração.

Longe de mim dizer que actualmente há mais ou menos civilidade e que “no meu tempo é que era bom”, até porque o meu tempo é tanto o de há 50 ou 60 anos, como é o de hoje. As circunstâncias sociais mudaram radicalmente e o acesso à fruição de tantas actividades que dantes eram elitistas é hoje possível a mais camadas da população, o que é de saudar e apoiar. O inter-relacionamento entre pessoas de diferentes origens é também muito mais fácil e democrático.

Contudo há, por vezes, situações em que a maior liberdade para agir em sociedade se confunde com exercício de direitos sem atender aos direitos dos outros e surge claramente a falta de civilidade, que não chega a ser falta de educação, mas que anda lá perto.

Um exemplo é o que se verifica em ginásios, equipamentos que grande parte da população utiliza, já que se divulgou a ideia correcta de que uma boa forma física é algo que contribui, e muito, para o bem-estar geral das pessoas. A frequência dos ginásios substitui, em boa parte, a prática de desporto que, a partir de certa altura se torna difícil de fazer pelas mais diversas razões. Tem ainda a vantagem de cada pessoa como que jogar contra si própria, sem contactos físicos com outros. Os exercícios são praticados de forma individual e podem ser calibrados em função das capacidades físicas pessoais.

Claro que há outros desportos em que o praticante evolui de forma inteiramente pessoal sendo o sucesso medido apenas pelos valores que atinge pessoalmente, independentemente dos outros praticantes. Um exemplo é o Golfe em que o resultado do praticante, ainda que vá de buraco em buraco com um parceiro, apenas depende de si próprio e do número de tacadas com que consegue meter a bola no buraco depois da saída. Claro que o golfe exige mais disponibilidade de tempo para a sua prática e todos sabemos como o tempo é dinheiro, pelo que a sua prática se torna cara. Em Coimbra torna-se quase impossível praticá-lo uma vez que não existe, nas nossas proximidades, qualquer campo de golfe com pelo menos 9 buracos. Os mais próximos são em Viseu, em Espinho e em Óbidos.

Devo confessar que, contudo, o golfe caiu nesta crónica por outra razão específica e tem a ver com as regras desse desporto. Na realidade, as regras, embora possam à primeira vista parecer complexas, mais não são do que normas de civilidade. Fundamentalmente, visam estabelecer equidade nas hipóteses de mais ou menos sucesso e de marcar o respeito pelos outros praticantes, perante as situações com que se deparem, em função das condições em que a bola se encontra depois de cada tacada.

Nos ginásios há evidentemente regulamentos próprios de cada um. Mas, infelizmente, são muito comuns as situações de clara incivilidade. Por exemplo, praticantes que ocupam em simultâneo dois aparelhos, deixando a toalha num enquanto utilizam outro, ou que resolvem não abandonar o aparelho depois do exercício ficando a usar o Facebook ou algo semelhante no telemóvel. São diversas as situações que até não necessitariam de regulamento para serem evitadas, mas que causam mal-estar nos outros praticantes que, esses sim por pura boa-educação nem reclamam ficando em desvantagem relativa por perderem tempo à espera de que outros resolvam finalmente deixar o lugar de que abusam. A civilidade faz mesmo falta, mesmo em locais e circunstâncias em que se poderia pensar não ser precisa.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 Julho 2025