Quando ouço falar em manter a “portugalidade” ou defender as nossas características únicas (e, eventualmente, superiores) não posso deixar de me lembrar do significado histórico dessas posições. As justificações imediatas para essas atitudes têm variado ao longo dos tempos, conforme as circunstâncias, mas nos nossos dias apelam à ignorância e muitas vezes à chamada à superfície de medos ancestrais há muito enterrados na evolução da ciência.
Há pouco menos de cem anos o partido nazi utilizou documentações falsas como os “Protocolos dos Sábios de Sião”, para além de pretensas características próprias dos judeus para levar a cabo perseguições rácicas que terminaram com o extermínio de seis milhões de homens, mulheres e crianças. Para além dos judeus, pessoas com deficiências físicas ou problemas mentais ou mesmo homossexuais foram motivo das mais abjectas perseguições e experiências com o fim de proteger uma assim chamada raça ariana, tida como superior. Infelizmente, a eugenia prolongou-se ainda durante anos depois da guerra em diversos países do mundo.
Os portugueses devem ter consciência do que sucedeu no nosso país no início do sec. XVI. Depois de séculos em que judeus e mouros viveram em paz e completa harmonia social em Portugal, o casamento do Rei D. Manuel com Isabel, a filha dos Reis Católicos de Espanha, marcou uma mudança significativa. Contrariando a anterior tradição de tolerância religiosa, o Monarca aceitou as exigências dos Reis Católicos para a “purificação” de Portugal através da expulsão dos infiéis (mouros e judeus) como já sucedia em Castela. Nasceram aí os chamados “cristãos-novos”, infame e hipócrita invenção que viria ter trágicos resultados. De facto, em 1506 cerca de 2.000 “cristãos-novos foram vítimas de um massacre em Lisboa, acusados de trazerem a peste negra. Para piorar a situação, D. João III viria a pedir ao Papa a introdução da Inquisição, o que sucedeu em 1536 originando a emigração de muitos judeus portugueses que formaram comunidades sefarditas desde Veneza a Nova Iorque, passando por Amesterdão, Antuérpia e muitas outras cidades em países mais tolerantes.
A origem e as migrações do “homem moderno” de quem TODOS nós descendemos têm sido objecto de estudo e de actualizações nos últimos anos à medida que vão sendo descobertos novos restos humanos cada vez mais antigos e ainda pelo desenvolvimento da ciência da Genética. Algo que parece seguro é que a espécie humana terá tido origem comum no Leste de África.
O território que é hoje Portugal foi recebendo populações vindas do continente europeu desde o Neolítico há cerca de 7.000 anos que trouxeram a agricultura, com todas as consequências civilizacionais daí decorrentes. Vários povos antigos habitaram na península como os Lusitanos ou os Iberos. Mas muitos outros povos passaram por cá, sendo já bem documentados os fenícios, romanos, os chamados “bárbaros” celtas e os Árabes.
Os portugueses são o resultado de toda esta miscelânea, a que se vieram juntar os escravos trazidos por romanos, mouros e depois na altura dos Descobrimentos. De notar que a frequência de linhagens subsarianas atinge no Norte de Portugal o valor de 3%, mas no Centro de 6% e no Sul de 11%. A escravatura existiu desde 1444 quando os primeiros escravos negros foram desembarcados em Lagos, até ao sec. XVIII quando Portugal a aboliu na Metrópole. A Genética mostra-nos de que forma a variedade de povos foi introduzindo as suas características no que é o nosso actual património genético.
Perante este enquadramento histórico é, no mínimo, estranho que apareça quem queira defender uma denominada “portugalidade” contra a entrada de imigrantes que vêm procurar uma vida digna que não conseguem nos seus países de origem. Muito para além da economia, dos valores éticos e da simples bondade, o conhecimento da nossa História deveria orientar a forma com recebemos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Junho de 2025