Quando leio ou ouço cientistas e investigadores tecnológicos descrever com entusiasmo a novidade de um futuro cheio de inteligência artificial em que numerosos sensores formarão uma imagem o mais próxima possível da realidade, não posso deixar de sorrir. É que o nosso cérebro com os seus cinco sentidos já faz isso mesmo e «trata» toda a informação que recolhe de uma forma que desconfio que será impossível de replicar algum dia com computadores, ainda que sejam os novos quânticos: é que, como nos ensina um grande cientista português, António Damásio, o nosso corpo alia inteligência à emoção. Ainda por cima esses «inputs» não materiais são por todos nós tratados em simultâneo e guardados para mais tarde serem recordados de forma insuspeitada em relação a cheiros, sons ou determinadas situações específicas, como passar pelo mesmo local em que foram originados.
E uma das «informações» que os nossos sentidos transportam para o nosso cérebro é a dos sons. Por vezes essa informação não é mais do que ruído, outras vezes encanta-nos por trazer a Natureza para dentro de nós como sucede com o barulho das ondas do mar ou o cantar dos pássaros e outras vezes maravilha-nos pela capacidade humana de construir o que chamamos música, umas vezes simples outras de uma complexidade extraordinária.
No dia em que escrevo esta crónica passam 250 anos sobre o dia de baptismo de uma das personalidades mais marcantes da História da Humanidade, cuja data exacta de nascimento não é conhecida: Ludwig van Beethoven. Claro que todos nós o conhecemos como um dos maiores compositores que já viveram, mas Beethoven foi muito para além disso.
É que Beethoven simboliza também o poder do cérebro humano. Tal como Einstein muito mais tarde viria a descobrir aspectos encobertos da ciência apenas através do desenvolvimento de teorias físicas expressas por fórmulas matemáticas que só mais de cem anos depois a experimentação conseguiu provar, Beethoven desenvolveu a sua música no cérebro. E só depois a transcrevia para o papel, porque durante a maior parte da sua vida Beethoven esteve surdo.
A obra-prima que é a sua 9ª Sinfonia foi elaborada, em toda a sua complexidade, no cérebro do compositor. Aquando da sua estreia, o compositor nem sequer se apercebeu de que a sala vinha abaixo com os aplausos entusiásticos do público, porque não os ouvia como não ouvia a orquestra, as quatro vozes solistas e o coro que cantaram o poema de Schiller.
Para além da importância cultural que todos lhe reconhecemos, a música tem ainda a capacidade de nos oferecer a possibilidade de fugir intelectualmente ao confinamento provocado pela pandemia que com tanta perplexidade, medo e sofrimento quase nos destruiu o ano que agora acaba. Esta é a crónica «Visto de Dentro» que antecede o Natal e esta é precisamente a única época do ano que nos oferece o encanto de inúmeras músicas próprias que nos elevam e acalmam o espírito. Não será por acaso que o espírito natalício desde há muitos séculos entrou na cultura ocidental e não só, tendo inspirado S. Francisco de Assis e o seu Presépio e tantas melodias e poemas que apelam à fraternidade e simplicidade da mensagem do amor entre os homens de boa vontade.
De entre as músicas tradicionais da época do Natal, relembro "O du fröhliche" do séc. XVIII com poema de Johannes Daniel Falk cantada por Anneliese Rothenberger ou «O Pequeno Tambor» pelo Harry Simeone Chorale ou mesmo por Bing Crosby com David Bowie e «Feliz Navidade» de Jose Feliciano. Mas também «White Christmas» dos «nossos» Marina Pacheco e Paulo Ferreira com o Ensemble Orquestra Clássica do Centro.
Evidentemente, não é possível deixar de fazer uma menção especial a essa grande, enorme intérprete de canções de Natal que foi a inesquecível Mahalia Jackson, em particular a sua interpretação de «Silent Night». Tal como não se pode deixar de referir o «Adestes Fideles», tema tradicional de Natal tradicional tão antigo e que ainda tantos, eventualmente de forma errada, atribuem ao rei D. João IV talvez por ser tocado na capela da embaixada de Portugal em Londres e por isso mesmo ser conhecido por «Hino Português». E recordar José Afonso e a sua «Canção de Embalar».
A todos os leitores do Diário de Coimbra um Feliz e Santo Natal, com votos de um novo ano decididamente melhor do que este que agora termina, se possível com a família e a boa companhia da música de Natal.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 de Dezembro de 2020