A circunstância de ter vivido boa parte da infância e juventude em Oliveira do Hospital, nas faldas da Serra da Estrela, deixou marcas firmes nos gostos pessoais e maneira de encarar o mundo e a Natureza. A frequência de Escola Primária numa aldeia acolhedora chamada Negrelos em que o edifício da escola se situava literalmente no pinhal, cujo aquecimento era feito pela queima numa salamandra de gravetos que nós próprios apanhávamos logo ali ao lado, com as quatro classes em simultâneo é algo que ninguém pode esquecer por toda a vida. Tal como as amizades construídas no Colégio Brás Garcia de Mascarenhas, com ensino misto já nos anos sessenta, duram firmemente até aos dias de hoje. Observando dezenas de anos depois, apercebemo-nos da curta duração desse período da nossa vida, mas do impacto e influência no ser e no sentir.
Recordação desses tempos que não se esquece é também a passagem de rebanhos de ovelhas pelas ruas da então vila quando se dirigiam para a Serra (da Estrela, claro, ali não é preciso dizer qual) na Primavera e quando voltavam no início do Outono para os estábulos seguros e sem neve. Rebanhos conduzidos pelo pastor sempre acompanhado pelos enormes e escuros cães da Serra com as suas coleiras de grandes espinhos para sua defesa contra os ataques dos lobos.
E aqui começa a história de algo que define toda aquela região que tem por centro a Serra da Estrela: o Queijo da Serra. Começa precisamente nas ovelhas, obrigatoriamente das duas raças Bordaleira Serra da Estrela e/ou Churra Mondegueira, na sua alimentação nos prados, no trabalho dos pastores e na integração tantas vezes difícil numa Natureza simbolizada pelo próprio lobo. Termina na recolha do leite e na sua transformação na preciosidade que é o Queijo da Serra, justamente celebrado como o melhor queijo português e um dos melhores do mundo. O leite é aquecido de forma indirecta a 30ºC, sendo depois coagulado através de um preparado de sal e cardo da região. Colocada no cincho, a coalhada é pressionada com as mãos até esgotar o soro. Segue-se a cura com um período mínimo de 45 dias em local com temperatura e humidade adequadas, sendo o queijo lavado e virado frequentemente.
De tal forma já naqueles anos sessenta o queijo da serra era por ali importante e considerado, que a compra anual dos primeiros queijos da Serra era quase religiosa, tendo lembrança perfeita de acompanhar o meu Pai nessas compras passados os frios do Inverno, fosse na Póvoa das Quartas, nas Vendas de Galizes ou na própria queijeira no Seixo da Beira. Oliveira do Hospital é um dos dezoito concelhos que integram a “Região Demarcada do Queijo da Serra da Estrela”criada oficialmente em 1985 e é mesmo um daqueles em que todas as freguesias estão abrangidas na região demarcada. Para que o Queijo da Serra viesse a ser protegido na sua essência e qualidade foi necessária a realização de estudos e levantamentos de especialistas dedicados, sendo justo lembrar aqui o Eng. António Gomes Rebelo, pai do amigo e colega João José Rebelo sem cujo trabalho no terreno e depois publicado esta especialidade beirã poderia não ser o que é hoje.
De acordo com a lei, o uso da Denominação de Origem “Queijo Serra da Estrela – DOP” «fica reservado aos produtos que obedeçam às características estipuladas no caderno de especificações, o qual inclui, designadamente, as condições de produção e conservação do leite, higiene da ordenha, fabricação do produto, o saneamento animal e a assistência veterinária e as substâncias de uso interdito, podendo ser utilizada apenas por produtores expressamente autorizados, que se comprometam a respeitar todas as disposições do respectivo Caderno de Especificações e se submetam ao necessário controle».
Mas há algo que não está nos regulamentos e que é certamente crucial para que este queijo não possa ser reproduzido em qualquer fábrica ou outro lugar. É o ar puro, seco, que eu bem conheço, seja frio no Inverno seja quente no Verão, que acompanha e permite não só as vistas límpidas e vastas, mas também os cheiros intensos dos matos e das ervas que alimentam as ovelhas que tudo isso filtram no leite que dá origem ao Queijo da Serra. Quanto a comê-lo mais curado ou mais amanteigado, tudo vai com o gosto de cada um. Preciso é que seja apreciado e que não se deixe estragar nada, incluindo a crosta.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Maio de 2021
Fotos retiradas da Internet