segunda-feira, 10 de maio de 2021

Queijo da Serra

 


A circunstância de ter vivido boa parte da infância e juventude em Oliveira do Hospital, nas faldas da Serra da Estrela, deixou marcas firmes nos gostos pessoais e maneira de encarar o mundo e a Natureza. A frequência de Escola Primária numa aldeia acolhedora chamada Negrelos em que o edifício da escola se situava literalmente no pinhal, cujo aquecimento era feito pela queima numa salamandra de gravetos que nós próprios apanhávamos logo ali ao lado, com as quatro classes em simultâneo é algo que ninguém pode esquecer por toda a vida. Tal como as amizades construídas no Colégio Brás Garcia de Mascarenhas, com ensino misto já nos anos sessenta, duram firmemente até aos dias de hoje. Observando dezenas de anos depois, apercebemo-nos da curta duração desse período da nossa vida, mas do impacto e influência no ser e no sentir.

Recordação desses tempos que não se esquece é também a passagem de rebanhos de ovelhas pelas ruas da então vila quando se dirigiam para a Serra (da Estrela, claro, ali não é preciso dizer qual) na Primavera e quando voltavam no início do Outono para os estábulos seguros e sem neve. Rebanhos conduzidos pelo pastor sempre acompanhado pelos enormes e escuros cães da Serra com as suas coleiras de grandes espinhos para sua defesa contra os ataques dos lobos.


E aqui começa a história de algo que define toda aquela região que tem por centro a Serra da Estrela: o Queijo da Serra. Começa precisamente nas ovelhas, obrigatoriamente das duas raças Bordaleira Serra da Estrela e/ou Churra Mondegueira, na sua alimentação nos prados, no trabalho dos pastores e na integração tantas vezes difícil numa Natureza simbolizada pelo próprio lobo. Termina na recolha do leite e na sua transformação na preciosidade que é o Queijo da Serra, justamente celebrado como o melhor queijo português e um dos melhores do mundo. O leite é aquecido de forma indirecta a 30ºC, sendo depois coagulado através de um preparado de sal e cardo da região. Colocada no cincho, a coalhada é pressionada com as mãos até esgotar o soro. Segue-se a cura com um período mínimo de 45 dias em local com temperatura e humidade adequadas, sendo o queijo lavado e virado frequentemente.

De tal forma já naqueles anos sessenta o queijo da serra era por ali importante e considerado, que a compra anual dos primeiros queijos da Serra era quase religiosa, tendo lembrança perfeita de acompanhar o meu Pai nessas compras passados os frios do Inverno, fosse na Póvoa das Quartas, nas Vendas de Galizes ou na própria queijeira no Seixo da Beira. Oliveira do Hospital é um dos dezoito concelhos que integram a “Região Demarcada do Queijo da Serra da Estrela”criada oficialmente em 1985 e é mesmo um daqueles em que todas as freguesias estão abrangidas na região demarcada. Para que o Queijo da Serra viesse a ser protegido na sua essência e qualidade foi necessária a realização de estudos e levantamentos de especialistas dedicados, sendo justo lembrar aqui o Eng. António Gomes Rebelo, pai do amigo e colega João José Rebelo sem cujo trabalho no terreno e depois publicado esta especialidade beirã poderia não ser o que é hoje.


De acordo com a lei, o uso da Denominação de Origem “Queijo Serra da Estrela – DOP” «fica reservado aos produtos que obedeçam às características estipuladas no caderno de especificações, o qual inclui, designadamente, as condições de produção e conservação do leite, higiene da ordenha, fabricação do produto, o saneamento animal e a assistência veterinária e as substâncias de uso interdito, podendo ser utilizada apenas por produtores expressamente autorizados, que se comprometam a respeitar todas as disposições do respectivo Caderno de Especificações e se submetam ao necessário controle».

Mas há algo que não está nos regulamentos e que é certamente crucial para que este queijo não possa ser reproduzido em qualquer fábrica ou outro lugar. É o ar puro, seco, que eu bem conheço, seja frio no Inverno seja quente no Verão, que acompanha e permite não só as vistas límpidas e vastas, mas também os cheiros intensos dos matos e das ervas que alimentam as ovelhas que tudo isso filtram no leite que dá origem ao Queijo da Serra. Quanto a comê-lo mais curado ou mais amanteigado, tudo vai com o gosto de cada um. Preciso é que seja apreciado e que não se deixe estragar nada, incluindo a crosta.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Maio de 2021
Fotos retiradas da Internet

Dívida

 A obra de António Costa na dívida:




domingo, 9 de maio de 2021

Tarifa social

Agora é internet social. Mais uma tarifa dita social. Enquanto o país empobrece, o ordenado mínimo se aproxima cada vez mais do ordenado médio e as tarifas sociais alastram. Faz-me lembrar a história do sapo na panela.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Amanhã, o regresso à Baixa

 


Depois de anos a estagnar e perder valor, parecia que o passado glorioso tinha regressado com novas roupagens. O canal era de novo estreito para acolher tanta gente. E, para além dos numerosos turistas de todo o mundo, mas principalmente europeus, as gentes de Coimbra tinham voltado a ganhar o hábito de fazer as suas compras nas lojas da velha Baixa. E não é que os prédios do canal tinham voltado a ser habitados?

Os velhos do Restelo que sistematicamente diziam que a Baixa era irrecuperável e que os novos centros urbanos da Cidade tinham substituído para sempre aquele que tinha sido o inicial comentavam que não era nada de especial: na realidade a brutal recuperação económica do país é que tinha proporcionado as condições para o que se verificava. Claro que tinham alguma razão. Sem as condições económicas favoráveis, nem teria havido capacidade financeira para aplicar as propostas urbanísticas, nem os consumidores teriam um nível de vida capaz para poderem usufruir da oferta comercial. Ainda havia necessidade de garantir um ordenado mínimo, mas o ordenado médio dos portugueses cada vez se afastava mais daquele mínimo que andava agora pela média europeia. Os apoios decididos às empresas, principalmente as exportadoras, para a sua recuperação depois de uma pandemia do início da década de 20 em vez do habitual recurso ao betão, foi crucial para que o país conseguisse ultrapassar décadas de estagnação e deixasse mesmo de depender do turismo e dos ordenados baixos inerentes para conseguir equilibrar as suas contas.

Mas essas tinham sido as condições de contexto exteriores à Cidade. Importantes, sem dúvida, mas não suficientes para a mudança que se verificara. Para além disso, a própria Cidade tinha dado passos decisivos para que o novo presente pudesse ser favoravelmente comparado a um passado que desapareceu.

Desde logo, o comércio da Baixa foi olhado e reorganizado como se de um Centro Comercial se tratasse. A logística dos produtos das lojas foi centralizada num local escolhido junto à Estação Nova, sendo a distribuição efectuada com pequenos veículos eléctricos com acesso a todas as lojas. Um Centro Comercial sem ar condicionado, com ar mais puro e fresco embora com algumas coberturas sobre os prédios, em determinados locais estratégicos. As condições de extrema qualidade e conforto deste novo Centro Comercial Baixa de Coimbra provocaram mesmo que passasse a estar na moda ir fazer compras à Baixa. Até porque a acessibilidade foi estudada a fundo, havendo veículos de transporte público com dimensões adequadas gratuitos com ligação ao resto da Cidade. O parque de estacionamento subterrâneo construído na Av. Navarro em frente entre a Estação Nova e a Portagem foi decisivo para dinamizar o comércio e para chamar moradores para a Baixa. As esplanadas têm uma oferta diversificada e condições de conforto que as tornam apelativas, não só aos turistas, mas também aos conimbricenses das mais diversas classes sociais e grupos etários. Atrás das habituais lojas dos centros comerciais vieram várias lojas do chamado comércio de luxo, tudo ajudando a impor Coimbra como capital indiscutível da região Centro e verdadeira alternativa às metrópoles de Lisboa e Porto.


Tudo não teria sido possível sem uma inédita e profícua colaboração entre a Autarquia, a Universidade, a recuperada associação de Comerciantes e a Agência de Gestão do Comércio da Baixa que sucedeu à antiga APBC. A instalação de várias empresas de índole tecnológica na Baixa foi decisivamente apoiada por estas entidades, trazendo centenas de trabalhadores altamente qualificados, muitos deles estrangeiros que escolheram Coimbra para trabalhar, trazendo as famílias para aqui morar. Sem dúvida que a oferta da Cidade na área da Saúde foi crucial para ajudar a criar essas condições. A velhinha Praça do Comércio não fica hoje atrás, por exemplo, da Praça Real de Barcelona, quer no arranjo do espaço público, quer na utilização comercial, quer na recuperação do edificado em volta, para não falar na movimentação humana.

A criação do Fundo de investimento Coimbra Viva V foi determinante para dinamizar a recuperação do imobiliário de toda a Baixa, tendo o seu êxito radicado na experiência anterior em outros fundos, apresentando a Autarquia esta solução a nível internacional, tendo atraído investidores importantes, sempre com o apoio sustentado de estudos económicos bem elaborados e radicados na realidade.

Assim se conseguiu atrair famílias para a Baixa, num movimento contrário ao que tinha acontecido durante décadas.

Se revisitar o passado, como tive a possibilidade de fazer nestas linhas na semana passada, pode revestir-se de aspectos nostálgicos, uma viagem ao futuro permite sonhar. Mas como o futuro somos nós que aqui estamos hoje, que o construímos da forma que será, se não formos capazes de construir o melhor os únicos responsáveis seremos nós: por falta de sonho e por falta de capacidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Maio de 2021

Fotos retiradas da Internet

domingo, 2 de maio de 2021

Clara Ferreira Alves sobre a dieita, no Expresso. Brilhante.

Currículo de Direita, Clara Ferreira Alves no Expresso

«De 1986 a 1990, frequentou a Universidade de Harvard, Estudos Sociais, tendo ganho o Prémio Hooper. De 1992 a 1993, frequentou a Universidade de Stanford e completou um mestrado em Política Internacional. De 1993 a 1995, tirou um MBA na Harvard Business School. De 1990 a 1991, trabalhou como analista financeiro no Chase Bank de Londres. De 1991 a 1992, voltou ao país para cumprir o serviço militar. De 1995 a 1997, tendo acabado os estudos de pós-graduação, trabalhou na McKinsey, em Londres, especializando-se em telecomunicações e indústria de serviços financeiros. De 1997 a 1999, trabalhou para a Alpha Ventures, uma private equity do Alpha Bank, como quadro de estratégia de investimento empresarial. Em 1999, fundou uma empresa de capital de risco, subsidiária do banco nacional, sendo o CEO responsável pelas transações na sua região. Demitiu-se deste posto para seguir uma carreira na política. Em janeiro de 2003, foi nomeado pelo Forum Económico Mundial como um líder do futuro. Fala inglês, francês e alemão.

Este currículo, completado por uma carreira política ao serviço do partido de direita Nova Democracia, do qual foi deputado eleito por um círculo da capital, Atenas, é o do primeiro-ministro grego Kyriakos Mitsotakis, nascido em 1968. Antes de ser eleito primeiro-ministro, foi o líder da oposição na Grécia, de 2016 a 2019, e ministro da Reforma Administrativa de 2013 a 2015. Sucedeu a Alexis Tsipras, o líder da extrema-esquerda que impediu a Grécia de sair da União Europeia, ao contrário do que queria o brilhante, volúvel e errado nos vaticínios, o economista-rock-star Yanis Varoufakis.

A Grécia, note-se, está a recuperar de um período duríssimo, continua uma sólida democracia, estabilizou a desordem financeira e vai ultrapassar Portugal. O combate à pandemia foi um sucesso, comparado com outros países com menos problemas e sem migrantes, e o turismo vai abrir em força este verão. A Nova Democracia recuperou os votos de protesto que tinham ido para o Aurora Dourada, o partido de extrema-direita com recheio nazi, e os líderes da AD foram julgados e condenados por delitos criminais. (...)

 A direita não fez voto de pureza ou pobreza e é inimiga do coletivismo e do estatismo que tolhem a economia e a iniciativa privada. A direita dispensa pergaminhos de superioridade moral, o seu terreno é o sucesso económico capitalista que retira pessoas da indigência e do desemprego e legisla de modo a enriquecer o país e a sociedade. A esquerda ocupou o território das ordens mendicantes e do moralismo, como se viu pela questão do desfile no 25 de Abril.

Ora o que a direita portuguesa precisa é de demonstrar que as suas políticas económicas são melhores do que as da esquerda, que as suas políticas fiscais são distintas, que têm sólidos quadros económicos e políticos que invertam a tendência suicidária da estagnação e do aumento progressivo da dívida pública, que saneiam o Estado, reduzindo-o, e que acabam com o clientelismo partidário intensivo que gera a corrupção. Acima de tudo, que deem aos políticos condições salariais para fazerem da política uma carreira bem remunerada em vez de escolherem a via empresarial e que consigam atrair as novas gerações de economistas e gestores formados por duas excelentes escolas, a Nova Business School e a Universidade Católica, que foram obrigados a partir para cidades estrangeiras, Londres e Nova Iorque, para prosseguirem uma carreira que sirva o brilhantismo próprio em vez de se colocarem ao serviço dos partidos e das mediocridades sem currículo que mercantilizam o acesso ao chefe. O mérito português reluz no estrangeiro porque aqui não tem futuro. Aqui amanhecem os que não embarcam nas caravelas. (...)

Se a direita estiver condenada a Ventura, a esquerda estará condenada a mandar. Estudem, dizia-se. Estudem.»


MÃE

 Saudade


 

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Ourivesaria Costa


 O Sr. José da Costa, proprietário da Ourivesaria Costa na rua Ferreira Borges em Coimbra, tem 89 anos e trabalha na mesma loja há 75 anos, de forma ininterrupta. Nasceu na Baixa e na Baixa continua a viver e trabalhar. É um exemplo para todos os comerciantes. Hoje de manhã fez o favor de me mostrar uma série de fotografias antigas da Baixa de Coimbra e da praia fluvial que todos os anos era montada na zona da Portagem para fruição de milhares de pessoas. A qualidade das estruturas provisórias de madeira que eram montadas todos os verões para fruição das gentes de Coimbra era espantosa. 

Aqui fica uma dessas fotos :



quinta-feira, 29 de abril de 2021

Michael Collins

 Morreu o astronauta solitário da Apollo XI. Enquanto os dois colegas desceram à Lua, ele ficou sozinho na nave à volta da Lua. Tirou uma célebre fotografia em que aparece a superfície da Lua e a Terra ao fundo. Nessa ocasião ele era o único ser humano fora da fotografia.
Aqui o meu speedmaster que celebrou os 40 anos desse feito.


terça-feira, 27 de abril de 2021

Diário de Coimbra

 


KAMOV

 Sobre os negócios espantosos do Siresp e dos Kamov, Henrique Raposo escreveu já em 2017, no Expresso diário (nota: os bichos continuam no chão e ninguém pergunta nada a A. Costa):

«Como relembrou o jornalista Filipe Santos Costa no Expresso, o ministro António Costa e o secretário de estado Rocha Andrade adjudicaram o Siresp em 2006 quando tinham todas as cartas para extinguir o ruinoso negócio. Aliás, Costa e Rocha Andrade rasgaram o contrato original que vinha do governo Santana com base num parecer mais do que negativo da PGR. No entanto, renegociaram o Siresp nas bases técnicas e financeiras que se conhecem. Rocha Andrade volta a ser personagem no negócio dos Kamov, que é obscuro do princípio ao fim. Os Kamov foram contratados à Rússia (primeira perplexidade) e contra pareces técnicos (segunda perplexidade); os aparelhos foram entregues muito fora do prazo e "sob reserva" (terceira perplexidade). "Sob reserva" queria dizer que os aparelhos ainda não podiam funcionar - o que levou a nova espera de dois a t rês anos por aparelho. E aqui entra a quarta e derradeira perplexidade: apesar dos atrasos e falhas, apesar do consórcio já estai· em incumprimento, Rocha Andrade suavizou as penalizações da empresa (15% do valor possível) e aceitou pagai· mais cedo. No final deste festim de impunidade patrocinado por Costa, o Estado teve de alugar outros meios aéreos devido à inoperacionalidade dos Kamov, em 2007 tudo foi acelerado através de ajuste direto e a empresa criada por Costa para gerir os helicópteros (Empresa de Meios Aéreos) foi considerada pelo Tribunal de Contas como um exemplo de desperdício. Resta dizer que os Kamov continuam no chão, não voam.»

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Querida Baixa de então

 


Esta não é uma crónica sobre nostalgia, embora esteja seguro de que vai provocar alguma ou mesmo muita nalgumas pessoas. Sucede que numa destas noites sonhei com situações que se passaram comigo em duas lojas que se situavam na Baixa e que já não existem há muito. Quando acordei dei por mim a lembrar-me de mais algumas dessas lojas e devo confessar que fui atacado por uma enorme saudade.

Resolvi recordar aqui algumas dessas lojas, sem qualquer pretensão de rigor nem de ser exaustivo, já que se há algo que nos prega partidas é a memória, pelo que peço desde já desculpa pelas falhas que houver no texto. Certo é que de todas as lojas que vou referir guardo uma outra recordação pessoal, seja por alguma compra, seja pela interacção com os lojistas.

Vou, pois, convidar-vos a fazer uma piscina pelo canal e quem tiver mais de 50 anos percebe o que eu quero dizer com este convite. Quem não tiver…pergunte a alguém mais velho.

Ao lado da estátua de Joaquim António de Aguiar, o simpático «mata-frades» nascido ali bem perto, existia uma loja de tecidos, o «Novais», onde era possível escolher os tecidos das calças e dos casacos ou mesmo dos fatos, que se mandavam fazer um pouco mais à frente na Ferreira Borges no alfaiate Serafim ou no alfaiate Abito na Sá da Bandeira. Ainda na Portagem, lá estava a Hilda, casa de fotografia do Sr. Varela Pécurto que um dia, nos anos oitenta, foi comigo no helicóptero da BT da GNR fotografar as filas dos pontos de trânsito nevrálgicos de Coimbra, era eu funcionário autárquico.

Quando se queria comprar um «LP» havia a Valentim de Carvalho logo à entrada da Ferreira Borges onde a aparelhagem Rotel permitia ouvir com a maior qualidade. Mais adiante a discoteca da Novalmedina tinha a D. Adelina que tudo conhecia de filmes e músicas, principalmente de esquerda, claro…Na Visconde da Luz o Neves dos Vidros tinha o primeiro andar onde os pequenos estúdios permitiam fazer audição prévia dos discos e onde até o filho do dono, o saudoso Dr. Neves da Costa chegou, quando jovem, a ajudar na escolha.

O Arcádia e a Brasileira eram os cafés de excelência de Coimbra onde no primeiro se reunia a intelectualidade e a política e no segundo, além do café e conversa, se podia ir dar umas tacadas de bilhar no piso superior. Já na Central ia-se comer um éclair de chocolate e no Nicola do Sr. Abelha subia-se ao primeiro andar para comer uma meia torrada acompanhada por um galão depois de a Mãe ter ido ao cabeleireiro Salão Azul, mesmo em frente, escola da maioria dos cabeleireiros de hoje da nossa Cidade. Ao lado a Papelaria Cristal vendia canetas de boas marcas e lá se ia comprar a necessária régua de cálculo para as aulas de matemática do liceu.

Na Casa Amado escolhiam-se os tecidos de decoração para casa, na San Remo uma carteira e na Casa das Luvas as ditas ou outros complementos. Era sempre possível ir ver uma exposição de pintura à Galeria do Primeiro de Janeiro e, com sorte, encontrar o Mestre Mário Silva numa das suas apresentações extravagantes. E quase ao lado íamos cortar o cabelo à magnífica Barbearia Basílio com os seus enormes espelhos. Aqui coexistiam as três grandes livrarias da cidade para o mundo: a Atlântida, a Coimbra Editora e a Novalmedina.

No Último Figurino o Sr. Alfredo Coroado e o Sr. Fausto ajudavam a comprar vestuário da moda ou a escolher uma gravata de seda. Por cima, a boutique Delfieu tinha as últimas novidades mais modernas. A Loja das Gabardinas do Sr. Martins oferecia uma enorme possibilidade de escolha e o pronto-a-vestir incluía ainda ao fundo da Visconde da Luz a Nova Paris dos srs. Fonseca e Flaviano com a sua montra especial. Na Bambi no início da Rua Corpo de Deus íamos comprar as batas escolares e as sapatilhas Sanjo.

Deixando a Ferreira Borges, entrava-se na Visconde da Luz com as ourivesarias: a Patrão com o Sr. Elísio Patrão ajudado pelo Sr. Simões com ourivesaria e relojoaria incluindo a representação da Omega e em frente a Brinca igualmente com o nome da família proprietária estando quase ao lado a Santos do Sr. Santos.

O movimento de pessoas da Baixa justificava a existência do supermercado Colmeia e a Visconde da Luz fechava com a espectacular Perfumaria Galera do saudoso Sr. Ribeiro.


Fora do canal devo recordar o Carlos Camiseiro à entrada da Rua Eduardo Coelho ou “Rua dos Sapateiros” e toda a Rua Adelino Veiga ou «rua dos bazares» com o Hospital das Bonecas, o El Dorado onde o Sr.Manuel ajudava na escolha das malhas Sidney e calças de ganga de marcas variadas, o Saul Morgado que apresentava louça e vidros de todo os tipos nas galerias da cave e os bazares de Coimbra e de Lisboa que nos faziam sonhar com os comboios eléctricos e miniaturas de automóveis da Corgi Toys.

Propositadamente deixo para o fim algumas da lojas que resistiram heroicamente ao vendaval que levou tudo o que acima recordei. O Sr. Jorge Fernandes da Óptica Fernandes, o Sr. Marques da Casa dos Enxovais são queridos amigos que bem mereciam ser homenageados por uma Autarquia que defenda realmente os exemplos de cidadania, capacidade de luta por uma economia próxima e amor à Cidade. Tal como o Sr. José da Costa e o Sr. Cruz com as ourivesarias Costa e Ágata e os Braga com os seus chapéus. E porque os últimos são os primeiros, aqui presto homenagem sentida ao Sr. Cândido Carvalho e sua saudosa mulher Sra. D. Maria João da Loja das Meias (a verdadeira, a de Coimbra). Durante décadas receberam clientes sem olhar a diferenças sociais, sempre com uma simpatia e uma esmerada capacidade de acolhimento e conhecimento profissional que transformavam qualquer cliente num amigo, no que têm no filho um perfeito herdeiro.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Abril de 2021

Fotos recolhidas na internet

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Marquês improvável

 


Quem o tenha visto nas tv´s depois da longa leitura do despacho de pronúncia pelo Juiz Rosa terá certamente estranhado a satisfação e sentimento de vitória evidenciados pelo ex-primeiro-ministro José Sócrates. Afinal, ele acabava de ser pronunciado para ser julgado por seis crimes, três de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos e acusado com todas as letras pelo juiz de Instrução de ter sido corrompido, embora esse crime já estivesse prescrito. Segundo as palavras do próprio juiz Rosa, e para vergonha dos portugueses, José Sócrates andou mesmo a «mercadejar a sua personalidade» enquanto era primeiro-ministro de Portugal. Embora a acusação do Ministério Público o tivesse acusado de 31 crimes e o juiz de instrução Rosa tenha deixado cair 25 deles, deve ser difícil qualificar pior a acção de um ex-primeiro-ministro.

Os dias que entretanto passaram sobre aquela inédita leitura do despacho de pronúncia, durante várias horas em directo para as televisões, deixaram assentar alguma poeira e já permitem ter algumas leituras sobre o caso difíceis de ter em cima do acontecimento.

Desde logo, o juiz Rosa retirou da pronúncia todas as acusações de corrupção. Para tal, socorreu-se de um oportuno e muito discutível a diversos níveis, desde a matéria e suas implicações até aos subscritores passando pela data, acórdão do Tribunal Constitucional que faz, relativamente a uma determinada situação concreta, logo sem estabelecer jurisprudência mas realmente passível se ser invocado, uma determinada interpretação dos prazos de prescrição nos crimes de corrupção. Claro que, dado que o MP vai interpor recurso para o Tribunal da Relação, este poderá ter uma interpretação diferente, anulando as decisões do Juiz Rosa nesta matéria. Recorda-se, a propósito, o historial do Juiz Rosa no que toca a reversões das suas decisões por parte do tribunal da Relação: nos últimos quatro anos, foram pelo menos dezassete.

O Juiz Rosa encontrou as suas melhores justificações para anular as acusações de corrupção e crimes subsequentes como os de branqueamento de capitais, enquanto adjectivava o trabalho de anos de investigadores e Ministério Público como «delirante e fantasioso». Corruptores e corrompidos passaram num ápice a vítimas. Não se diga que o trabalho do MP é isento de falhas, parece estar longe disso, mas trocar as situações não parece ser nem justo, nem favorável para a imagem da Justiça portuguesa. Aguarda-se com curiosidade saber se o Tribunal da Relação irá aceitar que as entregas de 1,7 milhões de euros pelo «amigo» a José Sócrates consubstanciavam a verdadeira corrupção, acusação que parece ser essa sim, verdadeiramente delirante, fora de toda a lógica e com pouco rigor e consistência. E falta ainda o verdadeiro julgamento, para se poder dizer que a Justiça decidiu.


A jornalista Maria Antónia Paula. mãe do primeiro-ministro António Costa, perguntava-se há poucos dias no jornal Público: «Sócrates, porquê tanto ódio?», assim virando o bico ao prego e sustentando a habitual manipulação de sentimentos e lealdades políticas de Sócrates. Está no seu direito, mas faria melhor em perguntar como é possível um partido nacional com tantas responsabilidades como é o Partido Socialista seguir e propor ao país de forma cega e sem pensar dois segundos, um político que se definia a si mesmo com um «animal feroz» e que, desde o primeiro cargo governativo até ao fim, sempre alimentou suspeitas sobre a sua honestidade (freeport, face oculta e operação Marquês). Tudo isto enquanto se acumulavam sinais sobre uma insuportável mistura entre governação e economia (PT e BES) e se atirava o país para o mais desgraçado estatuto de protectorado de que temos memória com a pré-bancarrota e a chamada da troica. E a jornalista ainda pergunta porquê tanto ódio? A cegueira política tem que ter um limite. Colocando de lado a apesar de tudo possível hipótese da síndrome de Estocolmo e sem ter que sair da família socialista, vá perguntar, por exemplo a Ana Gomes, que ela explica-lhe como centenas de milhares de pessoas se sentem ludibriadas por Sócrates e por quem com ele colaborou sem fazer perguntas, nem quando apareceram fotografias da montra da loja mais cara e exclusiva de Beverly Hills com o nome do Primeiro-Ministro de Portugal José Sócrates como cliente.

Um processo de corrupção de um ex-primeiro-ministro não pode deixar de ter contornos políticos. Dizer muito simplesmente que se deve deixar à justiça o que é da justiça e à política o que é da política é, neste caso, apenas uma prova de refinado cinismo e hipocrisia. Como é evidente, a justiça faz parte da política. E, se os agentes da Justiça que em Portugal trabalham árdua e diariamente contra a corrupção vêem sistematicamente abrir-se os mais diversos alçapões para safar políticos corruptos, isso deve-se sobretudo, não aos princípios penais gerais, mas aos pormenores que na legislação são metidos sem vergonha pelos principais partidos. E os alçapões permitem ir atrasando os processos com é visto neste: Sócrates foi preso há sete anos e só agora saiu uma acusação, e mesmo essa com os problemas que se vêem.

Mas, se há algo que é verdade em democracia, é que o que pode prescrever são os políticos. Não a Justiça.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 de Abril de 2021

Fotos retiradas na internet