segunda-feira, 22 de abril de 2013

UM PAÍS A PRETO E BRANCO



“A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de ...  abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.” – Do preâmbulo da Constituição da República Portuguesa.

As leis vêm quase sempre acompanhadas por um preâmbulo que explica o contexto do seu surgimento e objectivos a que se propõe e tem muitas vezes a função de servir de chave interpretativa do que fica escrito na Lei. O mesmo sucede com a nossa Constituição. A decisão do Tribunal Constitucional de declarar inconstitucionais quatro medidas do Orçamento Geral do Estado para este ano foi formalmente baseada na defesa do princípio da Igualdade, defendendo os direitos dos funcionários públicos perante os outros trabalhadores, mas não deixa de estar em consonância com a abertura do caminho para uma sociedade socialista, já que historicamente mais socialismo é igual a mais Estado e menos Iniciativa Privada. E parece-me que a maioria dos cidadãos se terá esquecido que a nossa Constituição, mesmo depois de todas as revisões que sofreu, ainda contém o preâmbulo que acima cito.
O processo deliberativo do Tribunal Constitucional que levou àquela decisão merece ser mais bem conhecido, até porque levou o Governo a ter que desencantar mais 1300 milhões de euros para restaurar o já por si difícil equilíbrio das contas do Estado. Ao contrário do que o seu nome poderá levar a crer, o Tribunal Constitucional é um órgão político. De facto, dez dos seus juízes são indicados pela Assembleia da República. Curiosamente, os outros três, que são cooptados, votaram todos contra a inconstitucionalidade das normas em questão, com excepção do Artº 117 referente à contribuição nos subsídios de desemprego e doença em que só um deles votou pela constitucionalidade. Dos dez juízes nomeados politicamente, os indicados pelo PS votaram em bloco pela inconstitucionalidade e os indicados pelo PSD dividiram-se. Em suma, tirando o Artº 117, o resultado foi sete contra cinco e uma “abstenção”. Tudo menos unanimidade na definição da tal inconstitucionalidade do tratamento “desigual” de funcionários públicos, havendo no entanto clareza cristalina num aspecto: todos os juízes do TC seriam prejudicados financeiramente, caso optassem pela constitucionalidade da retirada do subsídio de férias.
Se membros da maioria governamental andaram mal quando antes da decisão do Tribunal Constitucional tentaram de forma óbvia influenciar o sentido da decisão, muito mal andaram oposicionistas quando partiram logo para a consideração do Governo como ilegal exigindo o fim imediato da austeridade. Acontece que estamos a mais de metade do caminho definido no Memorando de Entendimento assinado com a Troika pelo governo anterior. É certo que a economia tarda a recuperar e o desemprego atinge níveis trágicos nunca antes vistos. Mas o aumento da produtividade nacional é um facto, bem como a descida do défice das contas públicas e, curiosamente, Portugal tem agora excedente de exportações sobre importações, o que não sucedia há décadas.
Em resultado da decisão do Tribunal Constitucional, analistas estrangeiros comentaram que Portugal tem a última constituição socialista da Europa. Mal eles sabem como têm razão, já que se conhecem as justificações da decisão, certamente não leram nunca o preâmbulo da Constituição que os esclareceria sobre o espírito que enforma a nossa lei fundamental. A tão falada reforma do Estado tem mesmo que começar por aqui, a sério, em vez de se andar a brincar às reformas de Freguesias.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Abril de 2013

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