segunda-feira, 10 de abril de 2017

Ferida antiga que resiste a sarar: a escravatura




 A consideração de que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos” é de 1948 e constitui o texto do Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A escravatura é, talvez, uma das chagas mais profundas, impressivas e duradouras da Humanidade, ao longo da sua História e das que mais fazem sentir a necessidade da afirmação primeira da Declaração dos Direitos Humanos.
Se no início surgiu como uma das consequências das guerras, em que os sobreviventes do lado dos derrotados eram quase sempre feitos escravos ao serviço dos vencedores, evoluiu posteriormente para outras formas, mais ligadas ao racismo e ao poderio político/económico.
Quando os portugueses navegaram pela costa africana até atingir as Índias foram estabelecendo pontos de comércio que rapidamente incluiu os escravos que lhes eram trazidos na sequência de lutas tribais no interior, negócio até aí detido pelos árabes que dirigiam os escravos para o norte de África e daí para a Europa. Desde o século XV até meados do século XIX, o negócio da escravatura na costa africana desenvolveu-se de uma forma impressionante, calculando-se que nesse período saíram dali cerca de 12 milhões de homens e mulheres para as Américas. As condições de transporte nos navios eram de tal ordem que, daquele total, dois milhões saíram de África, mas nunca chegaram à América.

As rotas eram várias, usando como pontos principais de embarque da mercadoria humana a Guiné com passagem por Cabo Verde, a Mina através fortificação de S. João da Mina construída pelos portugueses mas depressa tomada pelos holandeses, Angola de onde se estima que, juntamente com o Congo, terão saído 40% dos escravos idos como mão-de-obra para as américas e Moçambique de onde foram levados muitos africanos para o Rio de Janeiro, no Brasil.
Não se pense que os portugueses estiveram sozinhos nesta actividade vergonhosa que, durante vários séculos, forneceu com mão-de-obra escrava os campos de algodão, açúcar e café das américas. Estiveram bem acompanhados por ingleses, franceses, espanhóis e holandeses.
O comércio de escravos só viria a ser internacionalmente abolido em 1836, depois de uma primeira condenação no Congresso de Viena, em 1815. A Inglaterra aboliu a escravatura em 1833, compensando financeiramente os donos dos escravos. Em Portugal a escravatura foi abolida na década de 1850 por um decreto do Marquês da Sá da Bandeira, mas a sua extinção só ocorreu oficialmente em 1878. Mas na década de 1940 ainda se discutia entre nós um “Estatuto do Indigenato” que denuncia, para além de um tratamento dos africanos obviamente derivado de atitudes racistas, uma organização específica do seu trabalho que não andava muito longe da escravatura.
Hoje em dia permanecem várias formas de escravatura, que têm sido denunciadas como “escravatura moderna”. O papa Francisco tem sido muito veemente na denúncia das novas formas de escravatura causadas pela pobreza, pelo subdesenvolvimento e pela exclusão, combinadas com a falta de acesso à educação, apontando os exemplos da prostituição e do tráfico de órgãos. Não se podem esquecer igualmente os “refugiados” que nas suas viagens sofrem a fome, se vêem despojados da liberdade e dos seus bens e são vítimas de abusos físicos e sexuais.
Instituições que se dedicam à denúncia das novas escravaturas, apontam para a existência, em 2016, de quase 46 milhões de pessoas nessas condições nos 167 países constantes do “The Global Slavery Index”. Felizmente Portugal, juntamente com a quase totalidade dos países europeus, encontra-se nos últimos 20 lugares dessa lista de países em que, nos infames lugares cimeiros absolutos, surgem a Índia, a China, o Paquistão, o Bangladesh e o Uzbequistão. Em termos percentuais juntam-se-lhes a Coreia do Norte, o Camboja e o Qatar. Não nos podemos distanciar deste problema, desde logo por princípio, mas também porque vários destes países fornecem a mão-de-obra barata que produz bens consumidos na Europa, na América do Norte, no Japão e na Austrália.
Para vergonha da Humanidade, a escravatura existiu e existe ainda hoje. Muitas pessoas não estarão conscientes do que significou no passado e, muito menos, das formas de que se reveste ainda hoje. Nenhum de nós é responsável pelo que os nossos antepassados fizeram há centenas de anos, mas já o somos pelo que acontece ao nosso lado ainda hoje, virando a cara e seguindo em frente como se não tivéssemos nada a ver com isso.

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