Embora haja quem discorde, quanto a mim existe mesmo a "grande música". Para além de muitos outros compositores, basta ouvir Mahler para se saber imediatamente que isso é verdade. Todos nós teremos certamente trechos musicais que nos acompanham quase desde sempre. Pela minha parte há dois compositores que desde há muitos anos trago permanentemente no carro, primeiro através das cassetes, depois pelos CDs e agora através do leitor de MP3.São eles Bach e Mahler, concretamente através da Cantata BWV 106 conhecida por "Actus Tragicus" e os Concertos Brandeburgueses do primeiro e pelo "Adagietto" da quinta sinfonia, pelo canto do quarto andamento da quarta sinfonia e por toda a primeira sinfonia de Mahler. Não poderei dizer nunca que estas músicas serão suficientes para a satisfação da minha necessidade musical, mas que me acompanham sempre, isso é verdade.
Como não sou especialista, não identifico claramente as razões interiores à estrutura interna das músicas que me levam a gostar mais de umas ou de outras. Mas é um facto que desde que me foi dado ouvir Mahler fiquei instantaneamente rendido à sua música.
Se levou a sua leitura desta crónica até este ponto, o leitor perguntar-se-á provavelmente por que razão estarei para aqui a partilhar gostos pessoais de música. Acontece que a música é uma forma de arte muito própria e completamente diferente das outras. A música entra-nos pelos ouvidos, invade-nos o cérebro e podemos "fechar" todos os outros sentidos, que a música continua. A música "vive" assim completamente dentro de nós e provoca-nos sentimentos íntimos e pessoais como provavelmente nenhuma outra forma de arte. Não há pois outra maneira de abordar este tema senão através da partilha de alguns dos nossos gostos.
Fez no início deste mês 150 anos que nasceu Gustav Mahler. Morreu novo, com 50 anos, e a sua carreira musical verdadeiramente excepcional desenvolveu-se essencialmente como maestro. Era um maestro perfeccionista até ao limite e de uma exigência extrema dos seus músicos, que costumava dizer: "na vida, faço todas as concessões; na arte, não faço nenhuma".
Viveu num período particularmente conturbado da História, que foi a transição do século XIX para o século XX. Nasceu também numa zona particularmente exposta a conflitos sociais, étnicos e políticos: a Boémia. Tendo nascido pobre e judeu e sofrido com todas as dificuldades inerentes a essa condição, tornou-se um maestro respeitadíssimo desde muito novo e chegou a Maestro Titular da Ópera Imperial de Viena com tudo o que isso significava à época. Dirigiu ainda a Metropolitan Opera de Nova Iorque. Com uma vida ocupadíssima como maestro, ficava-lhe pouco tempo para compor. Ainda assim, deixou-nos um legado musical que marca a História da Música de forma indelével, tendo feito a transição da música antiga e do romantismo para o modernismo do século XX com acordes dissonantes e novas sonoridades, pertencendo em simultâneo a esses mundos tão diferentes.
A exigência e rigor extremos que praticava enquanto maestro, verificam-se com igual grau nas suas composições. Nota-se nelas um rigor e um despojamento de artificialismo tais que a sua beleza é indescritível. A complexidade e estrutura das suas obras exigem que seja interpretada por orquestras sinfónicas completas. Uma das suas sinfonias, a oitava, é mesmo conhecida pela "sinfonia dos mil" pelo número de intérpretes que exige para a sua interpretação entre orquestra, solistas e corais. Felizmente, hoje em dia temos os suportes musicais mais variados que nos permitem apreciar a música de Mahler onde e quando queremos. Estimado leitor, não deixe que a "balbúrdia musical" que hoje invade constantemente os nossos ouvidos substitua a Grande Música e ouça Mahler, que vale a pena.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Julho de 2010
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