É comum considerar que o desenvolvimento das sociedades é sempre acompanhado por uma evolução das mentalidades. Mas muitas vezes isso não é verdade. Particularmente quando se confunde desenvolvimento com simples crescimento económico. De facto, quando se investe essencialmente em infra-estruturas (a partir de certa altura equipamentos acessórios ou mesmo redundantes) e não no conhecimento e na Educação, favorece-se a ocorrência de desfasamento entre uma aparente qualidade de vida e as atitudes das pessoas. É aquilo a que hoje se chama diferença entre “software” e “hardware” que, em termos sociais, faz ressaltar velhos e anquilosados preconceitos dos que se consideram a si próprios “donos” de alguma coisa e tentam impor aos outros as suas próprias vontades.
Lembro-me dos donos da Constituição. Depois de várias revisões feitas desde 1976 que foram todas no sentido contrário ao da vontade dos que na altura chegaram a sequestrar a Assembleia Constituinte para evitar que ela saísse, os mesmos aparecem ainda hoje como os seus donos. Se alguém se atreve a colocar em causa algum princípio em função da evolução política, social e económica do país e do mundo, aqui d’el-rei, que é neo-liberal!
Temos ultimamente os donos do “Estado social”. Perante quem pretende corrigir injustiças óbvias que funcionam sempre contra os mais desfavorecidos, acudam, que querem destruir o Estado Social.
Existem igualmente os donos do politicamente correcto. Não se pode dizer bicha em vez de fila, nem preto em vez de “de cor” que, como se sabe, até pode ser branco, amarelo ou vermelho. Não se pode dizer Homens ao falar da Humanidade e sim homens e mulheres; qualquer dia, temos que acrescentar mistos, quando nos dirigirmos a uma assistência.
Depois temos os donos da correcção do vestuário (incluindo calçado e cor das meias). No século XXI temos ainda quem se arrogue o direito de criticar os outros pela indumentária que escolhe. Pior ainda, quem se ache no direito de classificar ou mesmo insultar politicamente os outros, em função do que escolhe vestir. Claro que em tempos que já lá vão e se espera não voltem, criticavam-se os jovens por usarem cabelo comprido e se vestirem com cores garridas. Felizmente, hoje em dia a liberdade de escolha chegou também ao vestuário. Mas resistem alguns que, agora ao contrário, criticam os outros por usarem a roupa de que gostam, seja uma gravata ou um laço. Ainda a propósito daquele célebre sequestro da Constituinte, lembro-me de José Luís Nunes, excelente e saudoso constituinte socialista, ser insultado pelos “operários da cintura industrial” e mesmo por alguns colegas de bancadas mais à esquerda e retorquir que não faltava mais nada ter que mudar de indumentária só por causa dos arroubos revolucionários daquela gente. E tinha toda a razão, acho eu.
Há também os donos da verdade, que acham que nunca se enganam, provavelmente porque nunca leram um livro de filosofia. Felizmente e para azar deles, já que a verdade tem muitas cores, a História vem sempre provar que se enganaram muitas vezes, embora raramente o reconheçam.
Há mesmo os donos de pessoas que, por uma razão ou por outra, pensam que ficam donos de alguém para toda a vida. As relações entre as pessoas, particularmente as que envolvem afectos que não são contratualizáveis, têm que ser construídas diariamente. Os filhos por exemplo, não pertencem aos pais, ao contrário do que muitos julgam. Os pais devem apenas tratar deles o melhor possível enquanto os filhos deles dependem, dando-lhes asas para poderem voar o mais alto e longe possível.
Muitos “donos” há por aí. Na maior parte das vezes são apenas donos do seu próprio umbigo que lhes parece ser do tamanho do universo, não tendo humildade para reconhecer que “somos todos humanos, demasiado humanos”, e que a vida é muito curta para ser gasta a olhar apenas para o espelho e a perguntar “se há alguém mais belo do que eu”.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Outubro de 2010
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