É raro, mas de vez em quando deparamo-nos subitamente com uma obra de arte que nos deixa absolutamente esmagados pela capacidade humana de elevar o espírito acima das tristes e desoladoras manifestações de inveja, mesquinhez e capacidade de perseguir os semelhantes do nosso dia-a-dia.
Como disse, sensações dessas são raras, mas felizmente acontecem. Sucedeu-me, por exemplo, a primeira vez que me defrontei com a Guernica de Picasso. E também com Las meninas de Velasquez e a Pietà de Miguel Ângelo.
Há poucos dias deparei-me com uma obra-prima absoluta que, certamente pela minha deficiente cultura, desconhecia que existia: a ópera que Vivaldi compôs sobre um dos trabalhos de Hércules: ERCOLE SUL TERMODONTE. Em mais um dos trabalhos que aceitou fazer, a fim de que Eristeu lhe permitisse partir definitivamente de Argos, após todas as tragédias por que tinha passado, Hércules partiu para a Capadócia a fim de buscar o cinturão de Hipólita, rainha das Amazonas. Após uma série de enganos e mentiras, as Amazonas entraram em guerra com o exército de Hércules tendo-se travado violenta batalha nas margens do Rio Termodonte de que resultou a morte das Amazonas e da sua rainha Hipólita. O objectivo que poderia ter sido conseguido facilmente e sem derramamento de sangue, só foi atingido por uma enorme tragédia. Mas de novo o gigante Hércules provou ser imbatível e regressou a casa com mais uma tarefa cumprida.
Foi sobre esta história que Vivaldi compôs a sua ópera verdadeiramente excepcional, que foi originalmente apresentada em Roma, no Teatro Capranica em 1723. Nesta cidade, por influência da Igreja, as mulheres não podiam então pisar o palco (nada que nos possa admirar aliás, se olharmos ao papel secundário que ainda hoje a Igreja reserva às mulheres). Os papéis femininos eram então dados a homens a quem, para conseguirem as vozes femininas, eram cortados os seus órgãos genitais: os famosos CASTRATI. O sucesso da nova ópera de Vivaldi foi estrondoso, tendo sido considerada uma autêntica revolução nessa arte. Felizmente, temos hoje a possibilidade de ouvir esta obra-prima, porque o libretto original do Teatro onde foi apresentada pela primeira vez foi integralmente conservado e as árias individuais foram guardadas em várias bibliotecas.
Os antigos mitos gregos exerceram grande influência da nossa cultura ocidental. Os trabalhos de Hércules mostram como, ao longo da vida, se torna necessário ultrapassar dificuldades diversas. Se umas são mais fáceis e se resolvem com relativa facilidade outras há que, pela sua complexidade exigem destreza, compreensão das circunstâncias e mesmo capacidade de ultrapassar obstáculos que, à partida, pareciam intransponíveis. Momentos há em que a força moral e mesmo a física parecem chegar ao seu limite e descobrimos tantas vezes que ainda temos mais para dar.
Passamos todos nós, nesta altura, por um momento de desânimo nacional, em que apenas se parece discutir a ajuda que os estrangeiros nos podem dar para sair da crise que nós próprios criámos. Haja consciência de que não há tarefas impossíveis. Tal como Hércules, temos que tomar consciência da realidade das tarefas, apetrecharmo-nos dos meios necessários (incluindo financiamento nas melhores condições possíveis) e ter a capacidade e vontade de ultrapassar as dificuldades. Por nós próprios.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Abril de 2011
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