Da Europa de Leste chega, de novo, o som dos tambores de guerra. O conflito entre a Federação Russa e a Ucrânia ameaça sair dos salões diplomáticos e passar a uma fase militar de consequências imprevisíveis, mas que seriam sempre trágicas para as populações, a começar pelas locais.
A recordação dos eventos de há cem anos que levaram às duas denominadas guerras mundiais deverá estar sempre presente, por circunstâncias que poderiam parecer menores saírem fora do controlo e levarem a tragédias de dimensão dantesca. O assassinato do arquiduque herdeiro do Império Austro-Húngaro Francisco Fernando em Sarajevo, na Bósnia, em 28 de Junho de 1914 não parecia conter, só por si, os ingredientes para levar toda a Europa e parte do mundo a uma guerra. Mas o que aconteceu foi isso mesmo, provocando uma hecatombe de dezenas de milhões de mortos militares e civis e o desaparecimento de quatro impérios. Oficialmente, a Segunda Guerra Mundial começou com a invasão alemã da Polónia em 1 de Setembro de 1939 com a consequente declaração de guerra pela França e pela Inglaterra. Contudo, em Março desse mesmo ano Hitler havia já invadido e ocupado a Checoslováquia sem que tivesse havido qualquer reacção internacional. A fim de conter os ímpetos imperialistas do regime nazi, a Inglaterra e a França tinham acordado com a Alemanha o Pacto de Munique em Setembro de 1938, concedendo a Hitler o «direito» a ocupar o chamado país dos sudetas na defesa do que chamava «o espaço vital da Alemanha» o que, na prática, o autorizava a invadir a Checoslováquia, algo considerado de menores consequências. O que se passou a seguir todos nós, infelizmente, sabemos o que foi.
A Ucrânia é um vasto país (com os seus mais de 600.000 km2 é mesmo o maior em território exclusivamente europeu) com fronteiras a Leste com a Rússia, a Sul com os mares Negro e de Azov, a Moldávia e a Roménia, a Norte com a Rússia e a Bielorrússia e a Ocidente com a Polónia, a Eslovénia e a Hungria. Trata-se de um país com civilizações de milhares de anos, considerado o celeiro da Europa, que tem o azar de se situar na confluência de impérios e rota de invasões várias.
Este país que sempre nos foi estranho, a nós portugueses, tornou-se-nos familiar nos últimos trinta anos pela vinda de milhares de ucranianos e ucranianas que para cá vieram viver, a maioria temporariamente, para fugir às tensões políticas e carências que se fizeram sentir no seu país, em particular após 1991. E penso não estar errado se dizer que na generalidade se trata de pessoas afáveis, educadas, trabalhadoras e de uma grande simpatia.
Foi de facto em 1991 que a Ucrânia se tornou um país independente, depois da desagregação da antiga URSS. O fim da «guerra fria» ditou profundas alterações no leste europeu, tendo muitos países do antigo Pacto de Varsóvia decidido integrar a União Europeia com grande sucesso no seu crescimento económico, diga-se mesmo. Hoje em dia, dos países que confinam com a Ucrânia somente a Rússia, a Bielorrússia e a Moldávia não fazem parte da União Europeia. Contudo, o apelo ocidental é fortíssimo, o que se traduz numa hipersensibilidade russa que nunca abandonou as suas tendências imperialistas de séculos. Situação que se torna ainda mais complicada porque muitos desses países, para sacudir a pressão russa, decidiram integrar igualmente a NATO, sendo essa uma organização militar que prevê a ajuda colectiva a qualquer membro atacado. E, neste momento, dos países vizinhos da Ucrânia só aqueles três acima referidos não fazem também parte da NATO, com a circunstância de, a Sul do Mar Negro se situar a Turquia, também membro da NATO.
A partir do momento em que a Ucrânia manifestou interesse em aderir à NATO, no que parece ser um direito de soberania seu, o conflito latente com a Federação Russa tornou-se efectivo. Putin não aceita sequer uma moratória de vinte anos para a integração da Ucrânia na aliança militar ocidental e começou a deslocar tropas e material bélico para a fronteira dos dois países e mesmo para a sua aliada Bielorrússia cuja fronteira com a Ucrânia está a escassas dezenas de quilómetros de Kiev, a capital ucraniana. Tudo leva a crer tratar-se da defesa de outro «espaço vital» que vem adicionar-se aos conflitos que em 2014 levaram à anexação da Crimeia pela Rússia e a conflitos permanentes nas designadas «repúblicas» de Donetsk e Luhansk.
Os sinais são todos de um perigo efectivo, potenciado pela falta de democracia dos três países em causa e mesmo por episódios anteriores com o actual e o anterior presidentes americanos e por alguma atitude militarista exagerada dos responsáveis da NATO. A União Europeia sofre de vários males, dos quais um dos menores não será a falta de uma política comum de defesa e mesmo de capacidade militar efectiva, a que acresce a dependência energética da Rússia cuja economia depende hoje quase exclusivamente desse factor. Um conflito bélico entre a Rússia e a Ucrânia poderia muito facilmente alastrar ao resto da Europa, tal como há cem anos. Cabe a nós europeus, -em cada um dos nossos países, exigir dos governantes atitudes firmes mas sensatas perante os interesses dos dois países em disputa, com consciência viva do perigo que espreita de novo.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 31 de Janeiro de 2022
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