O rapazinho com cerca de dez anos tinha acabado de, por má utilização, partir um apoio de uma máquina doméstica recém-comprada. Com os seus conhecimentos limitados pensou que com a chamada “cola-tudo” resolveria o caso. Quando o seu Pai verificou que a enceradora nova tinha uma peça partida e colada, decidiu reclamar junto do vendedor e o rapazinho calou-se, não assumindo a sua responsabilidade no caso. Quando o Pai, para quem a verdade sempre tinha sido algo de sagrado, regressou da loja com a informação de que o vendedor iria apresentar o caso ao fabricante, o rapaz decidiu contar o que tinha acontecido. O caso resolveu-se com a informação ao comerciante do que tinha realmente acontecido e a tomada de consciência, pelo jovem, de que a mentira tem sempre perna curta, tendo ficado para sempre com uma relação muito difícil com a mentira e para com quem tem relação fácil com a mentira, digamos assim. Aqui chegados, devo esclarecer quem foi o rapaz que naquela altura da sua curta idade pensou que seria mais fácil calar o sucedido, assim mentindo: foi o autor destas linhas que, passados quase 60 anos sobre o sucedido, nunca o esqueceu.
Assistimos hoje ao que parece ser uma completa inversão de valores, quando a mentira se torna absolutamente aceitável se permitir alcançar o objectivo pretendido, havendo apenas uma preocupação, que é a de não se ser apanhado.
Claro
que, em política, nunca é de esperar que a verdade seja um valor sagrado. Todos
os políticos profissionais sabem que ao apresentarem a realidade aos eleitores
sem pelo menos dourarem um pouco a pílula, nunca ganharão eleições, a não ser
em situações muito específicas e de perigo imediato. Winston Churchill é o
exemplo acabado disso. Enquanto Hitler ia fazendo das suas na Alemanha bem foi
avisando do perigo que dali vinha para todos, que ninguém o quis ouvir. Só
quando a Europa estava toda a arder e as Ilhas Britânicas quase a serem também
invadidas é que os seus concidadãos lhe confiaram os destinos do país, quando
ele os informou de que só lhes poderia prometer “sangue, suor e lágrimas” e
foi, de facto, o que lhes deu ao não se submeter aos desígnios nazis. Para,
logo que a guerra acabou, o despedirem sem apelo nem agravo nas primeiras
eleições que se seguiram. Aliás, o Reino de S. Majestade foi ainda recentemente
palco de uma vaga de mentiras do mais desbragado populismo que levou à sua
saída da União Europeia numa decisão evidentemente democrática porque ditada
pelo voto popular, mas constituindo um erro crasso de que a maioria do povo
estará já arrependida. As promessas que então lhes foram feitas de melhor
futuro não passavam de um engodo bem montado que se vieram a revelar, tarde
demais, como impossíveis de alcançar porque completamente desfasadas da
realidade.
A generalização e mesmo banalização da mentira como instrumento político é por demais evidente. Governantes e agentes políticos dos mais diversos níveis e quadrantes bem se podem achar muito inteligentes ao fazê-lo, mas mais não fazem do que corroer a democracia, escancarando as portas, eles sim, aos cavaleiros do apocalipse da ditadura. Uns mentem, objectivamente ou por omissão porque não têm coragem de dizer ao que vão temendo que tal não traga votos. Outros mentem quando tentam manipular a realidade, distorcendo números ou escondendo parte deles, os que mostram as suas incapacidades ou mesmo incompetências.
A evidência empírica mostra-nos que estas situações não podem durar para sempre e a realidade acaba sempre por se impor. Como dizia Abraham Lincoln, "É possível enganar algumas pessoas todo o tempo; é também possível enganar todas as pessoas por algum tempo; o que não é possível é enganar todas as pessoas todo o tempo.
O problema é que a mentira parece uma droga: depois de se habituarem a ela, dificilmente as pessoas se livram dela. Por outro lado, as actuais ideias pós-modernas ajudam, já que se difunde a ideia de que não existe verdade ou mentira, tudo dependendo do ponto de vista. Nada de mais errado, claro está. Não é o facto de estarmos a partir da Terra a observar o movimento do Sol que põe este a girar à nossa volta. Mas será que, nos nossos dias, Galileu voltaria a ter de negar aquilo que para ele era uma evidência científica?Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 de Maio de 2023
Imagens recolhidas na internet