Nos anos 90 costumava estar estacionado no Aeródromo de Coimbra um pequeno avião monomotor. Era o meio de transporte usado pelo administrador alemão da unidade de produção de Aspirina da farmacêutica Bayer situada em S. Martinho do Bispo. Com a família a residir em Cascais, ele próprio pilotava o avião para vir trabalhar em Coimbra e no fim de semana voar para casa, de forma mais rápida e segura.
Por volta da mudança de século a Bayer decidiu alterar a sua política fabril e, em consequência, fechar a pequena fábrica em Coimbra. Pareceria que a parca indústria farmacêutica de Coimbra iria sofrer um rude golpe. Mas, surpreendentemente, o arrojo, a capacidade de iniciativa e de empreendedorismo de alguns jovens alterou o rumo da História. Paulo Barradas agregou a si Sérgio Simões, Isolina Mesquita vinda da Bayer e Miguel Silvestre para propor à Bayer a compra da fábrica, mantendo os seus funcionários. Assim nasceu a Bluepharma que iniciou as suas actividades em 2001, com 58 colaboradores. Em contrapartida, a Bayer comprometia-se a adquirir a produção das Aspirinas aqui produzidas durante sete anos, garantindo assim um período de adaptação. Contudo, a visão empreendedora destes gestores levou a que menos de três anos depois a Bluepharma já não estivesse dependente dessa garantia de compra dos seus produtos. E, a partir daí, o crescimento da Bluepharma é algo de impressionante, mas que na realidade só surpreende quem não conhecer os seus gestores. A fábrica original cresceu, em 2023 foi inaugurada uma nova unidade industrial em Eiras, que representou um investimento de trinta milhões de euros, para produção de formas sólidas orais potentes, tendo em vista essencialmente o tratamento de cancros. A Bluepharma prepara ainda um novo investimento que será o “Coimbra Life Sciences Park” a instalar em Cernache onde, em tempos existiu a cerâmica Poceram, tendo já garantido boa parte do capital a investir, num total de mais de cem milhões de euros.
Tudo isto em pouco mais de vinte anos. O número de trabalhadores passou dos 58 iniciais para mais de 700. Mais impressionante, destes, 67% têm graus de formação superior (licenciatura, mestrado ou doutoramento). A Bluepharma produz medicamentos próprios e para terceiros, procede à investigação, desenvolvimento e registo de novos medicamentos e ainda fabrica e comercializa medicamentos genéricos. Nesta última área, uma função importante é o desenvolvimento do processo produtivo dos genéricos já que, se a fórmula da molécula se torna pública, a maneira de obter o medicamento comercializável com segurança não o é. A Bluepharma é hoje um grupo farmacêutico com vinte empresas que já está na Europa, em África e nos EUA. Em 2022 exportou 89% da sua produção para mais de 40 países.
Há ainda um aspecto deste sucesso empresarial que não tem sido devidamente relevado. Na realidade, Coimbra já teve uma área industrial importante, nomeadamente nas áreas da alimentação, cerveja e cerâmica. Tudo isso desapareceu, levado pelas circunstâncias históricas. Nos últimos anos tem-se desenvolvido em Coimbra toda uma área extremamente sofisticada ligada ao software, com várias empresas a marcar cartas a nível mesmo mundial. Mas a desmaterialização da economia tem um aspecto socialmente fragilizante. Nós somos feitos de matéria, precisamos de nos alimentar, de vestir, de nos deslocarmos, de ter onde nos abrigar e de nos tratar quando doentes. Tudo isto precisa de produção industrial e mesmo de agricultura. A informatização é cada vez mais necessária para nos facilitar a vida e até ajudar à produção de bens. Mas não nos substitui nem faz desaparecer a necessidade de produção industrial.
A Bluepharma é a prova de que Coimbra tem capacidade para ultrapassar dificuldades circunstanciais, mesmo económicas e políticas e de se reinventar. A junção da ambição do empreendedorismo com o conhecimento técnico e científico e total independência dos poderes políticos pode ser a chave para o sucesso industrial, mesmo num tempo em que os serviços parecem ser o único factor económico de sucesso.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Agosto de 2025