segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Anjos, ou nem assim tanto

 

Não há Verão que não tenha a sua parte de “silly season”. Mesmo no “Verão quente” de 1975, passam agora 50 anos, houve cenas que apelavam mais para o disparate inconsequente do que para a seriedade do que se passava no país. Já neste Verão de 2025 temos o julgamento do processo que opõe a dupla de cantores constituída pelos irmãos Rosado sob a designação “Anjos” e a humorista Joana Marques.

Quando soube da queixa nem queria acreditar, julgando que se tratava de mais uma das formas de publicidade que para aí abundam, com o objectivo de obter os tais “cinco minutos de fama” que garantissem mais casas cheias ao grupo. Como a minha ignorância sobre certas formas de música é muito grande, pensei que a banda “Anjos” até fosse constituída por dois jovens, que é o habitual entre bandas de irmãos. Mas não, os irmãos Rosado são dois homens maduros que assim ganham a vida, e fazem eles bem, que a dita vida está difícil para toda a gente.

Contudo, a força das notícias sobre o tal processo judicial foi de tal impacto que fui fazer o que julgo ter feito a maioria dos portugueses: procurei informar-me sobre o caso. E ainda mais espantado fiquei. Os “Anjos” processavam a humorista por causa de um vídeo por ela publicado em que fazia o que lhe é habitual: expunha o ridículo de algo. No caso, uma actuação obviamente falhada do duo cantor na interpretação do hino nacional antes de uma prova desportiva de motos, no Algarve. Dois anos antes da causa em Tribunal.

Dois motivos se me apresentaram para justificar a ida a Tribunal por causa de tal matéria. Desde logo, algo muito próximo de litigância de má-fé, utilizando os “Anjos” a Justiça com o objectivo de prejudicar a humorista, daí tentando retirar lucros financeiros pedindo uma indemnização de mais de um milhão de euros por supostos prejuízos sofridos. Claro que a banda canora tem toda a liberdade para se queixar na justiça, mas não me parece que o Tribunal vá nesta conversa, por mais queixas de acne que apresentem. É apenas ridículo.

Mas há outra possível razão e esta será mais séria. É claramente perceptível na sociedade portuguesa uma intolerância crescente. Nota-se isso no comportamento de demasiadas pessoas, seja na rua, em restaurantes ou na circulação automóvel. À mínima situação que normalmente provocaria apenas alguma manifestação de desagrado, salta imediatamente uma violência verbal desmedida, quando não mesmo física. Claro que, nas redes sociais, isso é mesmo o dia-a-dia provocando um acantonamento social que, cada vez mais, isola as pessoas nos seus grupos políticos, sociais ou familiares, na prática impedindo qualquer debate ou mesmo conversa séria.

A intolerância à crítica é uma das consequências deste comportamento que se generaliza na nossa sociedade. Chega mesmo a raiar a vontade de censurar toda e qualquer manifestação de opinião própria desfavorável, pior ainda se essa crítica se revestir de humor. Devemos reconhecer que Portugal viveu durante muito tempo num ambiente fechado, desfavorável à liberdade de expressão. Durante uns três séculos a Inquisição zelou para que isso fosse habituando os portugueses a encontrar processos escondidos para encontrar caminhos diferentes da norma oficial. Na primeira metade do sec. XX o Estado Novo também não foi capaz de encontrar outra maneira de impor a sua “verdade” que não pela censura oficial.

Nos últimos 50 anos todos fomos aprendendo a viver democraticamente, aceitando opiniões diversas e a viver pacificamente com a crítica. De vez em quando os humoristas lá tinham algum percalço no caminho, mas apenas quando se metiam com alguma instituição mais fechada. Nunca por criticarem as actuações de artistas, fossem músicos, pintores ou escritores. Esta situação que agora se nos depara é nova e, claramente, tem como objectivo coartar a liberdade de expressão, no caso concreto através do humor. Só podemos esperar que o Tribunal assim entenda porque os portugueses não querem voltar atrás.

 Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 11 de Agosto de 2025

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