segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

O EXEMPLO ARGENTINO



Há precisamente cem anos, a Argentina inaugurava em Buenos Aires a estação de comboios Retiro que é, juntamente com o Teatro Colón, um dos edifícios emblemáticos da prosperidade em que vivia nesses tempos. A Argentina era, por esses dias, um dos dez países mais ricos do mundo, mais rico que a França, a Alemanha ou a Itália. O nível do seu produto per capita era de 92% da média dos 16 países mais ricos do mundo. Durante os 43 anos que precederam a Primeira Guerra Mundial, a Argentina foi um país politicamente estável que conseguiu o maior crescimento do mundo, a uma taxa anual de 6%.
A partir dessa altura, a Argentina mudou de rumo e passou a ser um país politicamente instável às mãos, ora de militares golpistas, ora de políticos populistas. Os golpes de estado militares sucederam-se a partir do primeiro ocorrido em 1930. Incluindo o último que aconteceu em 1976 e que substituiu o governo de Isabelita Péron pela Junta Militar houve nada mais, nada menos, que seis golpes militares. O último ainda tem consequências graves na sociedade argentina, pela brutalidade insana com que tratou milhares de opositores políticos e suas famílias. 
O regime instaurado pelo general Videla e seus sequazes, só acabou na sequência da invasão militar pela Argentina das Ilhas Malvinas/Falkland, a que se seguiu a reocupação das mesmas pelas Forças Armadas britânicas, naquela que ficou conhecida pela Guerra das Malvinas/Falkland, entre Abril e Junho de 1982.
Em 1946 Juan Domingo Perón foi eleito para o seu primeiro mandato presidencial, com base numa mescla ideológica, o chamado justicialismo, intervindo fortemente na economia, fechando-a ao exterior, limitando as importações, promovendo nacionalizações, enquanto em simultâneo aumentava o salário aos trabalhadores incluindo o salário mínimo, 13º mês, benefícios nas aposentações, etc.
Entretanto, a sua mulher Eva exercia um fascínio sobre a sociedade em geral, mas especialmente sobre os mais pobres, os chamados “descamisados”. O populismo tinha tomado conta da política argentina. Se num primeiro tempo, o país pareceu recuperar em termos económicos e sociais, rapidamente se afundou. Perón acabou por exercer três mandatos presidenciais, sempre eleito com grandes maiorias, alternando com golpes militares. Após o seu falecimento em 1974, sucedeu-lhe a mulher conhecida como Isabelita, que tentou prolongar o peronismo, experiência terminada tragicamente em 1976.
No regresso ao regime democrático que substituiu a Junta Militar após a Guerra das Malvinas, a Argentina teve a possibilidade de, finalmente, entrar pelo caminho da recuperação sustentada da economia e de regressar ao caminho do progresso e do crescimento económico. Tal foi o caminho traçado pelo presidente eleito Raúl Alfonsin, mas não pelos seus sucessores que voltaram ao justicialismo e populismo inerente, com péssimos resultados. De presidente justicialista em presidente justicialista, hoje em dia quem preside é Cristina Kirchner que, para não variar, é a viúva do anterior presidente, Néstor Kirchner.
Comparando com os valores do início desta crónica referentes à Argentina de há cem anos, verifica-se que o produto per capita da Argentina é hoje apenas 43% do dos 16 países mais ricos. A tradição justicialista continua nos dias de hoje, com uma intervenção estatal que produz resultados desastrosos, como acontece na tradicional exportação de carne, em que a Argentina caiu de 4º maior exportador em 2006, para 10º em 2013.
A Argentina de hoje é o resultado de dois factores cruciais: em primeiro lugar, uma tradição de golpismo militar. Em segundo lugar, a persistência de opção democrática por políticos populistas, que prometem o que não podem cumprir e levam à prática políticas sociais insustentáveis pela economia do país e que têm levado a pesadas intervenções de apoio financeiro pelo FMI que podem resolver pontualmente dificuldades financeiras, mas não colocam o país noutro caminho. E, na realidade, embora os seus responsáveis, como a actual presidente, caiam na tentação de o fazer, não podem verdadeiramente acusar ninguém pela situação. São os próprios argentinos que, com as suas escolhas democráticas, e recorda-se que o actual ciclo democrático tem já quase quarenta anos, têm sistematicamente levado o seu país para a miséria e desencanto através de escolhas de políticos populistas.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 de Fevereiro de 2015

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O FUTURO, PRESENTE



Confesso que não sei se o dito popular que assegura trazer a idade sabedoria é verdadeiro, ou não. O que sei é que, à medida que os anos avançam, muda muito a maneira como vemos o que se passa à nossa volta. Dizia Ortega & Gasset que o homem é ele próprio e a sua circunstância. Passe o relativismo desculpabilizante que, por vezes, possa estar associado a tal afirmação, a verdade é que a experiência associada aos anos de vida não pode deixar de influenciar a percepção do mundo e mesmo a sensibilidade perante o que acontece.
Há um período na vida em que nos sentimos fortes, em que parece que tudo o que fazemos sai bem e em que nos sentimos capazes de mudar o mundo. Quando temos vinte e trinta anos as certezas dominam os nossos pensamentos e as nossas crenças. Normalmente é por essa altura que temos os nossos filhos e até mesmo esses acontecimentos notáveis nos surgem com naturalidade, tal como o seu crescimento e desenvolvimento. Ao fim e ao cabo, o acompanhamento dos filhos até ganharem asas e voarem por eles mesmos dura algumas dezenas de anos de vida em comum, o que cria naturalmente a sensação de que são uma extensão de nós próprios. Ouvi uma vez um cientista Físico dizer que não vale a pena tentar inventar uma máquina do tempo, porque ela já existe: são os nossos filhos, que nos projectam no futuro. Isto sensibiliza-nos ainda mais para com o sofrimento dos pais que, contra o que é natural, veem os seus filhos partir.
Mas a lei da vida acompanha o tempo que vai passando e, a certa altura, eventualmente outro acontecimento notável nos surge: o nascimento de netos. E damo-nos conta de algo para que ninguém nos avisa e para que não estamos preparados pela experiência da vida.
O surgimento dos netos não depende rigorosamente nada de nós, nem a sua vida nos estará nunca ligada como aconteceu com o seu pai ou a sua mãe, nosso filho ou filha. E é assim que, quando seguramos esse pequeno ser nos nossos braços, um estranho sentimento nos invade. A sua evidente fragilidade e completa dependência impressionam e assustam mesmo. Quando os nossos filhos, pais destes agora vindos nasceram eram perfeitamente semelhantes, mas essa consciência não era tão vívida como agora surge perante os netos. A circunstância da nossa idade quando somos pais e da perspectiva perante a vida com tanto futuro à frente, parece facilitar a aceitação da fragilidade e da evolução dos filhos e até aligeirar o eventual peso que trazem às nossas próprias vidas. Perante os netos, a naturalidade que havia com os filhos desaparece, surgindo em seu lugar uma clara percepção da vida e das suas contingências. Não vamos ter a responsabilidade directa de os educar e transportar até à sua idade adulta e não devemos sequer ceder à tentação de tentar fazê-lo. Por outro lado, a consciência da nossa idade diz-nos que a maior parte da vida daquele ser humano vai ser passada quando nós próprios já cá não estivermos, o que nos faz imaginar como será o mundo nessa altura e, claro, ter algum receio por isso mesmo.
Mas isso não significa uma menor sensação de responsabilidade interior, nem uma falta de preocupação com o futuro. Na realidade, é perante os netos que surge mais evidente a noção de elo entre gerações. 
Com os netos nos braços, lembramos com enorme clareza os nossos próprios avós e, sobretudo, os nossos Pais, sobretudo se já desaparecidos. Com os nossos filhos de entremeio. Vem à recordação a vida dura dos antepassados nas faldas da Serra da Estrela, sem instrução, mas com enorme educação, como ainda tivemos oportunidade de testemunhar. Recorda-se com carinho infinito os Pais que tudo fizeram para que a minha geração tivesse educação, mas sobretudo a formação escolar que a eles por uma ou outra razão foi vedada. E olhamos para os netos, eles que são filhos de uma geração já com uma outra formação e uma cultura muito superiores a nós próprios e sonhamos para eles um futuro ainda melhor, com mais abertura ao desconhecido, com mais respeito pelo próximo e mais possibilidades de escolha do seu próprio destino. Acima de tudo, esperamos que o mundo em que vão viver seja mais justo e que nele sejam felizes, amados e construtores, eles próprios, de um futuro melhor para os seus descendentes. Na verdade, eles são o futuro, hoje.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 de Fevereiro de 2015

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

ALEGORIA DA CAVERNA



Uma observação atenta da realidade dos nossos dias não deixa de ser surpreendente à luz do que nos ensinaram os filósofos gregos idos já há tanto tempo.
Platão usou a famosa alegoria da caverna para mostrar quanto a realidade percepcionada pelos nossos sentidos pode ser enganadora e como pode ser igualmente perigoso mostrar o seu engano aos que não saem da sua “zona de conforto”.
Por ironia, o que se passa na Grécia por estes dias é bem demonstrativo de tudo isto. Os partidos do novo Governo fizeram toda a campanha eleitoral que lhes deu a vitória, com um conjunto de ideias simpáticas e apelativas que pareciam oferecer uma solução fácil à situação de terríveis dificuldades do país. Ignoraram todo um mundo, perigoso e por vezes selvagem mesmo, que existe fora do conjunto de ideias sobre as quais construíram a sua mundividência.
Sucede que, assim que saíram da sua toca para falar com o resto da Europa, descobriram, e estão ainda a descobrir que, além do mundo europeu no qual já esperavam dificuldades, existe todo um conjunto de mundos com as suas próprias dificuldades e até eleitorados próprios com as mesmas exigências de soberania e conforto que eles próprios. Difícil e eventualmente mesmo perigoso, será o regresso a casa depois de um choque infrutífero com o mundo exterior, explicando esse mesmo mundo a quem ficou “na caverna”. Relembra-se a morte de Sócrates pelos atenienses e as razões que levaram a esse facto.
Mas a União Europeia e os países que a constituem correm o mesmo risco. Fechando-se no seu mundo de certezas e garantias, construídas é certo com muito trabalho, persistência e competência, correm o risco real de o ver desabar. A História está cheia de factos pequenos, sem grande relevância ou mesmo significado profundo, que vieram a dar origem a convulsões gigantescas de consequências dantescas para a Humanidade. Para não ir mais longe, quem imaginaria que o assassinato de um príncipe herdeiro da Áustria poderia originar a primeira Guerra Mundial? A recusa liminar de conversações sérias com a Grécia poderia ter consequências trágicas para todos nós. Tal como uma abordagem séria e consequente da questão da Ucrânia está a constituir-se num perigoso foco de tensões com a Rússia que muito facilmente poderá descambar num conflito de graves repercussões. O que se tem passado na Europa, após o ataque islamita ao jornal satírico em Paris também não augura boas notícias. Repetem-se os sinais de fecho securitário ao exterior, enquanto o medo vai impedindo exposições, debates, etc. em que se imagine que os islamitas radicais se possam ofender e reagir violentamente; o atentado está a produzir os resultados desejados, por inteiro.
Em Portugal há também sinais de cegueira e enclausuramento em torno de situações, uma importantes e sérias pelas consequências na nossa vida colectiva futura, outras de carácter algo anedótico. Personalidades que vivem no seu mundo próprio, muito fechado aos simpatizantes de sempre, mesmo algo fanáticos, vão “enviando sinais para o exterior” pensando nas suas eventuais candidaturas à presidência da República, imaginando que alguém lhes dá o mínimo de importância. Uns vão dizendo que avançam se houver uma vaga de fundo que lhes peça isso mesmo, enquanto outro vão andando por aí, enquanto aguardam os resultados das legislativas. Razão teve Jorge Sampaio quando, no seu tempo próprio, sem se deixar enredar em partidarites nem se fechando num mundo fácil e simpático, decidiu em 1995, por sua conta e risco, anunciar que no ano seguinte seria candidato a Presidente da República. E, contra todas as previsões, foi Presidente durante dois mandatos.
Outros mundos fechados à realidade exterior há por aí, mas impossíveis de assinalar todos nas reduzidas linhas de uma crónica semanal bastando, a concluir, lembrar outro grego antigo, Demóstenes, citado a propósito (bem) no jornal Público na semana passada: "Nada é mais fácil do que se iludir, pois todo o homem acredita que aquilo que deseja seja também verdadeiro".
Publicado originalmente no "Diário de Coimbra" em 9 de Fevereiro de 2015

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

CAVALO DE TRÓIA



Na guerra de Tróia, perante a impossibilidade de ocupar aquela cidade com os meios bélicos de que dispunham, os Gregos usaram de um estratagema. Fingindo que levantavam o cerco, afastaram-se deixando um grande cavalo de madeira para trás. Os troianos convenceram-se de que estavam finalmente salvos, trazendo o cavalo para dentro das muralhas e celebrando a vitória com abundante utilização de álcool. Enquanto descansavam dos festejos, soldados gregos saíram do cavalo, abriram os portões da cidade e permitiram finalmente a entrada do exército grego que assim destruiu Tróia.
Há cerca de uma semana, as eleições gregas alteraram profundamente a correlação de forças políticas no país. O Syriza, um bloco radical formado por diversas tendências de extrema esquerda, à semelhança do português “Bloco de Esquerda”, obteve 36,3% dos votos expressos, quando em 2012 tinha obtido 26,9%. O partido Socialista Grego chamado PASOK que em 2009 tinha mais de 40% dos votos, depois de ter estado anos a fio no poder e se ter visto forçado a chamar a Troika, viu-se agora reduzido à quase extinção, com 4,7% dos votos, depois de ter tido 12,3% em 2012. O partido de centro direita “Nova Democracia” passou de 29,7% em 2012 para 27,8% nestas eleições. A abstenção teve um valor superior ao dos votos no Syriza. As alterações eleitorais mais expressivas têm portanto a ver com a subida do Syrisa em quase 10%, a descida a pique do partido Socialista PAZOK em quase 8% e numa grande abstenção.
Claro que, quando há eleições democráticas, a Democracia ganha sempre. Ao contrário do que se viu por toda a comunicação social e nos comentários à esquerda mas surpreendentemente também à direita, não é por o Syriza ter ganho as eleições que a Democracia venceu; nas eleições anteriores também ganhou e ganhará nas próximas eleições qualquer que seja o resultado, se as houver, claro.

O Syriza ganhou, propondo aos gregos um programa chamado anti-austeridade, que basicamente atira para o caixote do lixo todos os compromissos assumidos anteriormente pela Grécia, com vista a levar os índices das suas finanças públicas para dentro dos limites determinados pela União Europeia, em termos essencialmente de dívida pública e de défice orçamental. Entre as promessas do Syriza, contavam-se o aumento do salário mínimo de 580 para 751 euros, a abolição de taxas na saúde, a electricidade gratuita para 300.000 lares, a recontratação de 10.000 funcionários públicos, reposição de subsídios aos pensionistas, etc. Claro que ainda incluíam o perdão substancial da dívida pública grega, sujeitando o pagamento da restante ao crescimento económico, a inclusão de um período de carência no pagamento da dívida, a exclusão do investimento público das restrições do pacto de estabilidade e crescimento, etc. Estas últimas não dependem, obviamente do governo grego e sim dos parceiros europeus que teriam de pagar todo esse dinheiro para a Grécia voltar a ter a “qualidade” de vida que tinha antes da negociação com a Troika lhe ter levado a austeridade. Relembra-se que a Grécia já beneficiou de dois resgates que ascendem a 240 mil milhões de euros, beneficia das taxas de juro mais baixas de toda a periferia e obteve um corte de metade da dívida pública detida por entidades privadas.
Apesar do estranho sistema eleitoral grego que “oferece” 50 deputados ao partido mais votado, o Syriza não conseguiu uma maioria no parlamento, pelo que rapidamente se entendeu com outro partido, o “Anel” para atingir a maioria e formar governo. O Anel é considerado como um partido de extrema-direita, sendo o seu líder que ocupou o cargo de ministro da Defesa um conhecido xenófobo, homofóbico e antissemita.

A coligação a que muitos amigos do Syriza entre nós consideraram uma prova de “pragmatismo” não é mais do que a forma de levar a Grécia a sair do Euro e mesmo da União Europeia, atirando com a responsabilidade dessa saída para a própria união, para os neo-liberais, mercados, etc. De facto, a coligação tem um cimento, que é a luta contra o Euro e a União Europeia e tudo o que significam. A chantagem que já começaram a fazer à União só poderá ter o fim que todos adivinhamos, já que os restantes europeus não aceitariam a injustiça de se sacrificarem para o conforto dos gregos: por exemplo, nós os portugueses teríamos que pagar cada um mais de 500 euros para o perdão da dívida grega assumida por Portugal.

  O actual governo Grego constitui-se num verdadeiro cavalo de Tróia na União Europeia e o seu fim é abrir a porta à destruição da União. Os gregos têm todo o direito a decidir o seu futuro, que pode passar por sair da União Europeia, se assim o desejarem. Não têm é o direito de amarrar o futuro de toda a União europeia aos seus desejos.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

800 anos da Magna Carta



No mês de Junho de 1215, o Rei João de Inglaterra, que se tornaria conhecido como João sem Terra, assinou um documento que, no seu art.º 39º e, numa tradução livre, estabelecia:
“"Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra."
Em plena Idade Média, o Rei reconhecia um limite aos seus poderes e uma garantia à liberdade dos súbditos.
Claro que João sem Terra não assinou o que ficou conhecido como Magna Carta com grande gosto, nem sequer com intenção de a vir a cumprir na sua totalidade. As suas sucessivas derrotas militares e o afrontamento ao papa Inocêncio III ao não aceitar a nomeação do Arcebispo de Cantuária, tinham-no levado a uma situação de fragilidade perante os nobres do reino que colocava em perigo a sua situação como rei. Depois de se humilhar ao aceitar o nomeado pelo Papa, colocando-o assim do seu lado, o Rei João aceitou igualmente os termos da Magna Carta, que limitava seriamente os seus poderes. Havia mesmo um artigo que estabelecia um conselho de 25 nobres com o direito de ficarem com todas as posses do rei, caso ele não cumprisse alguma das regras do tratado. Passado um escasso mês sobre a assinatura, João escreveu ao Papa a pedir a anulação da Magna Carta, o que conseguiu, dadas as suas novas boas relações com Roma.

O documento, mesmo com alterações e mesmo anulações de algumas partes, como a referente ao conselho dos 25 nobres, sobreviveu ao longo dos anos como inspiração para futuras constituições. Os pais fundadores da Constituição Americana vieram no final do século XVIII a tomar a Magna Carta como documento seminal para a definição das liberdades individuais e limite da acção do Estado perante o indivíduo e para a definição do princípio fundamental da “não taxação, sem representação”.
Recordo que, entre nós, a primeira Constituição data de 1822, tendo tido vida curta, já que foi substituída em 1826 pela Carta Constitucional que vigorou com diversas alterações até à implantação da República em 1910.
A originalidade e importância da Magna Carta, oitocentos anos depois da sua assinatura, mantém-se no respeito do Estado perante os cidadãos e no direito destes a julgamento justo em vez da arbitrariedade do poder.
Nestes dias em que tudo é posto de novo em causa por discussões sobre direitos individuais fundamentais como a liberdade de imprensa e de opinião perante poderes religiosos, militares, políticos e económicos, ir buscar os fundamentos da nossa liberdade e civilização ao fundo dos tempos é, não só uma comemoração mas também uma necessidade. Oitocentos anos de Magna Carta não são uma pertença apenas da História de Inglaterra, mas de toda uma sociedade liberal que tem sobrevivido aos ataques dos mais diversos radicalismos que, sistematicamente, têm tentado substituir os direitos dos indivíduos pelos interesses do Estado. 
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Janeiro de 2014