Quem visita a
Galeria Borghese
em Rom
a
depara-se com uma escultura impressionante da autoria de Bernini, considerado o
expoente do Barroco, que viveu entre 1598 e 1680, tendo numerosas obras de arte
por toda a capital italiana. A escultura representa, em tamanho natural, “O
Rapto de Proserpina”, um mito romano que já aparecia na cultura grega. O trabalho
no mármore é insuperável, conseguindo transmitir as mais diversas emoções,
desde a aflição de Proserpina a empurrar a cabeça de Plutão, até à violência
deste a cravar as mãos no corpo nu e macio da rapariga, enquanto o cão de três
cabeças que
guarda a entrada do mundo da escuridão vigia o que se passa à volta. A
leveza e transparência das vestes, para além das posições e expressões das
personagens, em particular de Proserpina que retrata fielmente o seu grito de
dor, são a expressão de uma perfeição inexcedível no trabalho escultórico do
autor.
O mito romano diz-nos que uma jovem de grande
beleza, Proserpina, apanhava flores num jardim, acompanhada por algumas ninfas,
quando surgiu Plutão que a raptou e levou à força para o seu submundo. Plutão
era o senhor do reino dos mortos, após a guerra que, com os seus irmãos Júpiter
e Neptuno travara com o Pai Saturno tendo, por sua vez, Júpiter ficado senhor
dos céus e da terra e Neptuno com o reino dos mares. Ceres, a mãe da jovem
raptada e rainha da fecundidade e das colheitas, procurou a filha, tendo pedido
ajuda a Júpiter para recuperar a filha. Entretanto, o frio e o inverno
instalaram-se, as colheitas apodreceram e o mundo ficou entregue ao caos e à
fome devido ao abandono por parte de Ceres. Plutão acedeu a devolver Proserpina
a sua mãe, mas deu uma romã a comer à jovem que comeu algumas sementes
desconhecendo que, ao comer no reino da escuridão, ficaria para sempre
condenada a lá voltar.
O entendimento obtido entre os deuses foi que durante um
período do ano, a jovem estaria na companhia da mãe, conhecendo a terra,
durante esse tempo, beleza e prosperidade; no resto do ano, voltaria para junto
de Plutão, deixando a mãe de tratar das colheitas e regressando o frio e o
mal-estar e infelicidade gerais. Curiosamente, o alimento comido por Proserpina
foi uma romã, fruta que há milhares de anos tem uma simbologia muito própria e
muito forte. Para os gregos era um símbolo do amor e da fecundidade e teria
poderes afrodisíacos. Para os judeus era um símbolo religioso ligado ao ano
novo e para os romanos, para além da fecundidade, simbolizava a ordem e a
riqueza. Entre nós terá sido trazida pelos berberes, nas suas invasões da
Península Ibérica, tendo a nossa língua absorvido o termo árabe para o fruto,
ao contrário do que acontece nas outras línguas modernas europeias que usaram a
etimologia do latim, casos do espanhol, do francês e do inglês.
Os mitos da antiguidade clássica, grega e romana,
tinham muitas vezes a função de fornecer respostas a interrogações para as
quais era impossível encontrar justificações concretas, pela falta de ciência
desenvolvida, ao contrário dos nossos dias. O mito de Proserpina tem tido
várias interpretações desse tipo, sendo habitualmente associado à explicação da
alternância das estações do ano, invernosa, frio e sem alimentos quando a jovem
está na casa de Plutão na escuridão do submundo e fértil e luminosa quando está
em casa da mãe, Ceres. O mito é ainda tido como significando vida eterna, já
que a alternância de Proserpina entre os dois mundos será para sempre.
Há, contudo, uma interpretação que terá
significado para os dias de hoje. A beleza, juventude, inocência, curiosidade e
mesmo liberdade de Proserpina quando vivia com a sua mãe, apanhando flores com
as ninfas nos jardins é a imagem da criação artística e do belo. O rapto levado
a cabo por Plutão é a captura disto tudo e ainda da liberdade, portanto da
própria Cultura, levada para o submundo da escuridão. Como resultado o mundo
vivo e luminoso transforma-se em algo sem vida, apodrecido e infértil de que
resulta fome e desespero.
É o que sucede quando a mentira, a ignorância, a
intolerância e os mais variados extremismos e radicalismos eliminam a procura e
partilha do Belo capturando a Cultura e enviando-a também para o submundo ou moldando-a
para atingir os seus objectivos, de qualquer modo trazendo ao mundo tristeza,
fealdade e, tantas vezes, desgraças e desespero, como desgraçadamente aconteceu
com o nazismo e diversos fascismos e comunismos ao longo do século XX.
Texto publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Julho de 2019