Já não voltaremos a ter o prazer de ler novas crónicas de Vasco Pulido Valente.
Para recordar, aqui fica a sua análise ao grande livro «Portugal Contemporâneo» de Oliveira Martins que, em muitos aspectos, é bem contemporâneo dos nossos dias,além de o ser do sec. XIX português.
Foto levada do blogue portadaloja.blogspot.com/.
jpaulocraveiro@ gmail.com "Por decisão do autor, o presente blogue não segue o novo Acordo Ortográfico"
sábado, 22 de fevereiro de 2020
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020
O ESTADO E A VIDA
Não se pode abordar a História da
Humanidade sem ter uma percepção clara da evolução das relações entre os
indivíduos e o poder organizado em cada momento que, a partir de certa altura
passou a ser designado por Estado. Desde os tempos dos simples chefes de clãs
até aos faraós do Egipto, imperadores chineses ou reis europeus do chamado
Antigo Regime, havia algo de comum que era a subordinação dos indivíduos
perante os chefes, incluindo a própria vida. Durou muitos séculos a redução do
poder do Estado sobre a vida dos indivíduos (que só a partir de certa altura se
podem chamar cidadãos), o que se reflectiu na evolução da pena de morte. Por
exemplo, em Portugal, a pena de morte só foi totalmente abolida com a
Constituição da República Portuguesa de 1976. Antes disso, houve um breve
período em que tal também se verificou a partir de 1911 mas, com a entrada de
Portugal na Primeira Grande Guerra em 1916, foi readmitida pelo crime de
traição em plena guerra, situação que se manteve até 1976.
Portugal costuma orgulhar-se de ter
sido o primeiro país a abolir a pena de morte, em 1867, mas tal verificou-se
apenas para crimes civis, mantendo-se a excepção dos crimes de traição em
situação de guerra.
Há muitos países onde, ainda hoje, o
Estado se arvora o direito de retirar a vida a pessoas como castigo pela
perpetração de determinados crimes de grande gravidade. Contudo, o rumar da
História tem sido no sentido de se considerar que a vida das pessoas é algo de
que os estados não podem dispor, seja a que título for.
Não foi assim há tanto tempo que a
Alemanha nacional-socialista utilizou as mais diversas razões para justificar a
retirada de vida a milhões de pessoas, fosse por razões políticas, religiosas,
pretensamente raciais, sociais ou mesmo por diferenças pessoais. Para além da
eutanásia, na altura chamada «morte misericordiosa», a eugenia foi
particularmente odiosa, pretendendo «purificar a raça», pelo que todos os que
tivessem algum pormenor pessoal tido como defeito, viam-se objecto das
«experiências médicas» mais inacreditáveis que acabavam na morte dos infelizes
em condições desumanas. Não foi apenas o Holocausto que definiu os que o
levaram a cabo, não podendo ser esquecido, antes pelo contrário, recordado como
um dos períodos mais negros da humanidade. As práticas de eugenia levadas a
cabo pelos nazis devem também ser motivo de discussão e ser levadas ao
conhecimento do maior número de pessoas de hoje. Deveriam ainda ser
clarificadas e responsabilizadas as práticas de eugenia, não tão extremas, mas
no mesmo sentido, que continuaram durante dezenas de anos em diversos países
tidos como faróis da civilização, mesmo na Europa nórdica.
Em causa está, sempre, a ideia que muitos estados
ainda hoje mantêm, de que a vida dos cidadãos é um bem de que o Estado pode
dispor. Foi só depois do fim da Segunda Grande Guerra, em 1948, que surgiu a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, subscrita pela maioria dos países. O
artigo terceiro da Declaração estipula que: «Todo o indivíduo tem direito à
vida, à liberdade e à segurança pessoal».
Foi este o momento histórico em que a maioria dos
estados prescindiu de dispor da vida dos indivíduos. Em vez disso, estão
obrigados a garantir a todas as pessoas aqueles direitos designados como
universais, que são a vida, a liberdade e a segurança pessoal, por esta mesma
ordem, isto é, com a vida à cabeça. Claro que, como todos os progressos
civilizacionais, pelo facto de estar no papel isso não significa que, em
primeiro lugar esteja a ser praticado por todos os que nele se comprometeram,
em segundo lugar que esteja garantido para sempre.
E é isso que temos visto nos últimos dias, em
Portugal, na discussão sobre a eutanásia. Percebemos que o direito das pessoas
à vida não está garantido para sempre, nem em todo o lado, mesmo entre nós,
como mostra a declaração por uma deputada à Assembleia da República de que «a
vida não é um direito absoluto». Isto, em Portugal, no ano de 2020. Pelo que se
percebe, em determinadas circunstâncias, o Estado pretende voltar a arrogar-se
o direito de decidir sobre matar uma pessoa, quem o pode fazer e como. Trata-se
de voltar a abrir uma porta que, para segurança de todos, mais valia continuar
fechada. E nem é preciso ir muito longe para perceber o que pode entrar por
essa porta, como já sucede na Holanda e na Bélgica. Não me venham dizer que
isso é progresso civilizacional. É exactamente o oposto, constituindo mesmo um
sinal perturbador de declínio civilizacional.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Fevereiro de 2020
sábado, 15 de fevereiro de 2020
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020
AMAR A CIDADE QUE (TAMBÉM) SE ODEIA
Qualquer cidadão que se preocupe com
a sua cidade, ainda mais no caso de Coimbra, desenvolve com ela uma relação
necessariamente afectiva, cuja substância cresce muito para além de
preocupações técnicas ou político-ideológicas. E essa relação com a Cidade
surge, ainda que tantas vezes contraditoriamente, a níveis diversos, seja com a
evolução temporal do espaço público e em geral, do urbanismo, seja com as próprias
pessoas que a habitam, tantas vezes sem se darem conta do que as rodeia, e
ainda menos se questionarem sobre as razões da evolução.
É assim que, no que me diz respeito,
amo a memória das ruas da Baixa de Coimbra com pessoas a atropelarem-se, umas a
ver as montras e outras apenas a passar nos seus trânsitos entre a Estação Nova
e a zona da Câmara Municipal. Guardo com particular carinho, algures num
qualquer recanto cerebral, a visão da rua que, em criança, conhecia como rua
dos bazares, com montras cheias de brinquedos em particular milhares de
miniaturas de automóveis, pistas eléctricas de comboios e de carros, com que
apenas podia sonhar. Era também a rua do «hospital das bonecas», bem conhecido
das minhas irmãs. Sei hoje que a rua se chama Adelino Veiga, «que foi operário
honesto e poeta de mérito» e odeio ver como se encontra actualmente abandonada
e triste, sem bazares e sem pessoas.
Amo a cidade aberta no sec. XIX
sobre a antiga Cerca de Sta Cruz desde a Sá da Bandeira aos Arcos do Jardim,
com continuação pela alameda Júlio Gonçalves, sem réplica urbanística posterior
de qualidade urbanística equivalente. Odeio a incapacidade de recuperar o
Jardim de Sta Cruz para uma normal e aberta vivência mas amo a rua que, ao
lado, os jacarandás que a bordejam todos os anos por volta de Maio vestem com
as cores da Cidade. E amo o Jardim Botânico que distingue Coimbra com a sua
excepcionalidade e, sobretudo, é o palco de memórias guardadas. Mas odeio os
mostrengos construídos na Av. Sá da Bandeira, aguardando que alguém se lembre
de utilizar o dinheiro entregue aquando da construção do golden, destinado ao
parque de estacionamento da Praça da República, para a compra dos 4 pisos
superiores do próprio edifício e sua demolição.
Amo a vitalidade que a juventude
universitária transmite à cidade, com a sua paleta de características
afirmativas pela diferença, seja pela liberdade cosmopolita de aspecto
exterior, seja pela capacidade de apontar caminhos novos nas mais diversas
áreas do pensamento, da ciência, das artes e mesmo da intervenção social. Mas
odeio a conservadora e muito hipócrita sociedade da má-língua da nossa cidade
que se compraz em desfazer naqueles que considera inferiores e em repassar
mentiras e boatos, agindo como se a Inquisição não tivesse terminado há, passam
no próximo ano, 200 anos. Amo mesmo algo que já odiei, o aparentemente ingénuo
tratamento por Senhor Doutor dado a qualquer homem que se apresentasse de fato
e gravata e que na realidade escondia uma certa malandrice futrica que se
aproveitava da célebre doutorice coimbrã. E odeio a falta de oportunidades
proporcionadas pela cidade aos seus filhos (ainda que muito bons) que se vêem
obrigados a deixá-la para construir as suas vidas noutras paragens.
Amo as diversas imagens que o rio Mondego
nos oferece, como a névoa deslizante sobre as suas águas matinais ou o reflexo
da iluminação da colina sagrada em noites amenas, tal como amo a recuperação de
Sta. Clara-a-Velha e a sua envolvente, a ponte pedonal Pedro e Inês e o
Exploratório.
Mas odeio que o parque verde esteja há anos sem recuperação dos
estragos nem limpeza e que a margem esquerda sirva para parqueamento de
auto-caravanas, sem condições higiénicas para tal, quando Coimbra até dispõe de
um parque de campismo de 5 estrelas.
Sim, amo o Penedo da Saudade e as
memórias pessoais e de todos os que lá deixaram pedras evocativas da sua
passagem pela Universidade, reveladoras de um encantamento que se sobrepõe a
todas as agruras por que passamos durante a vida.
Como acontece com as pessoas que
amamos, a relação com Coimbra pode ser de tal intensidade que até as
imperfeições que nela possamos odiar ou apenas desgostar passam, no fundo, a
fazer parte do todo como se rugas da velhice fossem tornando, por isso mesmo,
possível «amar a própria cidade que se odeia».
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Fevereiro de 2020
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