Todos teremos
guardada, algures no cérebro, a memória de uma mentira dita por nós ainda
enquanto crianças, na sequência de fazermos algo que não queríamos que se
soubesse que tinha sido da nossa autoria. Algo sem qualquer importância, nem
consequência de maior para ninguém. Importância teve, e grande, a reacção do
responsável adulto perante a descoberta da mentira, quer fosse em ambiente
familiar ou escolar. É muito provável que essa reacção tenha determinado a nossa
relação pessoal com a mentira, pela vida fora. A pura rejeição para a vida ou a
aceitação e prática de mentiras pequenas que aplanam o caminho para as grandes
poderá ter aí o seu início.
Não se pense
que se trata de uma questão menor das nossas vidas. Grandes filósofos e
pensadores lhe dedicaram o seu tempo e escrita, havendo historicamente duas
escolas sobre o assunto. Em primeiro lugar, porque as palavras têm muitas vezes
significados diferentes em função de quem as lê ou as ouve, será conveniente definir
o significado da palavra “mentira”. Indo aos dicionários é fácil descobrir que
«uma mentira é a afirmação deliberada de uma falsidade com o objectivo de
enganar ou iludir um público». Assim sendo, ficam fora da mentira aquelas
situações em que se diz uma falsidade inadvertidamente, ou se diz uma falsidade
sem saber que quem a ouve irá interpretar como verdadeiro algo que de facto não
o é.
Da escola dos
que rejeitam a mentira em absoluto, fazem parte Santo Agostinho e Kant, que a
consideram uma prática imoral. Santo Agostinho escreveu mesmo dois tratados em
que desenvolve a análise da mentira e justifica a sua posição de total
rejeição, como posição cristã. Mais simplesmente, Kant defendeu que os
indivíduos não têm o direito de mentir. Noutra perspectiva colocam-se outros
pensadores que consideram aceitáveis certas mentiras, em função do contexto. Se
para Benjamim Constant «devemos dizer a verdade quando o ouvinte tiver direito
a ela», já Schopenhauer acreditava que «temos o direito de mentir em determinadas
condições». Como se vê, seria o próprio agente que definiria a validação da
possibilidade de mentir. Para complicar ainda mais a questão, Oscar Wilde
afirmava que a verdade raramente é pura e nunca simples.
Para se
perceber mais facilmente as duas posições limite, posso citar o caso de alguém a
quem é descoberta uma doença fatal e fulminante. Deverá ser-lhe dada informação
completa de imediato? Ou será aceitável, ou mesmo preferível, uma mentira dita
piedosa e poupar-lhe o sofrimento mental até ao fim da sua curta vida?
De propósito, o título
desta crónica leva a preposição “em” em vez da proposição “de” que vemos
utilizada tantas vezes. O filme “True Lies” teve em português o nome “”A
Verdade da Mentira”. Um livro que surgiu há alguns anos sobre o desaparecimento
da pequena Maddie tem também o título “A Verdade da Mentira”. Um filme muito
recente utiliza a mesma expressão: “Mr. Jones – A Verdade da Mentira” sobre,
como diz o resumo publicado do filme, «a história nunca contada do jovem Gareth
Jones, um ambicioso jornalista galês que viaja até à URSS em 1933, revelando a
verdade escondida por detrás da “utopia” soviética e do regime estalinista que
inspirou a famosa alegoria de George Orwell – O Triunfo dos Porcos».
A utilização,
tão espalhada, da preposição “de” sugere que a própria narrativa sobre uma
falsidade se constitui como “A Mentira”. Diferentemente, ao utilizar a
preposição “em” pretendo significar que a mentira transporta em si mesma a
verdade. Os destinatários da mensagem mentirosa têm a possibilidade, diria
mesmo o dever, de detectar a mentira como tal, denunciando-a. Como o que se
passa no espaço público em que as mensagens são submergidas numa onda definida
pela comunicação pública dos diversos agentes políticos. Não se trata de um
fenómeno exclusivo dos dias de hoje, sempre aconteceu, mas a grande e imediata
difusão proporcionada pela internet facilita a emissão e circulação
praticamente global das chamadas “fake news” que, como diz o jornalista Carlos
Magno se deveriam mais apropriadamente chamar “oax news” por serem puras
farsas. A questão que se pode colocar é se, muitas vezes, alguém quer mesmo ver
a verdade que se esconde na mentira.
A comunicação começa e acaba nas pessoas, pelo que é em todas e em
cada uma delas que a mentira e a verdade se organizam e definem o seu carácter
essencial. Por isso mesmo, termino esta crónica com uma citação de “Os Irmãos
Karamázov” de Fiódor Dostoiévski:
«O principal é não mentir para si mesmo. Quem mente
para si mesmo e dá ouvidos à própria mentira chega a um ponto em que não
distingue nenhuma verdade nem em si, nem nos outros e, portanto, passa a
desrespeitar a si mesmo e aos demais. Sem respeitar ninguém, deixa de amar e,
sem ter amor, para se ocupar e se distrair entrega-se a paixões e a prazeres
grosseiros e acaba na total bestialidade em seus vícios, e tudo isso movido
pela contínua mentira para os outros e para si mesmo.»
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 de Outubro de 2020